Lago de Como (Itália) |
quinta-feira, 14 de março de 2019
Banqueiros são os maiores defensores da Reforma da Previdência
As principais justificativas para tal destruição é a falácia do déficit e a longevidade da população, argumentos que já foram completamente desmontados, mas que precisamos repetir. O governo também fala em combate a privilégios. Vamos falar disso também.
Mas se querem falar em números, vamos lá. Historicamente, as contribuições sociais previstas na Constituição Federal (COFINS; CSLL; PIS; contribuição ao INSS pagas por trabalhadores e empregadores; sobre produção rural; importações; loterias etc.) foram mais que suficientes para cobrir toda a despesa da Seguridade Social (que engloba a Previdência, a Saúde e a Assistência Social) e ainda sobraram recursos que foram destinados para outros fins, em especial para o pagamento de juros da chamada dívida pública.
A partir de 2015 houve uma queda brutal da arrecadação das contribuições sociais, devido à “crise” que levou milhares de empresas de todos os setores à falência, provocou desemprego recorde e paralisação da economia brasileira. Nesse cenário de “crise”, o governo ainda concedeu diversas desonerações fiscais e liberou diversos setores de contribuir para a Seguridade Social, afetando ainda mais a arrecadação.
Portanto, a insuficiência de contribuições sociais não se deve a um problema no modelo de Previdência Social solidária, mas sim à “crise”, que no caso brasileiro foi fabricada pela política monetária do Banco Central, que quebrou inúmeras empresas, provocou desemprego recorde e derrubou o PIB. Empresas quebradas, desempregados e informais não contribuem para a Previdência. Esse é o problema, e não a longevidade das pessoas ou a solidariedade do modelo.
Ademais, ainda que as contribuições sociais passassem a não ser suficientes para assegurar os direitos sociais, a própria Constituição já previu (Art. 195) que recursos do orçamento fiscal de todos os entes federados (União, Estados, DF e Municípios) também são responsáveis pela manutenção da Seguridade Social, juntamente com as contribuições sociais.
Tudo isso está sendo destruído por essa PEC 6/2019, que cria um regime de capitalização que não oferece garantia alguma de qualquer pagamento de benefício futuro aos trabalhadores e trabalhadoras que terão que pagar uma contribuição definida durante décadas, porém, o benefício dependerá do comportamento do mercado, e pode ser zero ou negativo: em vez de receber benefício o trabalhador pode ser chamado a aportar recursos ao fundo de capitalização. Quem vai ganhar com isso? Somente as instituições financeiras que administrarão os fundos de capitalização e receberão as contribuições, sem responsabilidade alguma com o pagamento de benefício futuro.
Mas vamos falar de privilégio. O que o governo e a grande mídia chamam de privilegiados são os servidores públicos que aceitaram um contrato de trabalho oferecido unilateralmente pelo próprio governo, passaram em um concurso público, e durante toda a sua vida laboral pagaram contribuição previdenciária calculada sobre o vencimento bruto e, mesmo depois de aposentados continuam pagando contribuição previdenciária de 11% (ou mais) sobre o provento bruto. Ou seja, os privilegiados seriam aqueles que recebem aposentadoria acima do teto do INSS (atualmente em R$ 5.839,45), porque contribuíram nessa proporção e ainda continuam contribuindo até a morte. Além de pagar cerca de 11% (ou mais) de contribuição previdenciária, estão na faixa de 27,5% de imposto de renda da pessoa física, de tal forma que cerca de 40% do que recebem é tributo pago na fonte e nem irá para as mãos destes que estão sendo acusados de privilegiados.
Na verdade, o grande privilegiado no Brasil é o mercado financeiro, que ganhou mais de meio trilhão com a “crise” produzida pela política monetária do Banco Central e ganhará mais ainda com essa PEC 6/2019.
Os bancos ganharam R$526 bilhões (quinhentos e vinte e seis bilhões de reais) com a remuneração de sua sobra de caixa pelo Banco Central nos últimos 5 anos! Ganharam outras centenas de bilhões com os juros exorbitantes também definidos pelo Banco Central, e com os sigilosos contratos de swap cambial. Aí é que está o privilégio obscuro, sigiloso, que beneficiou os bancos enquanto quebrava a economia brasileira e criava a crise que está servindo de justificativa para a destruição da Previdência Social e para a entrega brutal de patrimônio por meio das privatizações de empresas estratégicas e lucrativas, como a Eletrobras, Petrobras etc.
O mercado tem tanta certeza de seus ganhos com a PEC 6/2019 que a Bolsa de Valores, que bateu recorde histórico diante da simples notícia, em 14/01/2019, sobre o avanço da proposta que seria entregue por Bolsonaro ao Congresso .
Além dos bancos, as pessoas físicas privilegiadas deste país não são servidores públicos aposentados que deixam cerca de 40% de seus ganhos nas mãos do governo, mas sim aquelas que têm renda mensal elevadíssima, e a maioria dos rendimentos que recebem são isentos, ou seja, não entregam praticamente nada ao governo.
Vejam a tabela a seguir, parte da tabela 9 (disponível no link ) , que mostra as faixas de renda, em números de salários mínimos, a quantidade de declarantes e o respectivo valor (em milhões de Reais) do rendimento tributado, tributado exclusivamente na fonte e isento. Mostra também o valor da contribuição previdenciária paga:
É escandaloso o fato de existirem 25.785 pessoas que em 2016 (dado mais recente divulgado pela Receita Federal) tiveram renda mensal superior a 320 salários mínimos, dos quais a maior parte foi isenta, ou seja, não pagaram imposto de renda nem contribuição previdenciária! Estes são os que estão favoráveis à PEC 6/2019. Outras pessoas que defendem essa destruição da Seguridade com certeza desconhecem os dados e estão embarcando em falsas propagandas.
Não podemos permitir qualquer reforma da Seguridade Social sem debate amplo, honesto, que leve em conta o fato de que historicamente a Previdência Social pública e solidária tem sido superavitária e que, momentaneamente, estamos no auge das consequências nocivas da crise fabricada pela política monetária (esta sim, que precisa ser reformada urgentemente) do Banco Central, que ainda quer ficar “independente” para entregar de vez ao mercado os destinos das finanças do país.
Velório
A democracia está perdendo os seus adeptos. No nosso país, tudo está enfraquecendo. O dinheiro é fraco. A democracia é fraca e os políticos, fraquíssimos. E tudo o que está fraco, morre um diaCarolina Maria de Jesus (1914-2019)
Segura o 'fascio'
Ele estava bravo naquele dia 12 de fevereiro. Bebianno receberia a visita de um vice-presidente da Globo e o presidente não se conformava. “Gustavo, o que eu acho desse cara da Globo dentro do Palácio do Planalto: eu não quero ele aí dentro. Qual a mensagem que vai dar para as outras emissoras? Que nós estamos se (sic) aproximando da Globo. Então, não dá para ter esse tipo de relacionamento. Agora... inimigo passivo, sim. Agora, trazer o inimigo para dentro de casa é outra história.”
O texto presidencial, embora, como dizer, randômico, produziu um mal-estar medonho. Aturdido, o País se perguntava: que história é essa de, numa democracia, a mais alta autoridade do país se referir à imprensa como “inimiga” ao conversar com um ministro?
O estrago foi tanto que no próprio dia 19 de fevereiro, quando se tornou público que o presidente trata como “inimiga” uma empresa jornalística, o porta-voz da Presidência da República, Otávio Rêgo Barros, em coletiva de imprensa em Brasília, tentou segurar o facho do chefe. Diante de uma plateia de jornalistas, explicou-se como pôde: “A imprensa, em qualquer democracia, é um ponto de equilíbrio para a consolidação da sociedade. Absolutamente o nosso presidente enxerga a imprensa como inimiga. Ao contrário, a vê como um fortalecimento do seu governo, um fortalecimento da sociedade, e já esboçou isso várias vezes. (...) Vocês são muito importantes, vocês são parte de um projeto de um país que vai deixar de ser país do futuro e que vai ser país do presente. Eu quero agradecer ao empenho de vocês, em nome do presidente”.
A fala do porta-voz também tem um quê de errática, centrífuga, além de incongruente – imprensa não existe para fortalecer governo nenhum –, mas, de um jeito ou de outro, foi acolhida com boa vontade. O governo que aí está foi eleito legitimamente, dentro da legalidade. Quando seus representantes se portam com urbanidade, os diálogos fluem como devem fluir. Os jornalistas, em geral, é bom que se repita, são pessoas de bom trato. A postura de procurar descobrir o que as autoridades prefeririam esconder faz parte do ofício e, mais ainda, é indispensável para a normalidade democrática. Jornalistas existem para desvelar o que o poder esconde. É assim que funciona, embora o dirigente máximo do Poder Executivo federal pareça não dispor de meios para compreender.
Os sinais entrópicos que ele emite sobre a matéria são de estarrecer as paredes. Outro dia mesmo, em seu Twitter, agora convertido em órgão de Estado, usou o termo “canalhice” para se referir a um texto jornalístico do qual discordou. A cada três dias, conforme levantamento do Estado em sua edição de terça-feira, o Twitter presidencial dispara contra a mídia.
Vai se fixando assim a impressão geral de que, na opinião dele, a imprensa que não serve ao “fortalecimento do seu governo” deve ser tratada como “inimiga”. O improvável leitor que não se engane: dessa opinião presidencial vai se erigindo o que potencialmente já se apresenta como um dos mais sérios entraves à estabilidade política. Um governante que não compreende a liberdade de imprensa não compreende o que é democracia. E um governante que não compreende o que é democracia tenderá a atropelar direitos e liberdades aqui e ali. Vai atropelá-los por atos, por palavras, por omissões, ou simplesmente por despreparo.
Eis então que, depois de lançar desaforos contra a Folha de S.Paulo, depois de ofender as Organizações Globo, depois de xingar repórteres e editores, ele agora resolveu apontar sua insídia contra este jornal, O Estado de S. Paulo. Valendo-se de uma fake newsescabrosa, atentou nominalmente contra a reputação profissional da repórter Constança Rezende, acusada de tentar “arruinar” seu governo. A boataria caluniosa contra Constança Rezende, endossada por ele, já foi reiteradamente esclarecida e desmentida. Mesmo assim, não se ouviu um pedido de desculpas do Palácio do Planalto.
Cada dia mais, o estilão de brucutu digital de Sua Excelência faz lembrar a falta de polidez de Rafael Corrêa, no Equador, ou de Hugo Chávez e Nicolás Maduro, na Venezuela, que iam (ou ainda vão) ao ar em cadeia nacional de rádio e televisão para vituperar contra repórteres. Há também semelhanças com Benito Mussolini, desgraçadamente.
Tanta brutalidade não é só grosseria. O que está em preparação no Brasil ultrapassa em muito a falta de educação. Não são jornais e emissoras de televisão que estão sob ataque cerrado. É a instituição da imprensa, com tudo o que ela tem de mais essencial. Sim, a democracia corre risco no Brasil.
Chacina em escola é sinal de crise de civilidade
Um frêmito de horror percorre o noticiário sempre que o fenômeno dá as caras. Passado o susto, as pessoas viram a página. Para trás. E esperam anestesiadas pelo surgimento do próximo atirador ensandecido. Segundo a contabilidade provisória, morreram dez na escola de Suzano. Em dezembro de 2018, um atirador matou quatro fiéis após a missa, na Catedral Metropolitana de Campinas (SP). Suicidou-se em seguida.
No ano anterior, em outubro de 2017, oito crianças e uma professora morreram depois que um segurança tocou fogo numa creche na cidade de Janaúba (MG). Registraram-se espasmos do mesmo surto aqui e ali —em Goiás, no Paraná… Eram reincidências menores da matança de abril de 2011, quando um homem entrou numa escola de Realengo (RJ) para passar 11 estudantes nas armas.
A banalização da violência é coisa muito velha no Brasil. Mas os mortos não tinham rosto. Escondiam-se atrás de estatísticas que a rotina confinava nos rodapés das páginas de jornal. Só de raro em raro a imagem da penúltima chacina na periferia das grandes cidades pegava o país desprevenido no Jornal Nacional, entre uma novela e outra. De cadáver em cadáver, construímos uma ruína típica de guerra.
Nos últimos 11 anos, 553 mil pessoas foram assassinadas no Brasil. Na Síria, que convive com um conflito armado há mais de sete anos, morreram 500 mil no mesmo período. O maior crime dos assassinos de escolas, creches e igrejas foi o delito de injetar no faz-de-conta da classe média uma dose de realidade. Difícil localizar no tempo o momento da virada. Mas tudo indica que o marco inaugural do novo ciclo ocorreu há quase duas décadas.
Em novembro de 1999, um estudante matou três e feriu cinco num cinema, em São Paulo. Conspurcou o templo sagrado da elite paulistana: o shopping center. Armado de metralhadora, produziu uma tragédia com a qual o brasileiro bem-nascido não estava acostumado. Ficou entendido que, a partir dali, o inferno era o limite.
O Brasil via no genocídio em conta-gotas da periferia um processo de auto-regulação da pobreza. Enxergava os corpos sem rosto como vítimas necessárias de um projeto não-formalizado de planejamento familiar. A chacina do shopping violou a regra do jogo. De repente, os cadáveres tinham nome e sobrenome. O sangue respingou nos sapatos chiques. Foi como se o tubo de imagem da TV, refúgio sempre tão seguro, sugasse o pedaço elegante da sociedade para o centro da cena, num absurdo processo de inclusão. Todos tinham virado parte do mesmo filme macabro.
A crise civilizatória do Brasil não parou mais de piorar. Bondade e solidariedade viraram gêneros de primeira necessidade. As pessoas andam mal-humoradas. Alunos agridem professores e vice-versa. Conversa entre membros da mesma família vira bate-boca. Por vezes, descamba para a troca de tapas. O debate político só é considerado eficiente quando uma parte consegue obrigar a outra a calar a boca. E o presidente da República acha que a solução para a violência é disseminar a posse de armas. O Brasil tornou-se uma prova de que países também enlouquecem.
Shakespeare em Niterói
Quando eu morava no bairro do Ingá nesta Niterói que ninguém quer conhecer, o Dr. Artur, um senhor muito rico, que vendia carros e colecionava selos, adorando enganar meninos igualmente colecionadores, resolveu encenar Shakespeare. Como morava num casarão com uma ampla garagem, sua ideia de encenar o bardo inglês em Niterói entusiasmou. Seria um mero “teatrinho de rua”, embora o autor seja extraordinariamente complexo, repetia o Dr. Artur adocicando sua fantasia.
Diante da possibilidade de recriar o mundo debaixo do controle de um texto que, na verdade, constitui as tais circunstâncias nas quais nossos projetos de vida se fazem (ou desfazem) no mundo real, as antipatias entre os vizinhos “dados” ou “metidos a sebo” sucumbiram diante da magia da ribalta.
O local no qual a peça seria “levada” não era problema porque o Dr. Artur cedeu a garagem e garantiu as vestimentas e os cenários. A garagem seria o palco; um enorme tapete velho, a cortina sem a qual nada tem início, meio e fim e não há teatro, de modo que o único problema era eleger a peça e os atores.
Dr. Artur e Mr. Bates, um inglês que residia em frente da casa de vovô e tinha uma filha de 20 anos que adorava nos dar beijos de língua, elegeram Hamlet e eu me lembro do debate, porque muitos achavam impossível e impróprio levar à cena aquele “dramalhão” que, além do mais, era estrangeiro. Alguns, como seu Gonzaga, defensores implacáveis da “cultura nacional”, queriam um autor brasileiro. Mas seus argumentos sobre a complexidade dos temas e a dificuldade de “fazer Shakespeare em Niterói” perderam para o prestígio endinheirado do Dr. Artur e para a pose britânica de Mr. Bates.
A coisa, porém, enguiçou quando dona Francisca perguntou, num misto de piada e bom senso, quem iria fazer o papel de Hamlet. Para o Dr. Artur, o príncipe vingador seria seu neto, Arturzinho. Para ele, o papel mais adequado seria o do Rei Claudio, o envenenador do irmão. Minha avó Emerentina queria que meu tio Mario tivesse papel central, enquanto o inglês, o único que havia assistido ao drama em Londres, dizia que Hamlet teria de ser dado a uma pessoa mais experiente. Em suma: ele próprio. Houve um certo mal-estar civilizatório, mas, como sempre, venceu o poder do proprietário e o netinho foi escolhido para ser o tresloucado príncipe vingativo que recita o célebre “To be or not to be” no Terceiro Ato.
Foi quando todos se lembraram que, além de quase 50 personagens (ou seja, toda a rua), Arturzinho era gago!
Um papel daquele calibre exige um ator adequado. Ele pode ser um imbecil diante do mundo e da política, o que – disse tio Mario – é muito comum, mas tem de estar consciente do papel.
Democracia não é peça de teatro de rua. É um regime revolucionário, difícil, fundado – como viu Tocqueville – na igualdade, na dissidência, na ideia básica de servir e na interdependência de poderes com funções específicas, mas complementares. Tanto no Legislativo quanto no Judiciário e, obviamente, no Executivo existem papéis especiais que demandam talentos igualmente singulares. Sobretudo o que mais falta no Brasil: a consciência dos seus limites e conflitos em função de suas metas.
O papel que mais salta aos olhos é, claramente, o de Executivo. O de prefeito, governador e presidente. Tal como ocorre com o do papa e com o dos reis, esses são cargos solitários, justamente porque são desempenhados por um só ator. Daí decorre uma imensa visibilidade ao lado de uma enorme vulnerabilidade.
O ator tem de se superar. O gago, como foi o caso do Arturzinho, foi curado, o nervoso precisa de psicólogo, o ignorante de bons conselheiros, o intempestivo e beligerante de figuras que lhe conscientizam que o momento brasileiro requer paz.
No caso da Presidência, o papel não é apenas complexo. É muito difícil porque faculta uma autoridade que pode ser lida como onipotência, mas, ao mesmo tempo, obriga a um extraordinário controle porque em democracias o presidente é aquele que mais representa e inspira confiança, não o que manda mais...
*
PS: O Hamlet do Dr. Artur foi encenado ao modo niteroiense. Foi, como disse Tia Lucília, passável...
Diante da possibilidade de recriar o mundo debaixo do controle de um texto que, na verdade, constitui as tais circunstâncias nas quais nossos projetos de vida se fazem (ou desfazem) no mundo real, as antipatias entre os vizinhos “dados” ou “metidos a sebo” sucumbiram diante da magia da ribalta.
O local no qual a peça seria “levada” não era problema porque o Dr. Artur cedeu a garagem e garantiu as vestimentas e os cenários. A garagem seria o palco; um enorme tapete velho, a cortina sem a qual nada tem início, meio e fim e não há teatro, de modo que o único problema era eleger a peça e os atores.
Dr. Artur e Mr. Bates, um inglês que residia em frente da casa de vovô e tinha uma filha de 20 anos que adorava nos dar beijos de língua, elegeram Hamlet e eu me lembro do debate, porque muitos achavam impossível e impróprio levar à cena aquele “dramalhão” que, além do mais, era estrangeiro. Alguns, como seu Gonzaga, defensores implacáveis da “cultura nacional”, queriam um autor brasileiro. Mas seus argumentos sobre a complexidade dos temas e a dificuldade de “fazer Shakespeare em Niterói” perderam para o prestígio endinheirado do Dr. Artur e para a pose britânica de Mr. Bates.
A coisa, porém, enguiçou quando dona Francisca perguntou, num misto de piada e bom senso, quem iria fazer o papel de Hamlet. Para o Dr. Artur, o príncipe vingador seria seu neto, Arturzinho. Para ele, o papel mais adequado seria o do Rei Claudio, o envenenador do irmão. Minha avó Emerentina queria que meu tio Mario tivesse papel central, enquanto o inglês, o único que havia assistido ao drama em Londres, dizia que Hamlet teria de ser dado a uma pessoa mais experiente. Em suma: ele próprio. Houve um certo mal-estar civilizatório, mas, como sempre, venceu o poder do proprietário e o netinho foi escolhido para ser o tresloucado príncipe vingativo que recita o célebre “To be or not to be” no Terceiro Ato.
Foi quando todos se lembraram que, além de quase 50 personagens (ou seja, toda a rua), Arturzinho era gago!
Um papel daquele calibre exige um ator adequado. Ele pode ser um imbecil diante do mundo e da política, o que – disse tio Mario – é muito comum, mas tem de estar consciente do papel.
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Tempos depois, quando eu aprendi com alguns antropólogos americanos, e com o próprio Shakespeare, que todos atuamos no mundo por meio de papéis que nos são atribuídos por nossas sociedades, foi que me dei conta dessa discussão que sempre invoco quando tento compreender a nossa hamletiana sociopolítica.Democracia não é peça de teatro de rua. É um regime revolucionário, difícil, fundado – como viu Tocqueville – na igualdade, na dissidência, na ideia básica de servir e na interdependência de poderes com funções específicas, mas complementares. Tanto no Legislativo quanto no Judiciário e, obviamente, no Executivo existem papéis especiais que demandam talentos igualmente singulares. Sobretudo o que mais falta no Brasil: a consciência dos seus limites e conflitos em função de suas metas.
O papel que mais salta aos olhos é, claramente, o de Executivo. O de prefeito, governador e presidente. Tal como ocorre com o do papa e com o dos reis, esses são cargos solitários, justamente porque são desempenhados por um só ator. Daí decorre uma imensa visibilidade ao lado de uma enorme vulnerabilidade.
O ator tem de se superar. O gago, como foi o caso do Arturzinho, foi curado, o nervoso precisa de psicólogo, o ignorante de bons conselheiros, o intempestivo e beligerante de figuras que lhe conscientizam que o momento brasileiro requer paz.
No caso da Presidência, o papel não é apenas complexo. É muito difícil porque faculta uma autoridade que pode ser lida como onipotência, mas, ao mesmo tempo, obriga a um extraordinário controle porque em democracias o presidente é aquele que mais representa e inspira confiança, não o que manda mais...
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PS: O Hamlet do Dr. Artur foi encenado ao modo niteroiense. Foi, como disse Tia Lucília, passável...
Velhos trastes do Brasil
Em 1948, quando começaram a demolir as casas térreas para construir os edifícios, nós, os pobres que residíamos nas habitações coletivas, fomos despejados e ficamos residindo debaixo das pontes. É por isso que eu denomino que a favela é o quarto de despejo de uma cidade. Nós, os pobres, somos os trastes velhosCarolina Maria de Jesus (1914-2019)
O governo tem rumo, o da crise
Como se planejasse dificuldades, o ministro Paulo Guedes anunciou que pretende propor a desvinculação das despesas orçamentárias. Nova emenda constitucional. Tem mais. Uma medida provisória determinou que as contribuições sindicais não podem ser descontadas na folha de pagamento dos trabalhadores. Ótima ideia, porque a nobiliarquia do sindicalismo quer que os trabalhadores tenham todos os direitos, menos o de decidir se contribuem para suas guildas. O fim do desconto compulsório abalará todos os sindicatos, que bem ou mal, devem cuidar dos interesses dos trabalhadores. Para evitar esse colapso surgiu outra boa ideia, acabar com a unicidade que obriga que cada categoria tenha um só sindicato por município. Em tese, havendo competição, o sistema funcionará melhor. Para o estabelecimento da pluralidade será necessária uma terceira emenda constitucional.
Vistas separadamente, cada uma dessas propostas faz sentido. Juntas, coligam os interesses dos sindicalistas, dos marajás da Previdência às corporações da saúde ou da educação. Separados, esses blocos podem ser batidos. Juntos, até hoje estão invictos.
Há na pregação do ministro Paulo Guedes algo de José Wilker no comando da inesquecível caravana Rolidei do "Bye Bye Brasil" de Cacá Diegues. Quem viu o filme lembra que no seu momento de glória poética o Lord produziu o supremo símbolo da modernidade: neve.
A plataforma reformista de Guedes tem suas próprias dificuldades, mas a elas somou-se à natureza errática do próprio presidente, que não pode ver casca de banana sem atravessar a rua para escorregar nela. Em menos de cem dias, Bolsonaro viu-se encoberto pela névoa de um possível controle palaciano. É a velha lenda segundo a qual grandes ministros são capazes de controlar presidentes. Donald Trump está aí para demonstrar a futilidade dessa ideia.
No Brasil, a teoria do controle interno teve dois grandes fracassos e um êxito. Pensou-se que Fernando Collor seria controlado. Deu no que deu. Antes dele, pensou-se em blindar o comportamento errático do general João Figueiredo. A trama derreteu em menos de um mês.
O controle funcionou no caso do general Emilio Médici. De 1969 a 1974, quando ele presidiu o Brasil, mandaram os professores Delfim Netto (na economia), João Leitão de Abreu (na administração) e o general Orlando Geisel (nas Forças Armadas). A manobra só deu certo porque foi voluntária e sincera. Médici, que não queria ser presidente, decidiu delegar esses poderes. Ao decidir não mandar, mandou como poucos, até porque tinha o cajado do Ato Institucional nº 5. Faltam a Bolsonaro não só o AI-5 como a disciplina circunspecta de Médici. (Vale lembrar que, sabendo o risco que corria por ter dois filhos adultos, levou-os para o quartel do Planalto. De um deles, Roberto, pouco se falou. Do outro, Sérgio, nada.)
O governo Bolsonaro parece sem rumo. A má notícia é que seu rumo pode vir a ser o de uma crise.
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