sábado, 21 de junho de 2025

Atrás da cortina

Em média, um cidadão europeu consome, em cada ano, 30 000 kW de energia. Um americano, mais do dobro. O número per se é difícil de alcançar ‒ não é tangível. Numa tentativa de materializar o valor, fazem-se cálculos. Um dos mais expressivos é calcular em força humana o que tal significa. O que representaria ter as mesmas comodidades, sem energia barata, mas apenas com força braçal. Cada europeu teria, no mínimo, ao seu serviço 500 homens, 10 horas por dia… segundo estimativas conservadoras.

Multiplique-se esse valor por milhões de pessoas e não admira que estejamos a viver uma catástrofe climática (ora que os termos “aquecimento global” ou “alterações climáticas” nos parecem eufemismos, quando diariamente nos chega mais uma notícia de uma inundação de proporções bíblicas ou de um glaciar que colapsou sobre uma aldeia nos Alpes).


Este consumo de energia está agora à beira de aumentar exponencialmente em resultado da Inteligência Artificial e, de acordo com a informação mais recente, não será com energia limpa. Estima-se que alimentar os data centers ‒ onde são treinados os modelos de LLM (Large Language Models) e processados os pedidos dos utilizadores – implicará, até 2028, um aumento de 20% do consumo de energia, só nos Estados Unidos da América. Embora as Big Tech anunciem o seu compromisso com a neutralidade carbónica nas próximas décadas, tal não é coerente com os projetos de construção de centrais de gás natural em marcha, para garantir uma utilização 24 horas, 7 dias por semana. E sendo certo que em média tais centrais têm uma vida útil de 30 anos, irão certamente manter-se em funcionamento, mesmo que no entretanto as centrais nucleares planeadas sejam efetivamente construídas. Curiosamente, a energia nuclear é agora apresentada como “limpa” e “segura”, não obstante os problemas conhecidos com o tratamento dos resíduos em Fukushima e Chernobyl serem acontecimentos relativamente recentes, cujas regiões continuarão, para sempre, como zonas interditas, dado os níveis de radiação.

Mas é inevitável que assim seja? Na verdade, não. É um tema de planeamento de fontes de produção e regras de utilização. A produção elétrica encontra-se dimensionada para os picos de utilização e, em média, apenas 53% da energia produzida é efetivamente utilizada. Igualmente os picos de grande intensidade de utilização não representam mais de 80 a 90 horas ao longo do ano (dados do Electric Power Research Institute – um centro de investigação norte-americano).

Um estudo recente, da Duke University, demonstra que uma utilização mais flexível da energia pelos data centers permitiria absorver o aumento do consumo, sem aumentar significativamente a capacidade de produção. Mas para tal será necessário os reguladores intervirem, pois as Big Tech insistem em poder oferecer os seus serviços 24 horas, 7 dias por semana, sem flutuações, interrupções ou limitações. Mas sendo a segurança energética e a sustentabilidade climática um problema de todos, é razoável que as políticas de produção energética sejam determinadas por um número restrito de empresas, apostadas apenas em maximizar o lucro?

A Europa prepara-se para investir na sua própria infraestrutura de data centers, de forma a treinar os seus modelos LLM (assegurando autonomia estratégica), e as Big Tech norte-americanas já anunciaram investimentos nos seus data centers localizados na Europa. É, por isso, fundamental assegurar que tal não implicará um aumento do consumo de energia fóssil que ponha em causa os compromissos de descarbonização. Igualmente importa compreender como será determinada a tarifa aplicável às Big Tech. Nos EUA, as Big Tech estão a celebrar contratos privados de forma a garantir tarifas especiais, na prática, transferindo para o retalho o custo das novas estruturas. Importa exigir transparência na efetiva energia consumida (a treinar modelos, a responder a questões, a gerar fotos e vídeos) e regular as fontes de energia, de forma a planear adequadamente; agora que a utilização da Inteligência Artificial se torna cada vez mais presente e o seu uso impossível de evitar.

A vingança dos barões

Em artigo recente, Robert ­Reich, ex-secretário do Trabalho de Bill Clinton, desvelou a reiterada ocupação do Estado norte-americano pela oligarquia dos ricaços. Entre perplexo e indignado, Reich escreveu: “Trump escolheu 13 bilionários para seu regime. É o mais rico da história, incluindo a pessoa mais rica do mundo. Eles e Trump fazem parte da oligarquia norte-americana.”

Reich identifica o predomínio econômico-político dos mais ricos desde a fundação da República. “Muitos dos homens que fundaram os Estados Unidos eram oligarcas brancos escravistas. A maioria dos brancos era composta de agricultores, servos contratados, trabalhadores rurais, comerciantes, diaristas e artesãos. Um quinto da população norte-americana era negra, quase toda escravizada.”


O democrata prossegue. Entre o fim do século XIX e o início do XX, escreve, “emergiu a nova oligarquia norte-americana, composta de ricaços que acumularam fortunas por meio de seus impérios ferroviário, siderúrgico, petrolífero e financeiro – homens como John Pierpont Morgan, John D. Rockefeller, Andrew Carnegie, Cornelius Vanderbilt e Andrew Mellon. Foi chamada de Era Dourada”.

Os ricaços corromperam o governo, suprimiram brutalmente os salários, geraram níveis sem precedentes de desigualdade e pobreza urbana, saquearam rivais, eliminaram concorrentes e se comportaram como bandidos, por isso ganharam o apelido de “barões ladrões”. A Primeira Guerra Mundial e a Grande Depressão da década de 1930 corroeram a maior parte da riqueza dos barões ladrões e grande parte de seu poder foi eliminado com as reeleições de Franklin Delano Roosevelt.

Roosevelt enfrentou com coragem e sabedoria a Grande Depressão. Em seu discurso de 1936, proferido na campanha para a primeira reeleição, desferiu ataques aos poderes da oligarquia, poderes que precipitaram a crise de 1929. “Mais da metade da riqueza corporativa do ­país estava sob o controle de menos de 200 grandes corporações”, afirmou. “Isso não é tudo. Essas grandes corporações, em alguns casos, nem tentaram competir entre si. Eles próprios estavam conectados por diretores, banqueiros e advogados interligados. Essa concentração de riqueza e poder foi construída sobre o dinheiro de outras pessoas, os negócios de outras ­pessoas, o trabalho de outras pessoas. Sob essa concentração, os negócios independentes só podiam existir por sofrimento. Tem sido uma ameaça ao sistema social, bem como ao sistema econômico que chamamos de democracia norte-americana.”

Roosevelt dizia que a moderna civilização, depois de demolir as velhas dinastias, erigiu outras. “Novos impérios foram construídos a partir do controle das forças materiais. Mediante o novo uso das corporações, dos bancos e da riqueza financeira, da nova maquinaria da indústria e da agricultura, do trabalho e do capital – nada disso foi sonhado pelos fundadores da pátria –, a estrutura da vida moderna foi totalmente convertida ao serviço da nova realeza. Não havia lugar nos seios da nova nobreza para abrigar os milhares de pequenos negócios e comerciantes que desejavam fazer um uso sadio do sistema norte-americano de livre-iniciativa e busca do lucro.”

Ficou exposta a fratura entre a “classe financeira” de Wall Street, as carências da indústria e os interesses da grande maioria da população, barbaramente maltratada pelo desemprego.

No New Deal, o poder e o prestígio de Wall Street chegaram ao fundo do poço, como atestam as seguidas manifestações iradas contra a ganância dos banqueiros. Roosevelt atacou os “príncipes privilegiados” das novas dinastias econômicas. “Sedentas de poder, elas se lançaram ao controle do governo. Criaram um novo despotismo envolvido nas roupagens da legalidade. Mercenários a seu serviço trataram de submeter o povo, seu trabalho e sua propriedade.”

A política econômica de Roosevelt significou a vitória do indivíduo-cidadão sobre o individualismo selvagem dos que se enriqueceram à farta nos ciclos anteriores de prosperidade. O cidadão-trabalhador não deveria mais ficar à mercê das idiossincrasias do mercado, dos caprichos do processo de concorrência. A sindicalização incentivada por Roosevelt impulsionou a elevação dos salários reais e, ao mesmo tempo, o Social Security Act de 1935 passou a proteger os mais débeis “dos sérios problemas criados pela insegurança econômica na sociedade industrial”. A elevação da carga tributária e o caráter progressivo dos impostos surrupiaram a renda dos mais ricos.

Donald Trump dedica-se à reconstrução dos poderes da oligarquia econômico-financeira. Esse propósito está se afirmando na destruição das instituições ocupadas em garantir os direitos sociais e econômicos dos menos favorecidos.