sábado, 26 de maio de 2018

A caminho do brejo

Um país não vai para o brejo de um momento para o outro — como se viesse andando na estradinha, qual vaca, cruzasse uma cancela e, de repente, saísse do barro firme e embrenhasse pela lama. Um país vai para o brejo aos poucos, construindo a sua desgraça ponto por ponto, um tanto de corrupção aqui, um tanto de demagogia ali, safadeza e impunidade de mãos dadas. Há sinais constantes de perigo, há abundantes evidências de crime por toda a parte, mas a sociedade dá de ombros, vencida pela inércia e pela audácia dos canalhas.

Aquelas alegres viagens do então governador Sérgio Cabral, por exemplo, aquele constante ir e vir de helicópteros. Aquela paixão do Lula pelos jatinhos. Aquelas comitivas imensas da Dilma, hospedando-se em hotéis de luxo. Aquele aeroporto do Aécio, tão bem localizado. Aqueles jantares do Cunha. Aqueles planos de saúde, aqueles auxílios moradia, aqueles carros oficiais. Aquelas frotas sempre renovadas, sem que se saiba direito o que acontece com as antigas. Aqueles votos secretos. Aquelas verbas para “exercício do mandato”. Aquelas obras que não acabam nunca. Aqueles estádios da Copa. Aqueles superfaturamentos. Aquelas residências oficiais. Aquelas ajudas de custo. Aquelas aposentadorias. Aquelas vigas da perimetral. Aquelas diretorias da Petrobras.

A lista não acaba.

Um país vai para o brejo quando políticos lutam por cargos em secretarias e ministérios não porque tenham qualquer relação com a área, mas porque secretarias e ministérios têm verbas — e isso é noticiado como fato corriqueiro da vida pública.

Um país vai para o brejo quando representantes do povo deixam de ser povo assim que são eleitos, quando se criam castas intocáveis no serviço público, quando esses brâmanes acreditam que não precisam prestar contas a ninguém — e isso é aceito como normal por todo mundo.

Um país vai para o brejo quando as suas escolas e os seus hospitais públicos são igualmente ruins, e quando os seus cidadãos perdem a segurança para andar nas ruas, seja por medo de bandido, seja por medo de polícia.

Um país vai para o brejo quando não protege os seus cidadãos, não paga aos seus servidores, esfola quem tem contracheque e dá isenção fiscal a quem não precisa.

Um país vai para o brejo quando os seus poderosos têm direito a foro privilegiado.

Um país vai para o brejo quando se divide, e quando os seus habitantes passam a se odiar uns aos outros; um país vai para o brejo quando despenca nos índices de educação, mas a sua população nem repara porque está muito ocupada se ofendendo mutuamente nas redes sociais.

A falta que um governo faz

A crise que paralisa o país neste ano eleitoral é um estímulo para que as pessoas compreendam a falta que um governo faz num país.

O governo tinha condições de prever a paralisação. Possui recursos para a inteligência e, sobretudo, tinha uma posição privilegiada para entender a evolução da crise: desde julho do ano passado estava negociando com os caminhoneiros.

Portanto, falhou nesse quesito. Sua saída seria ter um plano para permitir que, apesar da greve, o país funcionasse no essencial. Mas nunca se aprovou uma estratégia de defesa nacional, apesar de o projeto ter uma década de existência.

O Brasil foi pego de calças na mão. Mostrou-se um país vulnerável. Um plano elementar de defesa garantiria com escolta armada a saída dos caminhões com combustível. Isso aconteceu em Curitiba e, parcialmente, deu certo para manter o transporte urbano em ação, aliviando o peso dos que se deslocam para trabalhar.

O Brasil poderia estar menos dependente da gasolina. Mas congelou o projeto que impulsiona os biocombustíveis. Seduzidos pelas descobertas do pré-sal, acorrentamos nosso destino ao combustível fóssil.

Da mesma forma, o Brasil poderia ter mantido e desenvolvido suas ferrovias. Mas caiu na ilusão tão comum no Novo Mundo: uma nova opção tecnológica remete as outras para os museus.

O preço da gasolina não precisava ser tão alto. Cerca de 45% são impostos. A máquina dos governos em Brasília e nos estados não dispensa esse dinheiro porque jamais soube reduzir seus custos.

Os políticos e a elite burocrática ainda não caíram na realidade. A máquina administrativa é de um país ilusório, muito mais rico do que o país de concreto, que todos habitamos de carne e osso.

É esse país da fantasia que precisa desaparecer com a sua máquina do Estado catapultada para o mundo real. Vivemos um momento de avanços tecnológicos que poderia tornar o enxugamento dos gastos mais fácil que no passado.

Não creio que gastando mais com o país e menos com o seu governo arriscaríamos a competência ou mesmo a dignidade dos cargos.

No país real, a dignidade de uma elite governante também se mede pelo seu esforço em ser austera, pela decisão de compartilhar nossas limitações cotidianas. E não por construir um oásis particular no deserto de nossa desesperança. A ausência de um governo revela também a nossa fragilidade quando não dispomos desse instrumento. De repente, o Brasil parou, somem os alimentos, em alguns lugares também a água mineral.

É como se o país trocasse de mãos. Não só estradas, como refinarias foram bloqueadas. Uma coisa é fazer greve, outra intervir na vida dos outros e do próprio governo. Os lances ilegais não foram punidos, nem apurados os indícios da presença das grandes empresas na greve. Paradoxalmente, num momento de fragilidade como esse a sociedade encontra uma possibilidade de mostrar sua força.

Para muitos, o que se passa no universo político não interessa, o melhor é deixar de lado e cuidar da própria vida. Mas eis que uma paralisação como essa revela claramente que não existe vida própria, blindada contra os descaminhos da elite dirigente. Gasolina, alimentos, água de beber tudo isso invade a existência pessoal com seus vínculos familiares.

A greve foi um momento em que nos sentimos muito sós. Mas abre a chance de nos reunirmos em torno da ideia de um país, uma cultura, enfim, de retomar algum nível de sentimento nacional. Isso passa por uma grande sacudida no país da fantasia.

Caos

O “Partido dos Caminhoneiros” conseguiu o que MST, MTST, CUT e partidos de oposição ao governo Temer ameaçaram e não tiveram força para fazer, nem mesmo com a prisão de Lula: paralisar o País. É uma nova força política que pode ser qualquer coisa, menos um movimento de esquerda.
Assim como em junho de 2013, o protesto dos caminhoneiros também teve combustão espontânea, sem partidos por trás ou líderes carismáticos e estridentes. Ambos surgiram de repente, pegando todo mundo de surpresa e jogando o governo contra a parede.

A motivação dos milhares de pessoas que foram às ruas em junho de 2013 foi o aumento das tarifas de transportes urbanos. A dos caminhoneiros neste maio de 2018 é o aumento diário dos combustíveis, principalmente do diesel. Os dois protestos encontraram ambiente propício, foram uma fagulha em palha seca e incendiaram os governos de Dilma, primeiro, e de Temer agora. O Brasil nunca mais foi o mesmo depois daquele junho. E muita coisa pode mudar a partir deste maio.


Em 2013, homens e mulheres, jovens e velhos, gente de esquerda e de direita lotaram as ruas, e o que menos contou foram partidos e ideologias. Em 2018, há um acordo tácito entre os patrões e caminhoneiros, que fecharam estradas, produziram um efeito cascata e ameaçam com o colapso.

Litros de leite jogados fora, montanhas de hortaliças murchas, prateleiras vazias nas farmácias, tanques secos nos postos de gasolina, falta de água mineral e de combustível de aviação nos aeroportos… E os preços disparando. O que começou como um protesto de um setor, de uma categoria, virou um movimento nacional.

Produtores rurais, empresas privadas e serviços públicos foram atingidos em cheio. E o que dizer do cidadão e da cidadã, já irados com a corrupção, desconfiados com as eleições, mal-humorados com o governo e estarrecidos com o aumento da gasolina? A crise, latente, explodiu de cima a baixo.
Como só iria acontecer, o governo Temer, já tão fraco e a caminho do fim, virou o principal alvo de várias frentes autônomas e conflitantes: caminhoneiros, confederações (como a dos Transportes e da Agricultura), Congresso, a própria Petrobrás e a mais poderosa de todas, a opinião pública.

O estopim da crise foi o aumento do preço internacional do petróleo, a disparada do dólar e o trauma da Petrobrás, que afundou com Lula e Dilma não só pela corrupção, mas também pela manipulação política (ou populista) dos preços. Só que faltou cuidado.

Assim como aumento de impostos, o de combustíveis é coisa para governos fortes, o que, definitivamente, não é o caso. Para piorar, a Petrobrás não apenas impôs o aumento, como impôs um aumento diário! Pode até fazer sentido empresarial, mas foi de uma audácia política incrível. E na hora errada.
Temer ficou entre os protestos e a política de preços independente da Petrobrás. Parente ficou entre uma solução política e uma sinalização perigosa para o mercado e para os investidores da companhia, que ontem caiu 14% na Bolsa. E o fim do mundo é (ou seria) ele ir embora.

Em ano eleitoral, o Congresso, à frente Rodrigo Maia e Eunício Oliveira, aproveitou para tirar uma casquinha na crise e espicaçar ainda mais o Planalto. E os governadores? Tiraram o corpo fora.

O maior problema no fim deste governo (e no início do próximo) é a crise fiscal, o rombo das contas públicas. Como cortar impostos do diesel sem cobrir o buraco com alguma outra receita? Tira de um lado, tem de pôr do outro. E isso não é uma “maldade liberal”, é um dado aritmético e uma realidade social: quando 2 + 2 não somam 4 na contabilidade pública, quem quebra a cara é quem mais precisa do Estado brasileiro.

Brasil de hoje


Desalentados e multirraciais

Artigo em jornal, na página de opinião, tem compromisso com fatos, notícias e acontecimentos. Ao menos, para refletir e analisá-los. É diferente de literatura. Nessa, a primazia absoluta é da linguagem, na exploração de suas possibilidades, para revelar seu poder latente na busca de sentido de se estar no mundo. Ou o encantamento e os impasses da dor diante dele. Carlos Drummond de Andrade, nosso poeta maior, já ensinou: “Não faças versos sobre acontecimentos./ Não há criação nem morte perante a poesia.”

É nas palavras que a poesia vai buscar sua força e poder. Sugere ainda o poeta: “Chega mais perto e contempla as palavras./ Cada uma/ tem mil faces secretas sob a face neutra.”

Mas jornal se faz com fatos. E eles se distribuem por todos os assuntos do mundo e do nosso tempo. Vão das dificuldades geradas pelo preço de combustíveis e protestos dos caminhoneiros à festa do casamento real em Windsor. Da revelação de novas frentes de corrupção no INSS ou na merenda escolar à escalada irrefreável da violência — da Rocinha à Cidade Universitária, da execução de Marielle Franco ao bebê baleado no colo da mãe. Fatos que parecem isolados se arrumam em constelações que lhes dão novos significados. Passam da pré-campanha eleitoral e das idas e vindas de recursos e embargos nos tribunais à divulgação dos mais recentes dados numéricos. Volta e meia, nesse processo, exigem palavras novas.

E elas surgem. Às vezes, em modismos artificiais, “lacrando” agora e destinados a durar pouco. Outras, na rica e original criação popular de potência duradoura. Os meios acadêmicos volta e meia trazem ou tentam impor artificialismos como “empoderamento” — criticado por tantos ouvidos sensíveis e já acusado de ser um “embutido” vocabular ou perversão linguística.

Estes últimos dias nos brindaram com duas contribuições interessantes nesse terreno de reapropriação léxica. Novas faces secretas reveladas sob a face neutra de que falava o poeta, de vocábulos “sós e mudos/ em estado de dicionário.”


Uma delas veio de um órgão que costumamos associar a números e não às letras. Rapidamente ganhou colunas de analistas e relatórios de economistas. Mas já o poeta ensinara que “sob a pele das palavras há cifras e códigos”. O IBGE amplifica o sentido de “desalentados” e mostra que, em quatro anos, subiu quase 200% o número de brasileiros que desistiram de procurar emprego porque chegaram à conclusão de que não vão mesmo encontrar nada. Dentro do estarrecedor descalabro nacional — com seu jovem e crescente contingente nem-nem, que nem estuda nem trabalha —, ganha visibilidade e nome uma imensa parcela de nossa população. É urgente buscarmos saídas racionais, num debate adulto, que não escamoteie os dados e fatos da realidade, nem fique tentando disfarçá-la com retórica oportunista e vazia, cuja única serventia talvez seja adiar soluções necessárias e perpetuar benefícios ou privilégios de quem tem poder.

Outra boa palavra surgida agora, a fazer pensar, brotou na cobertura do casamento na família real britânica. A noiva não se contenta em ser classificada como afrodescendente ou negra, como aconteceu com Barack Obama ao assumir a Presidência americana há alguns anos — sempre a inutilmente tentar lembrar que sua mãe era branca e seu pai, africano. Mezzo a mezzo... A nova duquesa de Sussex, intensamente ciente de cada indício simbólico nos mínimos detalhes da cerimônia, faz questão de se identificar como “birracial”, assumindo a mistura afro-caucasiana. No Brasil, talvez “multirracial” seja uma palavra mais verdadeira para nos descrever, ao incorporar indígenas — sem mistificação, como ainda Drummond aconselhava a recebermos as ordens da vida.

Já abandonamos o rico termo “favela” por “comunidade”, palavra que acentua laços importantes e força coletiva, mas traz perdas conceituais, ao relegar ao esquecimento uma série de conquistas culturais e um tecido histórico substancial, em prol de terminologia mais abstrata, mais ligada a uma classificação de capilaridade social americana. Já estamos fazendo campanhas para substituir a palavra “escravo” por “escravizado”, como se o número maior de sílabas e o aspecto de particípio passado, ao se afastar do substantivo concreto, mudasse o horror, o sofrimento e a vergonha do sistema escravocrata que nos fez como país e a que foram submetidos povos i
nteiros no correr da História. E assim seguimos, mesmo desalentados e multirraciais, a patrulhar palavras, discutindo o supérfluo e acessório, e deixando de encarar o essencial.

Pode parecer uma bobagem, mas acho que, se conseguirmos nos pensar como birraciais e multirraciais, estaremos mais próximos de ver quem somos e entender o imenso valor que tem essa identidade, os caminhos que ela pode nos abrir em meio às dobras do racismo persistente. Mais uma vez, com Drummond, podemos constatar que há calma e frescura na superfície intacta das palavras. “Com seu poder de palavra/ e seu poder de silêncio”.

Ana Maria Machado

Felicidade com pouco

Embora a experiência me tenha ensinado que se descobrem homens felizes em maior proporção nos desertos, nos mosteiros e no sacrifício do que entre os sedentários dos oásis férteis ou das ilhas ditas afortunadas, nem por isso cometi a asneira de concluir que a qualidade do alimento se opusesse à natureza da felicidade.

Acontece simplesmente que, onde os bens são em maior número, oferecem-se aos homens mais possibilidades de se enganarem quanto à natureza das suas alegrias: elas, efetivamente, parecem provir das coisas, quando eles as recebem do sentido que essas coisas assumem em tal império ou em tal morada ou em tal propriedade. Para já, pode acontecer que eles, na abastança, se enganem com maior
facilidade e façam circular mais vezes riquezas vãs. Como os homens do deserto ou do mosteiro não possuem nada, sabem muito bem donde lhes vêm as alegrias e é-lhes assim mais fácil salvarem a própria fonte do seu fervor 
Antoine de Saint-Exupéry, "Cidadela"

Em que ponto estamos dos sete pilares malditos da Venezuela?

Prestem atenção nos sete pontos levantados pela organização InSight Crime para explicar como a Venezuela, primeiro sob Hugo Chávez e depois sob o desmando alucinado de Nicolás Maduro, se transformou num estado mafioso.

As semelhanças com o Brasil são assustadoras. Nós escapamos de chegar lá ou ainda podemos alcançar o nível de deterioração em que cidadãos comuns simplesmente morrem de fome, doenças ou tiros inteiramente produzidos pelo regime?

“Coletivos” criados como movimentos sociais armados
 ajudam a manter estado bolivariano

Cada leitor tem capacidade de tirar suas conclusões. Os sete pilares da maldição são os seguintes:

1. Infiltração do crime nas mais altas instâncias do estado

A InSight Crime levantou os nomes de 123 funcionários das esferas superiores da máquina do governo. Incluem-se na lista a vice-presidência; os ministérios do Interior, Defesa, Agricultura, Educação, Serviço Penitenciário, Comércio Exterior, Energia, Elétrica, Guarda Nacional, Forças Armadas, Serviço de Inteligência e PdVSA, a estatal petrolífera.

As atividades criminosas são, majoritariamente, tráfico de combustível e de cocaína, e venda de alimentos e remédios no mercado negro.

O tráfico de drogas é institucionalizado e dividido em áreas sob o controle de militares e civis. O nome Cartel de los Soles não designa um cartel ou grupo dominante do tráfico como na Colômbia ou no México.

O sol se refere à estrela dourada usada pelos generais da Guarda Nacional Bolivariana, mas a expressão é usada para designar todos os funcionários do aparato estatal envolvidos com o tráfico.

Parece uma estrela de xerife americano. Maduro usa uma quando se fantasia de comandante.

2. Evidências de cleptocracia

A palavra “evidência” é uma forma elegante de designar o estado de desgraça nacional que a rapinagem organizada produziu no país com as maiores reservas mundiais de petróleo fora do Oriente Médio.

Tal como a hiperinflação, de 18 000%, é difícil calcular exatamente o montante do “grande saque do século XXI”, na definição do colunista Nelson Bocaranda, uma brincadeira amarga com o socialismo pregado por Chávez e correlatos.

“Os cofres nacionais foram pilhados em escala industrial pela elite bolivariana”, define a InSight, mencionando um cálculo de 300 bilhões de dólares, evidentemente impossível de ser confirmado pois os ladrões são os mesmos donos dos dados oficiais.

O controle de preços e da taxa de câmbio no comércio exterior, esta eliminada em janeiro quando a “moeda” oficial já valia 23 500 menos vezes que o dólar no paralelo, foram os principais instrumentos desse assalto coletivo.

3. Transferência do poder do estado para agentes irregulares ou ilegais

Em outras palavras, o inferno descontrolado que o regime cubano criou na Venezuela – embora em seu próprio país tudo seja altamente regulado.

Com a criação dos “coletivos”, os grupos comunitários armados que no Brasil seriam chamados ironicamente de movimentos sociais, as Forças Armadas e de segurança perderam o monopólio do uso da força como fieis depositários de um instrumento concedido pela sociedade.

Depois de devidamente cubanizadas e incorporadas ao esquema “roubolucionário” em ampla escala, as Forças Armadas venezuelanas viraram um braço do regime.

Mas os coletivos permanecem. Divididos entre bairros da periferia, principalmente de Caracas, recebem armas e licença para usar a violência. Seus integrantes cobrem o rosto quando mobilizados para atacar oposicionistas ou controlar postos de votação e usam motocicletas.

São uma espécie de motoboys do mal. O mesmo sistema foi “exportado” para a Nicarágua.

Os queimadores de pneus, plantações e edifícios ocupados do Brasil nunca chegaram nem perto do nível de nocividade de seus modelos venezuelanos, mas a próxima categoria é catastroficamente conhecida entre nós: bandidos que controlam o sistema penitenciário, exercem atividades criminosas dentro e fora das cadeias e operam em coordenação com as “autoridades”.

Na Venezuela, são chamados de “pranes”. O acordo de cooperação surgiu depois de uma rebelião em que os mediadores, pela parte do governo, foram um pastor evangélico e um integrante do coletivo Las Piedritas.

O acordo com os “criminosos revolucionários” entrou em vigor em 2011, quando a deputada Iris Varela, conhecida como Comandante Fosforito, foi nomeada ministra do Serviço Penitenciário. Uma de suas qualificações aparentemente foi ser amante do mais alto escalão.

A partir daí, evidentemente, a coisa só degringolou. Como os bandidos, de novo, também são donos dos dados, só dá para ter uma ideia com cálculos não oficiais: 92 homicídios por 100 mil habitantes (no Brasil, 42).

4. Crescimento exponencial do crime organizado

O equivalente venezuelano dos grupos chamados de “comandos” no Brasil são as “megabandas”.

O crime em larga escala foi incentivado pelos motivos acima descritos, inclusive a corrupção institucionalizada. Mas seu fundamento ideológico bebe da mesma distorção do pensamento esquerdista segundo o qual a pobreza justifica e até enobrece a criminalidade.

Falsas políticas sociais criaram zonas de criminalidade livre, orwellianamente chamadas de “zonas de pacificação”. A polícia não entrava em determinadas áreas, na prática transferidas para o controle de grupos de criminosos comuns.

O pioneiro dessa “política” foi José Vicente Rangel Ávalos, prefeito de Sucre, na Grande Caracas, segundo o levantamento da InSight Crime.

Membro da elite bolivariana, filho de um ex-vice-presidente de Chávez, está na lista de 19 figurões do governo feita pelo Canadá, acusando-os de “graves violações dos direitos humanos” e corrupção. Atenção, Canadá, um dos países mais meticulosos do mundo em matéria de relações exteriores.

A retirada das forças de segurança de determinadas áreas é pregada por um conhecido campo político no Brasil. Um de seus mais frequentes argumentos é a falácia chamada de “genocídio do povo negro”, como se existissem batalhões de brancos matando pessoas com base na cor da pele.

Oficialmente, a política das “zonas de paz” na Venezuela foi cancelada. Todas continuam a ser, evidentemente, zonas de guerra.

5. Altos níveis de violência praticados por agentes estatais e não-estatais

De tão conhecido pelos brasileiros, este item praticamente dispensa explicações.

Numa de suas inúmeras farsas, Maduro lançou um programa de “operações de libertação do povo”, uma espécie de operação fantasia para combater o crime. Nem é preciso dizer o que aconteceu.

6. Exportação da criminalidade

Ao condenar à fome ou ao exílio seu próprio povo, o regime bolivariano criou legiões de pequenos contrabandistas de gasolina, mulas do tráfico de cocaína e envolvidos nas várias pontas da exploração sexual amplificada pela situação de necessidade.

Atualmente, cerca de cinco mil venezuelanos fogem do país por dia. Nesse ritmo, o número pode chegar a 1,8 milhão este ano – 5% da população do país.

As sucessivas ondas de refugiados dos milagres do socialismo do século XXI começaram com os empresários. Os que não quisessem ou conseguissem ser cooptados pelo companheiro Chávez foram simplesmente confiscados.

Depois foram os profissionais de alta qualificação, principalmente da indústria do petróleo. As classes médias com algum recurso vieram em seguida. As massas de desvalidos da hiperinflação, esfaimados mesmo com as bolsas-tudo, formam as atuais correntes humanas.

Alguns observadores acreditam que diversas camadas de bolivarianismo de raiz também já estão no mesmo caminho. Com ou sem reeleição, esta uma possibilidade inexistente, percebem que o madurismo é insustentável.

As figuras mais conhecidas estão na lista negra dos países onde historicamente os ladravazes latino-americanos procuravam estacionar o estilo de vida proporcionado por atividades ilegais, em especial a república de Miami.

Para onde irão? Onde encontrarão aliados no crime?

7. Acusações internacionais de amplo espectro de atividades criminosas

O último item da lista da InSight Crime parece quase uma formalidade. Mas reativa a urgência da questão do ponto de vista do Brasil.

De novo, onde irão se refugiar os bandidos de uma vizinhança na lonjura da selva amazônica?

Em todos os aspectos, o desastre produzido pelo chavismo na Venezuela epitomiza a desgraças latino-americanas.

Num amplo arco que vai da formação histórica de populações sem sentido de cidadania, propensas ao caudilhismo e seu companheiro de viagem, o clientelismo, até uma classe de intelectuais servis às mais delirantes teses neomarxistas, como se o original não fosse suficientemente ruim, a Venezuela bolivariana é o que nós poderíamos ser ou corremos o risco de nos transformar.

É possível também defender uma ideia oposta. Se Hugo Chávez tivesse sido acusado, investigado, julgado e condenado pelo regime intrinsecamente corrupto que criou, a catástrofe venezuelana teria sido em escala muito menor.

Mas isso nunca poderemos saber. A história real da América Latina é muito mais delirante do que a contrafactual.

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Falsa democracia

Na Itália, a Operação Mãos Limpas naufragou porque não houve mobilização da sociedade e após ser atingido o coração das organizações criminosas o corpo político reagiu estrategicamente, usou o poder de forma contundente e elaborou leis que impediram o prosseguimento do trabalho dos juízes e do Ministério Público (MP).

Legislou-se contra o bem comum, visando à autoproteção diante da letargia do povo, e as conquistas da Mãos Limpas foram por água abaixo. Esse roteiro é de pleno conhecimento do juiz Sergio Moro e dos procuradores da Lava Jato.

Temos vivido outro processo histórico, especialmente a partir de junho de 2013, quando o povo saiu às ruas – aparentemente para protestar contra um aumento de tarifa de ônibus. Logo se percebeu que os motivos eram muito mais graves: insatisfação com a política e os partidos.

Por isso foi rejeitada a PEC 37, que a Câmara, então presidida por Henrique Alves (preso por corrupção), pretendia aprovar para monopolizar a investigação criminal nas mãos da polícia, impedindo o MP de fazê-lo. Foi rejeitada por 430 x 9.

Além da rejeição da PEC 37, a Câmara aprovou naquele momento também as Leis 12.846 (anticorrupção) e 12.850 (delação premiada), mas, infelizmente, a verdade é que esse movimento teve o exclusivo objetivo de acalmar a sociedade. Quando a situação voltou a estar razoavelmente sob controle, reapresentou-se a crise de representatividade política que vivemos já há vários anos, com o descumprimento grave do papel de mandatários e partidos.


Aliás, as legendas políticas, em especial de centro e de direita, há mais de dez anos vêm rejeitando a denominação “partido” em seu nome. Querem esconder que o são. O PFL em 2007 deu início ao movimento transformando-se em DEM. Depois, o Solidariedade (2013), o Novo e a Rede (ambos em 2015). O PMDB baniu o P da sigla, assim como o PTN, que virou Podemos. Esses são apenas alguns exemplos.

No Congresso, diversas proposituras legislativas que não visam à proteção do bem comum nem à eficiência no combate à corrupção têm sido observadas nos últimos anos. Ao contrário, percebe-se nelas o objetivo de enfraquecer o sistema de Justiça e criar obstáculos ao trabalho de magistrados e do MP.

Nessa linha, a PEC 89/2015, que propunha a estranha criação de juizados de instrução presididos por delegados de polícia. Como o nome já diz, juizado é presidido por juiz, que colhe provas sob o crivo do contraditório. Para um delegado poder exercer funções de juiz deve ser aprovado em concurso para juiz, sob pena de violarmos o princípio constitucional da separação de Poderes, porque delegados são subordinados ao governador ou ao presidente e quem preside um juizado de instrução deve ser independente.

Em 29/11/2016 tivemos o público e notório pisoteamento das 10 Medidas contra a Corrupção, subscritas em projeto de iniciativa popular por quase 3 milhões de cidadãos brasileiros. E exatamente uma semana antes, à exceção de apenas quatro dos 35 partidos – Rede, PSOL, PHS e PPS –, os demais articularam anistia para todos os ilícitos praticados com caixa 2 eleitoral e pretendiam aprová-la em votação secreta. Isso só não se concretizou porque a manobra acabou vazando e a sociedade se mobilizou, reagindo fortemente contra a iniciativa.

Recentemente, sem alarde, o PL 7.448 caminhou sem discussões, sem audiências públicas na Câmara, sem debate em plenário e foi aprovado, trazendo em seu bojo simplesmente o desmantelamento do sistema de combate à corrupção, afetando especialmente o TCU, permitindo contratações com graves afrontas à lei sob o argumento de “modernização do sistema”. Seria um ataque grave ao Direito Administrativo. Nos “acréscimos do segundo tempo”, a sociedade civil virou o jogo com muita luta, conseguindo demonstrar os riscos do projeto, o que levou o presidente da República a vetar os mais escandalosos dispositivos.

O que se percebe em todas as situações é que o farol que tem iluminado o exercício do poder é apenas o da autoblindagem, como detectou a pesquisa Latinobarometro 2017 (97% dos brasileiros consideram que os políticos somente exercem o poder em próprio benefício), ganhando força, por isso, ideias como a das candidaturas avulsas.

Não foi diferente a inspiração do projeto que pretendia impedir a colaboração premiada de presos, ferindo frontalmente o princípio da isonomia, assim como o decreto de indulto presidencial “Black Friday”, que liquidava 80% das penas de corruptos numa canetada, esta contida pelo STF.

Nesse cenário surgem agora o projeto do novo Código de Processo Penal (CPP), sob a relatoria do deputado Delegado João Campos, e o “Estatuto de Responsabilidade Civil”, de autoria do deputado Hugo Napoleão (o mesmo proponente da PEC 89). São projetos que exigem extrema atenção da sociedade. Trazem questões delicadíssimas dentro de si.

O projeto do CPP (elaborado por advogados e professores) estipula prazo de duração para inquéritos, como se fosse possível haver uma tabela e como se os casos não tivessem complexidades distintas. Passou o prazo, impunidade! Além disso, a prova colhida nos inquéritos é jogada fora e desconsiderada no processo, e sem cerimônia ressuscita-se a PEC 37, pois novamente se vulnera brutalmente o poder de investigação do MP, mesmo depois de decisão do pleno do STF que o consolidou.

O “Estatuto da Responsabilidade Civil” nada mais é que o projeto do abuso de autoridade maquiado e disfarçado, que pretende, na verdade, minar a independência do Judiciário e dificultar o combate à corrupção, o que reforça as evidências de não mais vivermos uma real democracia, mas uma verdadeira tirania, em que se pretende de forma indisfarçável tornar inviável o exercício livre da magistratura e do Ministério Público no Brasil.

Caminhões levam Temer da fantasia para o caos

No dia 15 de maio, Michel temer promoveu uma celebração no Planalto para marcar o aniversário de dois anos do seu governo. Ele desperdiçou um discurso de uma hora autoelogiando-se. A crise provocada pela paralisação dos caminhoneiros demonstra que o presidente estava hospedado no mundo das fantasias. Pouco importa que os fatos o desmintam. A reação de Temer à paralisação dos caminhões veio tarde e deixou a sociedade brasileira à mercê da anarquia de um setor econômico que não enxerga nada além do próprio umbigo.

Temer é um presidente enfraquecido por denúncias de corrupção. Ele mantém uma rotina de reuniões com assessores suspeitos que se dedicam exclusivamente a reclamar dos outros e a falar bem de um governo que apodreceu. O risco de uma coisa assim dar certo é inexistente. Mas, sob Temer, o Planalto exagera na capacidade de transformar o ruim em algo muito pior.

Os caminhoneiros desafiaram a autoridade do governo. Temer abriu a negociação pedindo trégua. Depois de ajoelhar-se, entregou a alma à turma da roda presa. Cedeu desde o congelamento do diesel até um subsídio de R$ 5 bilhões para atenuar o peso do reajuste dos combustíveis até o final do ano. E as estradas continuaram bloqueadas. Só então foram acionadas as forças de segurança. O Brasil tornou-se um lugar ideal para o surgimento de um país inteiramente novo. Caos não falta. Temer é um ex-presidente da República no exercício da Presidência.