domingo, 30 de abril de 2023

Lições da História

A história recente depende tanto dos jornalistas, que relatam a primeira versão dos fatos, quanto dos historiadores, que os analisam, e os documentos de época, para daí contar a história do Brasil. Com frequência os fatos passados nos ensinam como, de acordo com a ação do presente, o futuro poderia ser diferente.

É o caso da tentativa de golpe deflagrada pelos seguidores do ex-presidente Bolsonaro em janeiro deste ano, com o objetivo de impedir que Lula pudesse assumir seu terceiro mandato presidencial. Na comparação histórica, a atuação do General Teixeira Lott, comandante do Exército, na reação à tentativa de impedir que Juscelino Kubitschek, vitorioso na eleição presidencial de outubro de 1955, assumisse a presidência da República, pode ser confrontada com os fatos ocorridos em janeiro deste ano.

Para tanto, o jornalista Pedro Rogério Moreira, membro da Academia de Letras de Minas Gerais, está lançando um livro intitulado “Lott, a espada democrática, & outros escritos pacifistas”, com base em uma longa conversa que teve em 1977 com o General Henrique Teixeira Lott em seu apartamento em Copacabana, complementada por outras, no sítio do General em Teresópolis.


A atuação de militares do entorno de Bolsonaro ainda nos surpreende, passados meses da tentativa de golpe. Vídeos divulgados recentemente provocaram a demissão do General GDias, nomeado por Lula ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, que se mostrou completamente inepto para enfrentar a crise, numa atuação que a oposição pretende atribuir a uma adesão tácita ao golpe.

Dezenas de militares que trabalhavam no GSI sob as ordens do General Augusto Heleno ainda estavam em atividade, e foram demitidos depois que os vídeos demonstraram que aderiram aos revoltosos e se recusaram a combatê-los. Uma CPI mista está para começar a revolver esses fatos, com perspectiva de crise política à frente.

A justificativa na época de JK era tão implausível quanto a alegada por Bolsonaro hoje, de que as urnas eletrônicas não eram confiáveis. Na época, tirou-se da manga da farda dos revoltosos uma carta que já não funcionara anteriormente em 1950, quando Getúlio fora eleito: a obrigatoriedade de maioria absoluta para vencer a eleição, o que não era exigido pela Constituição.

Pedro Rogério diz que decidiu retomar o tema, que mantinha inédito até então, quando assistiu à tentativa de golpe em janeiro deste ano. Diz ele: “ No dia 11 de novembro de 1955, um pequeno grupo de políticos e militares inconformados com a eleição de Juscelino Kubitschek intentou um golpe para impedir sua posse na presidência da República. Alegavam que JK não alcançara a maioria absoluta de votos (que a lei eleitoral não exigia)”.

“O Exército, legalista, reagiu em armas na defesa do eleito. JK foi empossado. O líder dos legalistas foi um general chamado Henrique Baptista Duffles Teixeira Lott. Este livro é um recorte da vida do notável soldado que batia continência exclusivamente para a pátria e para o poder civil”.

“O ideal civilista de Lott esteve presente no dia 8 de janeiro de 2023, quando os três poderes da República repeliram prontamente a violenta tentativa golpista envenenada por uma fake news semelhante à de 1955, a inverídica fragilidade da urna eletrônica. Os golpistas de outrora, civilizados, foram se refugiar num cruzador rebelde da Marinha. Os golpistas de 2023, criminosos, tiveram refúgio num acampamento militarizado de Brasília”.

A história mostra que JK governou sob ameaça de golpes, o primeiro na cidade paraense de Jacareacanga, em 1956. Três anos depois, em 1959, houve a revolta de Aragarças. Derrotados pelas forças legalistas, os sediciosos de ambas ocasiões foram anistiados por Juscelino. O golpe militar de 1964 foi uma consequência dessa série de embates entre militares golpistas e legalistas. É uma lição da história que os golpistas de hoje precisam ser punidos exemplarmente, inclusive o ex-presidente Bolsonaro, o mentor.

O vírus do fascismo

É como aquela doença que custa a ir embora e às vezes vai, mas fica sempre o vírus no ar. É isso. O fascismo é um vírus que não desaparece. Nós o evitamos com os cuidados a serem tomados e as vacinas existentes. A melhor de todas é a Democracia, com seu antídoto e elementos que evitam o mal maior. Você não fica curado, mas pode viver a vida toda com sustos previstos que te obrigam a estar alerta.

É assim que estamos tentando reconstruir um país, entrar na rota do crescimento novamente, eliminar a fome e outras situações vergonhosas e exercer o direito à cidadania que nos foi roubado faz um tempo.


Os fascistas não desistem. Dependendo da competência deles podem ser mais perigosos. Ainda não conseguimos classificar os nossos. Demonstram incompetência próxima ao cômico, mas ao mesmo tempo usam e fazem propaganda das armas, matam, agridem, ofendem e abusam das redes sociais. Continuam nos ameaçando com mentiras e com a total ignorância dos fatos e da realidade. Não querem saber e como bom gado que são só escutam o patrão. Bolsonaro bate direto no desejo deles com aquela ignorância, rudeza e violência peculiares. Roubam, se apoderam, desvirtuam com tamanha desfaçatez para satisfazer essa parcela do eleitorado que se formou na ignorância, na falta de civilidade e de humanismo. São pessoas duras, sem sensibilidade e sem projetos coletivos. Vivem a vida sem propósito maior que pisar no próximo para tentar subir um pouco mais nessa escada ilusória da classe média fascista. Eles formam a base de apoio não político, mas prático de uma ideologia da violência. Mal sabem eles que não serão nunca beneficiários de um eventual sucesso no poder.

O fascismo beneficia uma casta pequena e comandante da economia de mercado que não necessita da ajuda da classe média para sobreviver. Vive da especulação de um dinheiro que, aí sim, a classe média ajuda e contribui, mas não vê retino, ou melhor não tem cashback, para usar um termo que eles adoram.

A democracia é inimiga desde que os eleja. Eles usam, abusam, exigem que a democracia funcione para que eles tomem o poder. Criticaram a manobra parlamentar que o Senador Randolfe usou para aumentar a participação do governo na CPMI. Ora, ora, o que eles queriam? Colocar os próprios investigados para investigar. É assim que eles agem. Usam as prerrogativas democráticas para desvirtuar e ao tomar o poder acabar com ela. Já vivemos isso na tentativa de implantação do governo Bolsonaro, na eleição democrática ameaçada e na tentativa de golpe. O fascismo é esse vírus. Está ali na virada da curva espreitando. Assim como nos vacinamos contra a Covid vamos atualizar a vacina da democracia como único método eficaz de evitar essa doença.

São os indígenas que civilizam o Brasil

As populações indígenas, desde os anos 1960, têm tido uma presença crescente e diversificada na atenção dos brasileiros. À medida que se disseminou sua tragédia, a do contato com a barbárie dos falsos representantes da civilização, tornaram-se crescentemente conhecidos e cada vez mais admirados e respeitados. Os indígenas brasileiros estão anexando o Brasil à pluralidade do mundo civilizado.

Tribos desconhecidas foram descobertas e tiveram seu primeiro encontro com o homem branco. Não raro trágico. Justamente em dias passados, ao redor do Dia do Indígena, a “Folha de S. Paulo” publicou extensa matéria de Leão Serva e de Rogério Assis sobre o encontro, em 1973, dos agentes da Funai - Fundação Nacional do Índio, com os krenhakarore, na Serra do Cachimbo, na região da divisa do Mato Grosso com o Pará. Um encontro emblemático do desencontro e do desrespeito pelos nativos.


Descobriu-se que os krenhakarore, que a mídia popularizara como índios gigantes, chamavam-se Panará. Lembro-me do dia, naquele ano, em que um jornal publicou uma fotografia em preto e branco de um jovem lindíssimo, meio escondido na mata, olhando para os brancos que se aproximavam. A saga da aproximação e da iminência do encontro fora noticiada seguidamente.

Na verdade já estava começando o inferno dos Panará, que se estenderia pelos seguintes 25 anos. Todas as maldades e brutalidades que brancos têm sido capazes de cometer contra as populações indígenas os vitimaram. Começou com a gripe e a pneumonia. Depois, a fome decorrente da invasão do território, a mendicância à beira da estrada por um bocado de comida, a prostituição.

Foi tantíssima a desgraça branca que sobre eles se abateu, que seus inimigos tradicionais, os txukahamãi, os receberam e abrigaram no Xingu. E foi tanta a proteção que lhes deram, que os anularam. Teve a Funai de removê-los para uma área de seu território ancestral onde pudessem voltar a ser eles mesmos.

Um dos aspectos mais significativos desse acontecimento foi a descoberta, pelos indígenas, de que eles próprios não são seus inimigos. Inimigo é quem os priva do território ancestral e os priva de si mesmos.

Por esse tempo, quando eu fazia pesquisa em Rondônia, houve o encontro dos brancos com os suruí, que na verdade se denominam Paíter, gente. O cacique à frente de um assustado grupo dos seus aproximou-se, levantou uma das mãos para os recém-chegados e saudou-os: “Branco, eu te amanso”.

Diferentemente de uma concepção autoindulgente do branco sobre seu encontro com o indígena, no Brasil existe uma interpretação indígena do contato, em que o branco é bicho e o índio é gente. Aracy Lopes da Silva, da USP, grande estudiosa dos xavante, do Mato Grosso, lembra da dificuldade que eles tiveram para classificar os brancos entre os animais do mundo. E concluíram que pertencem à família das onças, um animal predador, que mata, come um pedaço da caça e abandona o resto.

Não é casual que os Parkatejê, do Pará, na época uma tribo em estado terminal, tenham pedido à antropóloga Iara Ferraz, que foi viver com eles, para estudá-los, que lhes explicasse como funciona a cabeça do branco e assumiram seu destino.

Antropólogos das universidades brasileiras dessa época inverteram a perspectiva antropológica, deixando-se estudar pelos indígenas para que preparassem o grande evento de sua história. Dominar os códigos e a mentalidade do branco e se propor para valer à sociedade branca como protagonistas, senhores de cultura e sujeitos da história.

Estamos vendo agora os frutos desse decisivo movimento para civilizar os brancos, o que os torna completamente diferentes de quase todas as demais minorias que vêm afirmando em sua identidade a proposta de uma sociedade brasileira da diversidade. Um outro Brasil.

Na composição do governo democrático que foi eleito em 2022 e tomou posse no dia 1º de janeiro, pela primeira vez na história do país, indígenas assumiram ministérios e secretarias.

Joenia Wapichana, de Roraima, tornou-se deputada federal. Fez há alguns anos um discurso em sua língua no STF em defesa dos direitos territoriais de seu povo. Txai Suruí, de Rondônia, é poeta e articulista da “Folha de S. Paulo”. O xamã Davi Kopenawa, Yanomami, é escritor, autor de um best-seller, “A queda do céu”. Escritores, também, são vários outros indígenas, como Daniel Munduruku e Ailton Krenak.

Diversamente do que aconteceu com os poetas negros, como mostrou o sociólogo Roger Bastide, da USP, que fizeram excelente poesia de branco, as necessidades expressionais dos indígenas estão se manifestando como poética e visão de mundo indígenas, pluralidade do Brasil, negação e superação da tirania do único.

Faça como seus canários, Anderson Torres: abra o bico e cante

A sabedoria popular ensina que suicídio anunciado não se consuma. Quem pretende matar-se ou se mata ou se arrepende, mas não anuncia. Há casos registrados no Brasil de pessoas que ameaçaram pular do alto de prédios, e como desistiram, acabaram vaiadas por multidões que aguardavam o desfecho.

Cearenses já vaiaram o sol quando ele apareceu em meio a nuvens carregadas de chuvas. Aconteceu em 30 de janeiro de 1942 na Praça do Ferreira, no centro de Fortaleza. O mundo estava em meio à 2ª Guerra Mundial, e o Nordeste esperava a passagem do Dia de São José, em 19 de março, para saber se o ano seria de seca ou não.

Era um tempo em que os mais velhos observavam os sinais da natureza para antecipar o que viria. Se o pau d’arco não florisse, o jabuti não pusesse ovos e o pássaro “joão-de-barro” fizesse sua casa com a porta virada para a nascente, com toda certeza seria mais um ano da seca que periodicamente flagelava a região desde a época do Império.

Anderson Torres, ex-ministro da Justiça do governo Bolsonaro, preso há mais de 100 dias em um batalhão da Polícia Militar do Distrito Federal, suspeito de envolvimento no golpe fracassado de 8 de janeiro último, arrisca-se a não ser mais levado a sério de tanto repetir para os que o visitam que irá se matar caso não seja solto. Vaiado não será.

Seu mais recente visitante foi o deputado federal de primeiro mandato Ubiratan Antunes Sanderson (PL-RS), um policial e presidente da Comissão de Segurança Pública da Câmara. Sanderson esteve com ele ontem à tarde, e à saída gravou um vídeo onde diz que a situação de Torres “é assustadora e muito triste”.

Segundo o deputado, o ex-ministro “está absolutamente abalado psicologicamente, não só por estar há mais de 3 meses preso, mas por estar sofrendo uma grande injustiça. Chorou todo o período em que estive com ele; nada tem a ver com o golpe, quer colaborar para que tudo seja esclarecido, e chegou a falar em suicídio”.

Nada impede Torres de colaborar com a justiça que investiga atos hostis à democracia como os de 8 de janeiro. Torres sabe exatamente o que fazer. Colecionador de pássaros, amante dos seus cantos, para ser solto basta que imite um dos seus canários: abra o bico e cante tudo o que sabe. O país lhe será grato.

O novo voo do passaralho

Uma palavra abstrusa atravessa os tempos do ofício jornalístico: passaralho. Nada elegante, mas precisa na referência vulgar à instabilidade da profissão. Desde meio século até hoje, o novato ou o veterano das redações sabe que o voo dessa ave improvável significa demissão súbita e coletiva, por motivos os mais variados. É o que tem acontecido recentemente em grandes organizações de mídia.

Se antes era apenas a decisão arbitrária do mandachuva, agora é também um dos efeitos de transformação no modelo empresarial que acompanham mudanças profundas na prática da informação pública. Primeiro vale observar que os grandes veículos (impressos, televisivos e digitais) parecem ter-se convertido ao modelo CNN: excesso de informação, sem base interpretativa capaz de articular a dispersão dos eventos noticiáveis ao real-histórico.


Numa analogia, a metástase biológica, entendida como proliferação patológica das células no câncer, pode dar uma medida do fenômeno da desinformação: a metástase informativa é a fragmentação dos fatos pela multiplicação irrelevante da notícia. Na microinformação, notícia deixa de ser projeção verossímil de um fato em função de um impulso individual, que varia do gesto bem-humorado ao boato rancoroso. Senão o surto maquinal do robô, já entre nós, precarizando a mão humana.

Essa "qualquer coisa noticiável" não é o mesmo objeto-mercadoria que faz viver o jornalismo. A modernidade da imprensa caracteriza-se por uma noticiabilidade historicamente comprometida com a sociedade civil, isto é, com a organização liberal da produção e da política. Tornar transparentes decisões do Estado, inserir o diverso na ordem dos acontecimentos, debater contradições de classe, pressionar governos são imperativos do jornalismo, que constitui a outra face da moeda democrática.

Isso sempre se fez, bem ou mal. Nesta última trilha caminha o jornalismo capaz de vender mentiras, supondo ser esse o gosto de sua audiência. O império norte-americano de Rupert Murdoch é exemplo recente. E são bastante notórios os casos brasileiros, numa conjuntura em que políticos são eleitos e mantidos nos cargos exatamente porque são mentirosos. É outra realidade, paralela, instalada pelo devir artificial do mundo. As redes sociais são o nariz de um Pinóquio catastrófico.

Trevas digitais tentam apagar o jornalismo. O passaralho, agora também tecnológico, sobrevoa cabeças patronais. Para quem mídia é só um negócio a mais, talvez pouco importe. Jornalismo, porém, é algo maior do que isso. Irá para onde vai (se for) a vida democrática. É hora então de pesquisa e de inédita parceria séria com escolas para um compromisso com vivas formas de existência além das redes.

quinta-feira, 27 de abril de 2023

Bolsonaro nunca

Jair Bolsonaro nunca brochou. Nunca defendeu a ditadura e nunca elogiou um torturador. Nunca foi um fanfarrão. Nunca promoveu selvagens motociatas para intimidar os cidadãos comuns. Nunca propagou fake news sobre as vacinas. Nunca ignorou a tragédia do povo yanomami e nunca acobertou os garimpeiros que a provocaram. Nunca corrompeu o Congresso, a PGR, a PRF, os órgãos de inteligência, juízes, ministérios, estatais e um bando de generais.


Bolsonaro nunca pregou a desobediência às decisões judiciais e nunca subiu a um palanque para xingar um ministro do STF de canalha e dizer que não acataria suas decisões. Nunca abusou do perdão presidencial para tirar da cadeia um rufião que ameaçou fisicamente outro ministro. Nunca pôs em dúvida a confiabilidade das urnas eletrônicas, e muito menos para boquiabertos embaixadores estrangeiros chamados ao Alvorada para a performance. E nunca vociferou contra sua derrota nas eleições, aceitando democraticamente o resultado das urnas.

Em nome da liberdade de expressão, Bolsonaro nunca repreendeu ou censurou seus seguidores acampados em frente ao QG do Exército, que pediam intervenção militar para a sua, dele, manutenção no poder. Ao contrário, silenciou. Da mesma forma, nunca insuflou o caos com o intuito de justificar um golpe militar. Quando seus seguidores invadiram o Congresso, o Planalto e o STF armados com facas, picaretas e barras de ferro para provocar esse caos, ele nem estava no Brasil. E quem garante que eram seus seguidores e não milhares de comunistas infiltrados?

Não há filmes, gravações, fotos, transmissões pelos canais oficiais do governo, postagens em redes sociais nem depoimentos de testemunhas que provem que Bolsonaro cometeu qualquer dos crimes acima.

Portanto, Bolsonaro não teve nada a ver com o 8/1. E, como já sabemos, nunca brochou. Só falta agora combinar com a Polícia Federal.

O mito da primeira-dama se agrava no Brasil

No Brasil, como já ocorre em alguns países latino-americanos, agudiza-se o mito das primeiras-damas, mulheres de presidentes, que de simples companheiras sentimentais ou mães de filhos, se tornaram referência, com a esperança de substituí-los no poder.

Neste momento, a questão se intensificou porque tanto a atual mulher do presidente, Rosângela da Silva, conhecida como Janja, quanto Michelle Bolsonaro, atual e terceira esposa do ex-presidente Bolsonaro, já são apontadas como possíveis futuras candidatas a chefes de Estado. Assim, acabam ocupando não só nas redes sociais, mas até mesmo na mídia tradicional, um espaço que não lhes corresponderia.

Foi Lygia Maria, do jornal Folha de São Paulo, quem deu o alarme ao lembrar que neste país nunca existiu o cargo de primeira-dama. Mulheres de médicos, engenheiros, juízes, nunca tiveram importância no papel de seus maridos. E lembrou que na Alemanha, por exemplo, ninguém nunca se importou com o papel do marido de Ângela Merkel, que sempre viveu no anonimato.

No Brasil, a questão da primeira-dama se agudizou quando coincide o fato de que tanto a mulher do derrotado Bolsonaro quanto a do vencedor já aparecem como possíveis candidatas a herdar o cargo de seus maridos. E isso à luz do dia, em proveito dos partidos dos dois, em busca de figuras carismáticas para exibir nas eleições.

A diferença entre a de Bolsonaro e a atual de Lula é que enquanto Janja, além de feminista atuante, é uma socióloga que trabalhou durante anos na estrutura do Estado e em movimentos feministas; Michelle é conhecida apenas por ser uma evangélica carismática, supostamente com dons espirituais extraordinários, como entrar em êxtase e falar línguas antigas em transe.

Segundo os políticos de seu partido, além de ser uma conservadora assumida, Michelle fala muito bem e sabe se comunicar com o grande e poderoso grupo de evangélicos, principalmente com as mulheres. Uma mulher anônima que de repente diz que gostaria de ser a Evita Perón do Brasil, e que não esconde mais sua ambição de estrear na política ativa.

Michelle é a terceira mulher de Bolsonaro e nunca houve um grande entendimento entre eles. É conhecido o desânimo do marido, claramente machista, quando depois de ter tido três filhos nos casamentos anteriores, nasceu-lhe uma filha da união com Michelle. Chegou a comentar então, sem pudor, que tinha sido um “tropeço”, já que o que ele gosta são filhos.

Agora, porém, que Bolsonaro tem quase certeza de que a Justiça o tornará inelegível por oito anos, e que sabe que não lhe será fácil encontrar um sucessor que possa dominar, ele já defende que Michelle poderia substituí-lo. E assim vai nascendo o mito, principalmente entre as mulheres, as mais pobres e evangélicas, que são maioria nas urnas.

Bem diferente é o caso de Janja, que nos três meses em que o marido está na Presidência, já protagonizou uma série de episódios até polêmicos nos quais aparece como tendo influenciado decisões de Lula, a quem acompanha em todos os momentos de sua atividade política. Ela já ocupa um cargo ao lado de Lula no Palácio do Planalto e é notória a influência que exerce sobre ele.

Lula confessou durante a campanha eleitoral que o terceiro mandato seria o desfecho de sua carreira, já que em 2026 terá mais de 80 anos e não pretende concorrer outra vez. Nem todos acreditaram, sabendo da paixão do ex-sindicalista pela política. No entanto, quer ele queira ou não, ou talvez queira, Janja aparece e até inconscientemente atua como sua sucessora natural.

Tudo isso tem seus prós e contras, pois carrega em si certa ambiguidade e arrasta não só os partidos, mas também a mídia em geral a acompanhar passo a passo, com ou sem razão, as duas mulheres no mínimos detalhes, às vezes em detrimento dos reais e graves problemas que assolam o país.

Uma amostra disso aconteceu dias atrás, durante visita de Lula a Portugal. Ao chegarem ao hotel lisboeta onde o casal se alojaria, Janja saiu por um momento e entrou numa loja de luxo, a do famoso estilista italiano Ermenegildo Zegna.

A primeira notícia que apareceu instantaneamente na mídia foi que a mulher de Lula “foi vista entrando em uma loja de luxo e saindo com um pacote de compras na mão”. E ainda dava os preços das roupas que eram vendidas na referida loja.

Tudo desmoronou em minutos quando se soube que a Janja simplesmente havia saído para procurar a loja mais próxima do hotel e comprar uma gravata azul para Lula, e que por acaso era uma loja da estilista Zegna. Mas a notícia já havia se espalhado aos trancos e barrancos em todos os meios de comunicação.

A repercussão foi tamanha que Chico Buarque, ídolo da música brasileira, um dos maiores personagens deste país e com imagem internacional, que não é conhecido por seu humor, aproveitou o momento em que Lula lhe entregou o Prêmio Camões, em Lisboa, para ironizar o episódio da gravata.

O famoso compositor e poeta, que nunca aparece de gravata, desta vez apareceu com uma. Questionado pela imprensa, respondeu ironicamente que sua mulher havia saído do hotel para comprar uma gravata para ele na primeira loja que encontrou, e que não teve outra opção a não ser usá-la.

Buarque aproveitou a ocasião para encher Bolsonaro de elegante sarcasmo. Lembrando que o ex-presidente de extrema direita havia se recusado há quatro anos a assinar o famoso Prêmio Camões que Lula agora lhe entregava, comentou: “Agradeço a Bolsonaro pela delicadeza em não querer sujar meus Camões com sua assinatura”. E acabou oferecendo seu importante prêmio a todos os artistas “humilhados e desprezados” pelo ex-presidente durante seu governo.

No centro da maior cidade brasileira, o horror impera

No domingo, o sociólogo e escritor José Henrique Bortoluci publicou nesta Folha um forte artigo-exortação, sob o título "É preciso narrar o horror".

O professor da Fundação Getulio Vargas referia-se à necessidade de falar da degradação política, social e civilizatória promovida por Jair Bolsonaro e seus cúmplices, com milhares de óbitos evitáveis durante a pandemia; rotineiros ataques incentivados contra populações indígenas; mortes causadas pela facilidade com que civis passaram a ter acesso a armas de fogo; destilação desinibida de ódio político via redes sociais.

Bortoluci tem razão em advertir para os efeitos nefastos do silêncio sobre esse passado recente e revelador do que de pior existe entre os brasileiros. É certo que o presidente de extrema direita —que por pouco não se reelegeu, aliás— foi o responsável maior pelo aprofundamento dos horrores sociais do país. Mas ele não os criou da noite para o dia: além de muitos, são renitentes.


Decerto o mais escandaloso está nas levas que vivem nas ruas das principais cidades, incorporadas à paisagem pelos que passam tratando de não vê-las e submetidas pelos governos aos mais desastrados experimentos de políticas públicas.

Segundo o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), vivem nas ruas pelo menos 280 mil brasileiros —uma Governador Valadares (MG). Os sem-nada cresceram mais de 200% entre 2012 e 2022, ou 20 vezes o aumento da população em geral no período. Tamanho inchaço tem relação direta com a prolongada crise econômica da última década e a explosão do mercado de drogas.

É de pasmar: só no fim da primeira década deste século o Brasil definiu uma linha de ação para lidar com a tragédia, dando origem à chamada Política Nacional para a População em Situação de Rua (PNPR), de 2009. Compreende uma visão atualizada de inclusão e garantia de direitos, além de estabelecer programas e formas de cooperação entre o governo federal e os municípios. No ano seguinte, o público-alvo foi incorporado ao Cadastro Único que dá acesso ao Bolsa Família; em 2011, teve abertas as portas do SUS.

Em São Paulo, onde se estima serem 48 mil os moradores em situação de rua, programas e equipamentos criados no âmbito do PNPR, ou por iniciativa do estado e do município, padecem da crônica mudança de políticas —não raro inspiradas por visões desumanas de como lidar com o problema. Varridas de um lugar para outro, as pessoas são obrigadas a desarmar a cada manhã suas tendas de dormir, enquanto praças são cercadas por grades.

No centro da maior cidade brasileira, o horror impera, o tempo todo, à vista de todos.

Deu a louca nos advogados e porta-vozes que defendem os Bolsonaro

Em menos de 48 horas, eles ofereceram duas saídas bizarras para os perrengues que enfrentam o ex-presidente e a ex-primeira dama, ambos às voltas com o escândalo das joias milionárias ofertadas pela ditadura da Arábia Saudita; e no caso específico de Bolsonaro, também com a tentativa de golpe do 8 de janeiro.

As joias de Michelle, no valor de 16,5 milhões de reais, foram apreendidas pela Receita Federal. As de Bolsonaro, que entraram ilegalmente no país, apareceram dentro de um pacote entregue nas mãos de Michelle no Palácio da Alvorada. E o que seu porta-voz disse depois de ela ter dito que desconhecia as joias?

Que o pacote, cujo conteúdo Michelle ignorava, ficou fechado dois ou três dias, abandonado sobre uma pia da cozinha do palácio. Mais tarde foi aberto. Foi quando ela soube das joias presenteadas ao marido. Quanto às joias destinadas a ela, Michelle só ouviu falar por meio da imprensa. Não as pediu, nem recebeu.


A segunda explicação bizarra: foi “sem querer”, e sob efeito de morfina, que Bolsonaro, internado em um hospital americano, postou um vídeo no Facebook de estímulo tardio ao golpe que fracassara. Com a palavra, Paulo Cunha Bueno, um dos advogados que acompanhou o depoimento de Bolsonaro à Polícia Federal:

“Esse vídeo foi postado na página do presidente no Facebook, quando ele tentava transmiti-lo pro seu arquivo de WhatsApp para assistir posteriormente. […] A postagem foi feita de forma equivocada, tanto que pouco tempo depois, duas ou três horas depois, ele foi advertido e imediatamente a retirou”.

Postado em 10 de janeiro, o vídeo questionava a lisura e a confiabilidade das eleições presidenciais de 2022. Acusava Lula de não ter sido eleito de maneira legítima pela população, mas sim por um conluio entre ministros de tribunais superiores. Bolsonaro recuperava-se de uma obstrução intestinal.

A Procuradoria-Geral da República (PGR) afirmou à época que a conduta de Bolsonaro poderia ser enquadrada no delito de incitação ao crime, previsto no artigo 286 do Código Penal e cometido por quem estimula a prática de infrações. E que tinha “o poder de estimular novas ações” contra os Poderes da República.

Ao incluir Bolsonaro nas investigações em torno do golpe, Alexandre de Moraes destacou um trecho da manifestação da PGR que diz que ele disseminou falsas informações “sobre as instituições judiciárias responsáveis pela organização dos pleitos, alegando que tramavam contra sua reeleição”.

Morfina não combina com obstrução intestinal, segundo médicos consultados pelo O Globo. É um medicamento usado contra diarreia e tem potencial de agravar o quadro de obstrução intestinal de Bolsonaro. Além disso, ela não provoca um quadro de confusão mental, a não ser se ministrada em doses elevadas.

Para a professora de farmacologia e ex-reitora da Universidade Federal de São Paulo, Soraya Smaili, a alegação é “estranha”:

“É uma argumentação ruim porque a morfina causa mais constipação, ao provocar uma diminuição na motilidade gastrointestinal.”

“Em relação ao sistema nervoso central, a morfina causa principalmente sonolência, uma certa depressão. Agora, confusão mental, só numa concentração muito alta”.

Bolsonaro já havia recebido alta do hospital quando postou o vídeo.

quarta-feira, 26 de abril de 2023

O que há de real por trás de tantos filtros e selfies?

A sueca Liv Strömquist é quadrinista e estudante de sociologia e ciências políticas. Seu trabalho é uma bênção na vida de pessoas que, como eu, amariam ter tempo de ler todos os ensaios fundamentais sobre estruturas sociais e comportamentos humanos e, portanto, jamais dispensam a chance de um excelente resumão.

As obras de Liv são compilados brilhantes de teses e pensamentos de filósofos, pensadores, psicanalistas, sociólogos e feministas. É admirável a capacidade da autora de narrar histórias, tantas vezes densas e terríveis, na forma de quadrinhos acessíveis e divertidos. Um caso raro e necessário de conteúdo intelectual com transmissão generosa.

Publicados aqui pelo selo Quadrinhos na Cia., da Companhia das Letras, seus livros trazem temas provocativos, necessários e urgentes, sobretudo para mulheres.

Em “A Origem do Mundo” (2018), compreendemos melhor o apagamento da vulva ao longo dos séculos (como complemento, ouça aqui pela Folha o podcast “Meu Inconsciente Coletivo” com a participação da psicanalista Alessandra Affortunati Martins). Em “A Rosa mais Vermelha Desabrocha”(2021), uma apaixonada que acabou de levar um pé na bunda tem a sensação, ainda que ilusória, de que finalmente entendeu tudo sobre relações amorosas.

Agora, em “Na Sala dos Espelhos“, seu livro recém-lançado no Brasil, Strömquist examina, com a ajuda de Susan Sontag, Naomi Wolf, Simone Weil e Eva Illouz, o poder das redes sociais e das influencers de moda e beleza. Para tal, analisa o mito bíblico de Jacó; a madrasta da Branca de Neve; Sissi, a bela imperatriz Isabel da Áustria, a morte de Marilyn Monroe e até a beleza zilionária de Kylie Jenner, a mais linda das irmãs Kardashian.


Num país onde poucas pessoas têm o hábito semanal de comprar livros e a maioria da população curte mesmo é uma rede conhecida de roupas fast fashion (à custa de trabalhos análogos à escravidão), seria interessante discutir o que mais alimenta hoje o nosso gasto desenfreado e por impulso: o instinto competitivo gerado pelas redes sociais.

Segundo Liv (e o antropólogo René Girard), nos livramos de tantas restrições do passado (religiosas, por exemplo) e temos tanta liberdade para desejar que muitas vezes não sabemos o que escolher.

E é aí que entra o “prestígio de um mediador”, o qual, através de seu status (de pessoa bonita, amada e bem-sucedida), passa para qualquer objeto a sua fake luz divina e gera o “desejo mimético” de ser copiado, imitado, ainda que muitos seguidores nem gostem tanto daquela pessoa e muitas vezes a esculachem em posts cheios de bile: “O sujeito nutre sentimentos conflitantes por seu modelo, um misto de admiração submissa e rancor intenso”.

Outra maluquice, amplificada perigosamente pelo vício nas redes, é a necessidade que temos de nos manter o mais longe possível do nosso complexo de inferioridade e, para tal, de nos considerarmos “magros” e “sexies” o tempo todo.

Isso é fácil de entender quando pensamos nas pessoas que consideram a beleza dita padrão “a principal segurança contra a solidão” e que, dependentes de namoros e casamentos, fogem “da ameaça de morte metafórica, isto é, do abandono”.

Mas, para Strömquist, “muita gente nem está interessada em viver um relacionamento”. E se comportam como adictas da sensualidade apenas porque tal performance no capitalismo tardio (sobretudo nas telas do celular) “se desvinculou da função de atrair um parceiro e virou uma qualidade em si mesma, indicadora de status ou, se poderia até dizer, de seu valor como ser humano”.

A conclusão mais importante ao final desse livro riquíssimo de informações é que, na falta de projetos coletivos para um país, o que resta a cada indivíduo é ser orientado por desejos robóticos e mecânicos, nos quais ele, invejoso e competitivo, copia o desejo de uma pessoa que é paga para convencer alguém de que sabe desejar. E nisso compramos e compramos. Nos deprimimos mais e mais. Nutrimos uma obsessão primitiva por celebridades. Fazemos mais e mais selfies. E seguimos nos perguntando, ao final do dia, quem somos e o que queremos.

Genocídio no Paraguai

Soldadinho paraguaio
Que luta terrível entre a piedade cristã e o dever militar! Nossos soldados diziam que não lhes dava gosto lutar contra tantas crianças.

O campo ficou repleto de mortos e feridos do lado inimigo, entre os quais nos causava muita pena, pelo número elevado, os soldadinhos, cobertos de sangue, com as perninhas quebradas, alguns nem sequer haviam atingido a puberdade
General  Dionísio Cerqueira, que participou da batalha  de Acosta Ñu, "uma das mais terríveis  da história militar do mundo", no século XIX contra o Paraguai 

Congresso dá largada à CPI para provar que a Terra não é plana

A eleição de Jair Bolsonaro em 2018 instalou no Brasil a infeliz necessidade do gasto rotineiro de tempo e recurso para debates sobre temas os mais desmiolados possíveis.

Se em um passado não tão distante as tolices eram descartadas em segundos, apenas assentindo com a cabeça ou soltando um "complicado", um "que coisa", ou algo que o valha, a técnica ficou mais "complicada" em se tratando de um presidente da República.

Com isso, organizaram-se debates, simpósios, palestras, congressos, campanhas, investigações, relatórios, dossiês, reportagens, documentários e um sem-fim de esforços humanos para provar que jamais houve fraude comprovada em urnas eletrônicas, que remédio para malária e lombriga não cura a Covid e que o nióbio não é a chave para transformar o Brasil no novo El Dorado mundial.


Apesar de Bolsonaro não ser mais presidente, seu legado continua vivo, prova é que nesta quarta (26) o Congresso dá início a uma CPI mista para investigar as responsabilidades pelo 8 de janeiro.

Obra do bolsonarismo, que pretende emplacar a desavergonhada tese de que não foram eles quem entupiram QGs de Exército de golpistas, criados e cultivados após anos de meticulosa pregação antidemocrática, nem os moveram rumo ao golpe —haveria um sujeito oculto por trás da tramoia, e veja só, é o atual governo.

Mais uma vez mover-se-ão incalculáveis recursos humanos para "provar" em até 180 dias —o possível prazo da CPI— que a Terra não é plana, ou seja, que não há responsável maior pela lambança toda do que ele mesmo, Jair Messias Bolsonaro.

Qualquer outro erro de segurança no 8 de janeiro é gota d'água no oceano de culpa do ex-presidente.

Todo esse trabalho, porém, de nada adiantará para o bolsonarismo. Dialogar com esse grupo, como ensina a conhecida metáfora, é como jogar xadrez com pombos. Eles defecarão no tabuleiro, derrubarão as peças e ainda sairão batendo asas gritando vitória.

Casal que mente unido, como os Bolsonaro, acaba desmascarado

É sobre contrabando, não sobre joias presenteadas pela ditadura da Arábia Saudita a Jair Bolsonaro enquanto ele era presidente, e à mulher dele, Michelle, a primeira-dama.

A lei diz que presentes caros ofertados por um governo ao outro devem ser incorporados ao acervo do Estado brasileiro. As joias sauditas, a preços de mercado, valem cerca de 20 milhões de reais.

O presente de Michelle foi apreendido pela Receita Federal do Aeroporto de Guarulhos, em São Paulo, por não ter sido declarado. Entrara no país no fundo da sacola de um militar.

O de Bolsonaro driblou a atenção dos agentes da Receita e entrou ilegalmente no país; contrabando, que foi parar nas mãos de Bolsonaro e levado por ele ao deixar o governo.

O casal mentiu do começo ao fim do episódio. Ao fim, não, porque o episódio ainda será melhor contado. A Polícia Federal (PF) já ouviu Bolsonaro, que mentiu à farta. Falta ouvir Michelle.

A servidora Marjorie de Freitas Guedes, do Gabinete Adjunto de Documentação Histórica da presidência, era responsável por catalogar todos os presentes oferecidos a Bolsonaro.

Ela disse à PF que, em novembro de 2022, um pacote com as joias de Bolsonaro (um relógio raro, uma caneta, um par de abotoaduras e um rosário árabe) foi entregue a Michelle no Palácio da Alvorada.


O pacote, em outubro de 2021, entrou escondido no país dentro da mala do então ministro das Minas e Energia, o almirante Bento Albuquerque, de volta de uma viagem oficial à Arábia Saudita.

Marjorie disse que antes mesmo do retorno do almirante, fora aberto um processo no sistema do governo informando a chegada de um presente para Bolsonaro: um cavalo de ouro.

De fato, um cavalo de ouro também fora entregue a Albuquerque; chegou com as pernas quebradas e foi apreendido pela Receita junto com o conjunto de joias para Michelle.

A ex-primeira-dama sempre disse que nunca ouvira falar das joias destinadas a ela, somente a partir de 3 de março último quando o caso foi descoberto pelo jornal O Estado de S. Paulo.

Naquela ocasião, ela declarou: “Não pedi e nem recebi”.

Em resposta ao que revelou Marjorie, Michelle, ontem, afirmou:

“Essas joias que chegaram no Alvorada foram as joias masculinas. Então, estão me associando ao primeiro caso, quando eu não sabia, e eu não sei mesmo. […] O que eu tenho a ver com isso?”

Repórter: Então a senhora recebeu [as joias masculinas] em mãos?

Michelle: Eu não, elas estavam no Alvorada. Elas foram passadas pela administração.

Repórter: Não entregaram nas mãos da senhora?

Michelle: Não, elas estavam no Alvorada. Eu morava onde? No Alvorada. Não é verdade?

Para socorrer o casal que mente unido, o ex-secretário de Comunicação do governo Bolsonaro, Fabio Wajngarten, mentiu também em entrevista à CNN Brasil.

Por 13 meses, ele disse, Bolsonaro e Michelle não souberam que havia joias à sua espera – as de Bolsonaro, guardadas no prédio do Ministério das Minas e Energia, as de Michelle, apreendidas.

Quando Michelle recebeu no Palácio da Alvorada o pacote com as joias de Bolsonaro, ela os deixou “por dois ou três dias” na pia da cozinha por não saber do que se tratava, segundo Wajngarten.

Casal e ex-assessor que mentem unidos, permanecerão unidos para a eternidade. A não ser que a ação da justiça os separe por qualquer razão. Aí será um salve-se quem puder.

terça-feira, 25 de abril de 2023

Pensamento do Dia

 


Ladrões

A precaução tomada contra ladrões que abrem cofres, examinam sacolas ou saqueiam gavetas, consiste em mantê-los com cordas e trancá-los com fechos e cadeados.É a isso que o mundo chama de sagacidade. Porém, chega um ladrão musculoso e leva a gaveta nos ombros, com o baú e a sacola, e foge, levando tudo nas costas. Seu único receio é que as cordas, fechos e cadeados não sejam bastante fortes. Por conseguinte, o que o mundo chama de sagacidade não é simplesmente assegurar as coisas para um ladrão musculoso?

E atrevo-me a afirmar que nada daquilo que o mundo chama de sagacidade é outra coisa senão poupar para os ladrões fortes. E nada do que o mundo chama de prudência é outra coisa senão entesourar para os ladrões fortes.

Chuang Tzu, 300 a. C.

Entre a fome e o gato

Já pensou no que você faria se tivesse de escolher entre comprar comida e pagar a conta de um serviço essencial como o fornecimento de energia elétrica? Esse é o tipo de dilema que assombra cotidianamente a vida de milhões de brasileiros privados de direitos básicos.

A pobreza é um fenômeno complexo, que sustenta a exclusão e a vulnerabilidade e ultrapassa a questão da renda. Não por acaso a chamada "pobreza energética" remete à insegurança alimentar, falta de acesso à informação e à educação – entre outros direitos da cidadania.


Considerando que a perspectiva interfere no diagnóstico de problemas sociais, a Rede Favela Sustentável e o Painel Unificador das Favelas decidiram assumir o controle da narrativa sobre esse tema nas comunidades do Rio de Janeiro.

Assim surgiu o primeiro relatório Eficiência Energética nas Favelas, que expõe detalhes até então inéditos a respeito do impacto da ineficiência do serviço e do uso de luz sobre a pobreza e o aprofundamento das desigualdades. No cenário retratado, as políticas públicas não chegam aos destinatários de maneira eficiente.

A maioria (55,2%) das famílias representadas encontra-se abaixo da linha da pobreza (vive com renda per capta mensal de até R$ 497), sendo que 68,7% dizem desconhecer a Tarifa Social de Energia Elétrica. O que faz com que 90,4% dos que atendem ao critério de renda para ter tarifa social não recebam o benefício.

Segundo o relatório, 41,5% das famílias que ganham até meio salário mínimo e 23% das que recebem de dois a três mínimos ficaram sem luz por mais de 24 horas no último trimestre! Ainda assim, poucas formalizam reclamações, pois o recurso usado para ter acesso à energia elétrica é, muitas vezes, uma conexão irregular.

Longe de mim fazer apologia da fraude, mas, aos olhos de quem tem de escolher entre comer e pagar a luz, o famoso "gato" pode ser mais um mecanismo de luta pela sobrevivência do que um pressuposto de desonestidade.

segunda-feira, 24 de abril de 2023

CPI ou furdunço?

O Gonçalves Dias da vez é de uma pátria longe da edênica de sabiás e palmeiras. Sua imagem na invasão do Planalto abre-se a interpretações —agiu em suporte ou desbaratamento? O tempo da política é o instantâneo e, na dúvida, a cabeça do general, que não é poeta, rolou.

A celeridade do gesto governista não conteve a sanha da oposição em alongar o problema. Aí vem CPI (ou CPMI, o "m" indica o misto de senadores e deputados). O objetivo, em princípio, é esclarecer o 8 de janeiro. Mas, dada a polidez e o autocontrole dos oposicionistas, explicitados em sessão recente pelo deputado 03, pode desandar para outro propósito.

Reconstruir os fatos e responsabilizar os envolvidos, direta ou indiretamente, é imperativo. Já se investigou muito, mas também é muito o que falta. O evento ainda nem tem nome próprio. Prevalece o desnorteio nominativo: invasão, atos antidemocráticos, intentona, terrorismo, golpe. Nomear é delicado porque encaixa o acontecimento num molde, encaminha uma leitura.

Os nomes provisórios convergem, contudo, em indicar que se tratou de uma ação organizada. Quanto mais informações emergem, mais o ponto se comprova. Organização, no entanto, não quer dizer complô superplanejado, como nas teorias da conspiração. A realidade é mais complicada, com gente dando tiro no pé e iniciativas produzindo o oposto do esperado.


Acontecimento do porte do 8 de janeiro não se resume a um vilão no centro do PowerPoint. Resulta de atos de muitos grupos, nem sempre com mesmos objetivos e líderes, que se cruzam. É um mar de ação coletiva, no qual deságuam muitos pequenos afluentes.

Entender o ordenamento requer coletar e checar consistência e confiabilidade de documentação farta e variada. Não é para amadores. Uma CPI séria terá de fugir da areia movediça das impressões e se fincar em pesquisa robusta.

Assim como o janeiro trumpista deu o modelo para o nosso, a comissão de investigação da Câmara dos Deputados norte-americana dá exemplo de relatório potente. O comitê de nove parlamentares, entre democratas e republicanos, depois de ano e meio de trabalho, soltou catatau de 845 páginas. Chama-se Final Report. Select Committee to Investigate the January 6th Attack on the United States Capitol.

Ficou enorme porque detalha minuciosamente a maquinação e os fatos, acompanhado de links para documentos, uma felicidade para historiadores do futuro. Mas traz no início um sumário de 130 páginas, para dar o sumo aos cidadãos do presente.

Quatro capítulos se detêm na preparação e escancaram o tamanho da culpa presidencial no cartório. Depois vem um descritivo da invasão tim-tim por tim-tim. Identificam-se responsabilidades e omissões de agentes institucionais, os movimentos sociais convocadores (o mais conhecido é o Proud Boys) e os líderes no curso da invasão.

A leitura é alucinante, mas desvela personagens menos alucinados do que se suporia. Mostra que o caos aparente tem sua lógica. Houve quem concebesse, recrutasse, pusesse em marcha. A coordenação se exibiu até enquanto a ação transcorria.

O relatório gringo seria um bom modelo para a CPI. Contudo, tomar essa trilha demandaria empenho coletivo —não apenas do governo, como da oposição— em punir os culpados pelo ataque à democracia. Bem conduzida, a CPI poderia ser um acerto de contas da nação consigo mesma. Mas, se adentrar o estilo bolsonarista de debate, será só furdunço mesmo.

O peregrino

Aquele que possui verdadeiro
valor,
Que toma a linha de frente;
E nela assim permanece
Contra o vento, contra a
tempestade
Nenhum temor o esmorecerá
Ou fará com que desista
Do seu primeiro e
confirmado intento
De ser um peregrino.

John Bunyan

'Burnout' cívico

Prensados pelas redes sociais, a gente se vê obrigada a se posicionar o tempo todo, grande parte das vezes sobre assuntos leves ou absolutamente fora de nossa área de conhecimento ou curiosidade. O que pensamos a respeito do ajuste fiscal; da reforma do ensino; da permanência daquele ministro reconhecidamente ficha-suja; do tal novo arranjo do futebol, a sociedade anônima do futebol (SAF); da internação compulsória dessa gente perdida de si que circula pelas cidades; da mudança de sexo na infância; da inteligência artificial? Houve uma época em que, reconhecendo nossa ignorância, procurávamos ler algum artigo para pelo menos entender o que estava em jogo. Agora vem tudo num vapt-vupt de um post, sem contar a lavagem cerebral das mensagens capciosas que pousam na tela do celular – preparadas com o intuito único de angariar devotos a causas escusas.


Estou sofrendo um burnout cívico. Tomo chá de camomila? De cogumelo? Passo a andar de olhos vendados? Me chafurdo na leitura de entretenimento? Ouço apenas os discos da Xuxa? Entro com uma ação pedindo ressarcimento por assédio moral? Me entoco no meio do mato?

Ô Brasil difícil! Melhor pensar que é assim em tudo quanto é canto. Viver em comunidade, por menor que ela seja, significa embates, lutas por espaço; no fundo, disputa de poder. Tudo bem, mas, aqui na terrinha, estamos caprichando. Não é mais uma questão de participação política ou alienação, é o excesso. Sei da importância de ninguém soltar a mão de ninguém, mas, por favor, soltem a minha, preciso sair correndo. Doutor, vou ter um troço.

Corro, mas do Brasil não saio e continuarei a lutar por ele. Só que estou doente dessa contenda na qual entro com a impressão de ser um inocente útil, o zé-mané cansado. Vejo que muitos brasileiros, atrasados, decidiram pelo deixe-o do ditatorial “Brasil, ame-o ou deixe-o”. Se debandaram para Portugal, Estados Unidos, Austrália, não sei mais onde, com a esperança de fugir de nossas mazelas. Essa turma se esquece de que, num mundo globalizado, o Brasil enviará, via TV, streaming etc., sua dose diária de racismo, homofobia, misoginia e entornará o caldo sujo da injusta distribuição de renda na cara de todos, todas e todes (abraçado à erudição, rechaço o novo pronome, ou, fiel à urgência do agora, abraço-o?). Não se pode esquecer do tio do zap e seu empenho em compartilhar absurdos de toda espécie. De um jeito ou de outro, como o Brasil fincará as garras nos que se ausentaram, cair fora não resolve nada. Pelo menos com isso me consolo.

Então dou de ombros? Bebo o bar da esquina? Todos os bares da rua? Os da cidade? Me caso com vinte mulheres? Assalto um banco? Vou curar berne de bois soltos em pastos abertos pela grilagem no Pará?

Talvez eu melhore fugindo das tretas impostas pelos outros e inventando as minhas. Sertanejo universitário não é nem sertanejo nem universitário. Goiabada é o melhor doce do mundo (seguido de perto pelo arroz-doce), mas nem pensem na cascão, que não chega aos pés da lisa. Os grandes designers criam coisas estupendas, lindas e cheias de sabedoria, mas ninguém até hoje fez nada tão simples e tocante quanto a estrela solitária do Botafogo. Para cada xícara de arroz, duas e meia de água quente; qualquer coisa diferente disso é embuste e má culinária. Não fosse o chifre, o de Capitu em Bentinho, o Brasil nem teria uma literatura nacional.

Ando me identificando com a galinha-d’angola: Tô fraca!, tô fraca!, tô fraca! Que canseira.
Alexandre Brandão

domingo, 23 de abril de 2023

Cadê o Disque-Denúncia?

Onde está o general Heleno? Alguém sabe? Cadê o general? O general Heleno desapareceu. Um homem público, ministro de Estado, que sai das eleições e desaparece. Quem explica o sumiço dele? Onde é que está a valentia do general Heleno?

Cadê eles [os generais Braga Neto e Luiz Eduardo Ramos, ex-ministros de Bolsonaro]? Cadê o Braga Neto, o fortão? Desapareceram! Por quê? Cadê a valentia deles? Contra as instituições, contra o Brasil!

Parte da imprensa decidiu apontar a cumplicidade da vítima com o estuprador

Que coisa!

Setores da imprensa, nesse episódio do vazamento do vídeo sobre o 8 de janeiro —cuidadosamente editado (por quem?) para transformar o agredido em responsável pela agressão que sofreu —, aderiram à lógica absurda da cumplicidade da vítima com o seu algoz.

Demorou um tempo até que um padrão civilizatório mínimo criasse uma interdição legal e moral que impede que se culpe, ainda que de modo oblíquo, a pessoa estuprada pelo estupro. Não é prudente circular em áreas desertas e mal iluminadas, certo? Mas essa é uma postura preventiva contra qualquer tipo de agressão, note-se. Ainda que não observada, seria uma monstruosidade moral atribuir à vítima algum grau de cumplicidade ou colaboração com o seu agressor. Fazê-lo corresponde a legitimar um suposto lugar do estuprador na ordem das coisas.

A normalização do estupro produziu, a propósito, frases que ainda estão por aí. “Prendam suas cabras que o meu bode está solto”. Você é pai ou mãe de meninas? Guardem-nas, pois. Os genitores de bodes, nessa perspectiva, entendem que seus potenciais violadores cumprem ou uma determinação da natureza ou ocupam seu lugar social.

Em matéria de pântano moral, como deixar Jair Bolsonaro de fora? Em 2018, o então candidato à Presidência, em sabatina na Globonews, tentou explicar declaração misógina dada em 2017, em palestra na Hebraica do Rio — a mesma em que disse que um quilombola se pesava em arrobas e nem servia mais para a reprodução. Afirmou, naquele evento, que, depois de quatro filhos homens, deu uma “fraquejada”, e “veio uma mulher”.

Na entrevista, ele tentou consertar assim a estupidez: “Fiz uma brincadeira. É comum entre nós homens… O elemento é muito namorador, por exemplo, daí vem [nasce] uma menina, e ele fala: ‘Eu vou ser fornecedor, não vou ser mais consumidor’. É uma brincadeira.” Nesse mundo de “fornecedores” e “consumidores”, cada um tem reservado o seu lugar, excluindo-se, por exemplo, o consentimento. É a lógica do estupro! Saia curta, decote, roupa justa… Melhor não provocar os bodes.


Tenho afirmado aqui e em toda parte que o bolsonarismo não contaminou e corroeu apenas as instituições de Estado, como revelam a inércia e a conivência de servidores do GSI, entre outros entes, com os golpistas. O estrago provocado na imprensa é muito maior do que se percebe à primeira vista. Houve avarias importantes — e não sei se sanáveis — nos radares morais e nos sensores que identificam ameaças à ordem democrática. O mais relevante consiste em considerar que o bolsonarismo, a despeito de tudo o que já disse e fez, é uma corrente de pensamento e militância política como outra qualquer e causaria espécie porque não tem vergonha (e como!) de se dizer de direita. Não! Essa é uma bobagem e uma mentira perigosas. Como escrevi em uma coluna da Folha, inexiste virtude nos territórios da morte. Apenas ilustro um dos danos. O objeto deste texto é outro. Adiante.

DE VOLTA AO VÍDEO

Leio em reportagens e em textos de colunistas — com algumas decepções maiúsculas –considerações que vão muito além de recomendar que se evitem ruas desertas mal iluminadas, e até isso teria de ser feito com muito cuidado. O flerte com a culpa da vítima é mais do que uma sugestão. Há até quem infira que Lula experimenta agora uma forma de reverso da fortuna, como se as ações do governo a partir do dia 9 tivessem sido orientadas pelo oportunismo, não por fundamentos que orientam o estado de direito. Teria chegado a hora de pagar a conta.

O flerte com teorias conspiratórias espalhadas nas redes é, muitas vezes, explícito. Quando não, a vítima é vergastada por sua imprudência: “Quem mandou andar naqueles lugares? Onde já se viu sair com essa roupa? Vocês não sabiam que eles eram capazes de coisas assim? Por que não apoiou de cara a CPMI?” Uma pergunta grita o seu silêncio: quem editou o vídeo e com que propósito?

É evidente que o episódio pode e deve suscitar questionamentos e que houve erros grotescos: a mentira contada sobre as câmeras quebradas do terceiro andar, que quebradas não estavam, como se vê; a imposição de sigilo para as imagens; a manutenção no GSI da mesma equipe que serviu a Jair Bolsonaro; quem sabe uma certa subestimação do risco, ainda que a área adjacente ao QG do Exército de Brasília seguisse ocupada.

Que se façam as devidas restrições, admoestações e reparos. Mas cumpre, parece-me, não perder o foco, inclusive o dessa segunda investida — refiro-me, obviamente, ao vazamento do vídeo. A Polícia Federal não tem de correr atrás das fontes da CNN ou de qualquer outro veículo de imprensa. Mas tem de procurar identificar a origem do vazamento. Caso consiga, também se chegará ao propósito. Essa é uma imposição legal.

Ademais, o governo, pela voz de seu líder maior, o presidente da República, jamais descartou a conivência com a barbárie daqueles que, em tese, o serviam, nos limites da lei. Em café da manhã com jornalistas no dia 13 de janeiro, Lula foi explícito:

“Eu ainda não conversei com as pessoas a respeito disso. Eu estou esperando a poeira baixar. Quero ver todas as fitas gravadas dentro da Suprema Corte, dentro do palácio. Teve muita gente conivente. Teve muita gente da PM conivente. Muita gente das Forças Armadas aqui dentro conivente. Eu estou convencido que a portado Palácio do Planalto foi aberta para essa gente entrar porque não tem porta quebrada. Ou seja, alguém facilitou a entrada deles aqui”.

Não se trata de gostar do governo ou não; de aprovar as suas escolhas ou não; de considerar que Lula tem feito as escolhas corretas ou não. Estamos falando dos fundamentos do estado de direito e da democracia. Creio que os registros estão se confundindo. Poderia enumerar aqui os textos que juntam os erros do governo no caso do vazamento com o inconformismo do seu escriba com o arcabouço fiscal ou com as declarações do presidente sobre a Ucrânia. É uma insanidade. É a avaria nos radares morais e nos sensores que identificam ameaças à ordem democrática.

POR QUE É ASSIM?

Por que é assim. Há várias respostas, que requerem muitos outros textos, e não fugirei deles. Uma delas está enunciada no parágrafo anterior: não se está sabendo a fronteira entre a reprovação a medidas do governo — coisa absolutamente legítima — e a tolerância com ameaças às instituições. De novo! Já passamos por isso a um custo gigantesco.

Pesa também o fato de que certos setores da imprensa, identificados com o que dizem ser “liberalismo” ou com a direita democrática se ressentem do que julgam ser falta de voz no governo e no debate público. Os conservadores que compõem o arco de alianças de Lula não os representam. A ojeriza da imprensa ao tal “centrão”, por exemplo, é gigantesca. Falta ao grupo aquele espírito doutrinário do antigo udenismo.

Há mais: dão esses de barato, coisa em que absolutamente não acredito, que o bolsonarismo já está inviabilizado como alternativa de poder. As circunstâncias que o levaram ao poder não se repetirão, e sua notável desorganização política não será capaz de guindar, de novo o grupo ao poder. Assim, exterminada essa vertente do extremismo como alternativa de poder, restaria fulminar a outra: isso a que chamam “lulismo” ou “lulopetismo”. E, assim, combater-se-iam os dois polos considerados nefastos em benefício do centro perdido… Ocorre que o bolsonarismo é, sim, de extrema-direita, mas o petismo não é de extrema-esquerda.

Chega-se mesmo a ver no país um tipo realmente autóctone, inencontrável em qualquer outro lugar: o “extremista de centro”. Mas isso, de fato, será matéria para outros artigos.

CONCLUO

Sim, estou, e deixo claro com frequência, entre aqueles que consideram virtuoso o governo em seus menos de quatro meses — e não quatro anos — de mandato. É evidente que é matéria para controvérsia. E isso nos coloca a todos, entendo, no terreno dos embates democráticos.

O que me incomoda, nessa tentativa de reeditar o golpe — porque o objetivo é evidenciar uma suposta e absurda cumplicidade do governo com o ataque golpista para inviabilizá-lo —, é a imprudência com que imprensa e colunistas passaram a dar piscadelas para o perigo, indagando à pessoa estuprada se, na verdade crua, não acabou sendo cúmplice do estuprador.

Antes que os idiotas sugiram que comparo crimes distintos, relembro: trato de posturas morais e éticas diante do agressor e do agredido. É indecente que jornalistas, que têm um compromisso necessário com a liberdade e a com democracia, digam a Lula que ele não soube cuidar direito das suas cabras, mesmo sabendo que o bode do bolsonarismo estava solto. Trata-se de um comportamento liberticida.

Linguagem emprestada

Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos. E justamente quando parecem empenhados em revolucionar-se a si e às coisas, em criar algo que jamais existiu, precisamente nesses períodos de crise revolucionária, os homens conjuram ansiosamente em seu auxílio os espíritos do passado, tomando-lhes emprestado os nomes, gritos de guerra e as roupagens, a fim de apresentar-se nessa linguagem emprestada

Karl Marx, “O 18 Brumário de Luís Bonaparte”

Uma pausa

Hoje em dia é difícil encontrar fôlego para pensar no ontem. Simplesmente não sobra espaço para o passado. Nossa tão fragmentada atenção é disputada o tempo todo por notícias, fatos e factoides — e estes, já no instante seguinte, são atropelados por mais notícias, mais fatos e mais factoides. Não espanta que vivamos num acelerado estado de inútil combustão mental, física, afetiva. Na semana passada, para o 80º aniversário do Levante do Gueto de Varsóvia, nem mesmo a imprensa europeia conseguiu deter-se com o merecido vagar sobre efeméride tão marcante para a Humanidade. Uma lástima, considerando a selvageria da atual guerra na Ucrânia, logo ali ao lado, e o ressurgimento do neonazismo acoplado ao antissemitismo por toda parte.

Foi num 19 de abril de 1943 que os judeus aprisionados feito gado num pedaço da capital da Polônia pegaram em armas. Do total inicial de 400 mil socados naquele gueto, mais de 250 mil já haviam sido deportados para os campos de extermínio nazistas. O levante destinava-se a tentar interromper as deportações. Os insurgentes sabiam que jamais venceriam as tropas nazistas. Também sabiam ser quase impossível sobreviver ao levante. Mas queriam, pelo menos, ser os donos do que lhes restava de vida. E ser donos da escolha de onde e como morrer.


Nas comemorações deste 19 de abril de 2023, que começaram com sirenes uivando por toda Varsóvia, os três chefes de Estado alinhados no pódio eram um retrato das idas e voltas da História.

— Todo aquele que semeia o ódio e pisoteia as pessoas também pisoteia os túmulos dos heróis do Gueto de Varsóvia (...) e de quem os ajudou — discursou o ultraconservador presidente polonês Andrzej Duda, cujos patrícios antepassados ajudaram, e não foi pouco, a insânia de Hitler.

— É imperativo lembrar que este trágico capítulo da História (...) oferece a plataforma para um importante diálogo entre a Polônia e Israel — pontuou o presidente de Israel, Isaac Herzog, sinalizando quanto ainda há pela frente.

O presidente Frank-Walter Steinmeier, em sintonia com uma Alemanha que há décadas encara seu passado, foi o mais direto:

— Cada crime cometido pelos alemães precisa ter espaço em nossa memória — disse.

Os três estadistas traziam um narciso em papel amarelo colado na altura do peito. Outros 400 mil narcisos haviam sido distribuídos entre moradores da capital para ser portados com sentimento. O número faz referência aos 400 mil judeus do gueto. A flor amarela simboliza o levante desde que Marek Edelman, último sobrevivente da resistência, passou a receber em casa, pontualmente a cada 19 de abril, um misterioso buquê de narcisos amarelos. Edelman morreu em 2009, aos 90 anos. O remetente das flores permanece anônimo até hoje. Culpa? Fraternidade? Demônios interiores? Toda guerra tem sua cota de continuidade indelével.

Logo à entrada do que é hoje o Memorial de Auschwitz, do lado direito do infame letreiro Arbeit Macht Frei, um imenso salgueiro plantado muito antes da Segunda Guerra Mundial continua de pé. Está intacto e saudável, ao contrário de três álamos históricos de mais de 90 anos que tiveram de ser derrubados na década passada. Segundo levantamento da entidade de conservação, restam do antigo complexo Auschwitz I, Auschwitz-Birkenau e Auschwitz III apenas duas castanheiras, oito álamos, dois carvalhos e menos de 20 bétulas de mais de 90 anos. Testemunhas silenciosas dos crimes ocorridos naquele chão, essas árvores são reverenciadas em prosa e verso por sobreviventes. “Muitos, como eu, queríamos escalar até o cume e sair voando.../As árvores viram tudo, ouviram tudo,/e como é seu costume,/cresceram, abriram folhas, e permaneceram em silêncio”, escreveu em poema Halina Birenbaum.

Também o 11 de Setembro de 2001, que fez ruir não só as Torres Gêmeas de Nova York, mas todo um mundo que parecia ordenado, tem uma testemunha fincada no solo. Foi encontrada entre as montanhas de ruínas, um mês depois do atentado. Tinha o tronco quase carbonizado, as raízes esmigalhadas e o DNA incerto. Ainda assim, foi depositada como porcelana rara aos cuidados do Departamento de Parques da cidade. Nove anos depois de arrancada pela força do ódio, ainda magrela, porém sadia, pôde ser replantada no local onde nascera. Hoje, essa pereira vistosa e abundante, rebatizada de Árvore da Sobrevivência, vive rodeada de visitantes. A cada ano, também fornece três plantas para comunidades que sofreram alguma tragédia recente, como a cidade de Parkland, onde foram mortas 17 pessoas em chacina escolar em 2018, ou Porto Rico, onde o Furacão Maria deixou um saldo de quase 3 mil mortos.

Hoje sendo domingo, cabe uma pausa na tirania do ininterrupto ser-estar-fazer-postar-ouvir-reagir-clicar. Dar tempo à poesia, à arte, ao pensar solto. No inverno mais amargo de 1916, com a Europa afundada no horror da Grande Guerra, imensas lonas de camuflagem militar começaram a pontilhar uma região campestre do conflito. Destinadas a esconder peças de artilharia do Exército Imperial Alemão, elas destoavam do protocolo bélico. Tinham coloridos ardentes e formatos inesperados, de beleza absurda. Foram criadas pelo então soldado, mas já mestre do expressionismo alemão, Franz Marc. O artista morreu nas trincheiras um mês depois de “tentar pintar o lado espiritual da natureza” em lonas de guerra. Soube viver.