terça-feira, 18 de outubro de 2022

Pensamento do Dia

 


O risco de autocracia está à espreita

Há muito tempo, talvez desde a campanha das “Diretas Já”, a palavra democracia não foi tão falada, escrita, lembrada e exaltada no país com sinais de alerta e doses de preocupação. A defesa do regime democrático tem crescido desde o início desta temporada eleitoral a ponto de ganhar recentemente demonstrações de apoio concreto ao candidato Luiz Inácio Lula da Silva por pessoas influentes, intelectuais e representantes de segmentos da sociedade civil, que até então sequer imaginavam a possibilidade de votar no PT.

A percepção de que há muito mais em jogo do que uma simples disputa eleitoral falou mais alto para aqueles apoiadores de última instância, acentuando a polarização não entre um partido de esquerda e outro de direita, mas entre o bem e o mal. Desde o início, parecia claro que a chamada terceira via teria poucas chances de emplacar e o que se vê nesta reta final é um esforço descomunal de muitos formadores de opinião no sentido de evitar a reeleição de Bolsonaro, encarnado na figura do mal que ele mesmo construiu ao longo do governo.

O presidente nunca deixou de dar indicações claras de descaso relacionadas à educação, saúde, segurança, cultura e meio ambiente, mas foram as suas declarações sobre o processo eleitoral, a configuração da Suprema Corte de justiça e os meios de comunicação que chamaram a atenção para os riscos de o país caminhar para uma autocracia.


A rigor, as falas de Bolsonaro estão dentro do script adotado pela maior parte dos autocratas que nas últimas décadas têm se perpetuado no poder através da captura de mecanismos típicos da democracia, como o voto direto. A mudança de regime político é feita aos poucos. Ao invés de tanques nas ruas, censura explícita, prisão e tortura em massa dos adversários políticos, características das autocracias “tradicionais”, utiliza-se uma retórica calcada na disseminação do medo e em ameaças com apelos populistas.

Como reconhecer um autocrata legalista em ação? Kim Lane Scheppele, catedrática de sociologia e de assuntos internacionais da Universidade de Princeton, nos Estados Unidos, traça o perfil: “Deve-se primeiramente suspeitar de legalismo autocrático em um líder democraticamente eleito quando ele lança um deliberado e sustentado ataque às instituições cuja função é colocar em xeque suas ações ou às regras que lhe impõem limites e deveres, mesmo quando ele age assim em nome do mandato democrático”, diz ela no artigo “Autocratic Legalism” (Legalismo Autocrático), um dos textos de referência para o entendimento do fenômeno que tem ganhado força neste século.

“Os novos autocratas não apenas se beneficiam da crise de confiança nas instituições públicas; eles atacam os princípios básicos do constitucionalismo liberal e democrático porque querem consolidar poder e permanecer na liderança pelo maior tempo possível”. Para atingir o objetivo, valem-se da aparência de que tudo transcorre dentro das quatro linhas da Constituição, enquanto usam o mandato para derrubar os obstáculos que os impedem de governar com autonomia, sem prestação de contas nem riscos de serem investigados. Quando obtêm uma soma confortável de apoios no Congresso ou no parlamento, o processo de reversão definitiva do regime torna-se mais seguro e mais rápido.

Como se sabe, não são poucos os líderes que têm recorrido ao legalismo autocrático para permanecerem no poder via eleições diretas sob o manto de dispositivos convenientes introduzidos no texto da Constituição. Desde Putin na Rússia e de Chávez/Maduro na Venezuela, os exemplos têm se propagado com Orbán na Hungria, Erdogan na Turquia e Duda na Polônia. Para os interessados, o processo de confisco da democracia está bem explicitado no texto “O Caminho da Autocracia: estratégias atuais de erosão democrática”, de estudiosos do Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo (LAUT) - laut.org.br/o-caminho- da-autocracia/

Apesar da farta documentação das técnicas usadas pelos autocratas “modernos”, a percepção do modus operandi e dos riscos associados à mudança do regime político não está disseminada na sociedade brasileira nem mesmo entre os acadêmicos. Em nome do liberalismo econômico, há uma resistência de importantes segmentos das áreas empresarial e financeira em aceitar os direitos sociais garantidos na Constituição e que só se consegue manter sob um regime democrático pleno sujeito ao escrutínio de instituições independentes.

No fundo, existe uma dicotomia entre a ideia de que a economia evolui melhor quanto menor for a interferência do Estado e os princípios do Estado de Direito liberal que garantem liberdades e direitos individuais para todos. Por exemplo, o objetivo de erradicar a pobreza e reduzir as desigualdades sociais, inscrito na Constituição, só pode ser alcançado com medidas de forte intervenção do governo na economia.

Quanto mais predominante for a defesa do liberalismo ou neoliberalismo econômico, maior será o eco favorável ao autocrata de direita que opera para ampliar o poder de decisão e de fazer cumprir, sem oposição, medidas de apoio a grupos específicos em detrimento dos interesses da sociedade. O refrão “deixar passar a boiada” vai nessa linha. Nas autocracias de esquerda, as liberdades individuais são comprometidas por um Estado onipresente que direciona a iniciativa privada em prol da massa assalariada e subordina a economia de acordo com os interesses de integrantes do governo.

No entanto, é sob o regime democrático que se podem alcançar níveis de desenvolvimento abrangente não apenas sob a ótica social, mas econômica, tendo em vista a possibilidade de expansão das oportunidades individuais que levam ao crescimento do mercado em geral, do consumo e da renda, em benefício de um maior contingente de pessoas e de empresas.

O homem que lê o tempo

Silvino é o homem que lê o tempo. Quando eu vou saindo do prédio onde moro, sempre lhe pergunto, até mesmo como chiste: levo ou deixo o guarda-chuva? É batata, ele acerta. Em vez de porteiro, insisto, poderia estar na televisão.

Digo que ele é dotado de uma sensibilidade especial para essa questão atmosférica, tal é o índice de acertos. As televisões não sabem realmente o que estão perdendo: ele é o homem do tempo.

Já houve ocasião de estar nublado e Silvino me dizer que não cairia um único pingo. E não chovia mesmo. Ou, pelo contrário, maior solzão. “Tá vendo aquela nuvenzinha? Pode se preparar, vai cair um toró”. Quando menos esperei, choveu.

Certa vez eu lhe perguntei como aprendera a ler o tempo, ele disse não haver mistérios. “O meu pai foi pescador. Eu via ele se preparando para entrar no mar, quando ia pescar. Cuidava de olhar as nuvens. É só olhar para o céu e ver de que lado elas estão vindo”.

Silvino me revelou: se estiver nublado no centro do céu, e o Sol estiver abrindo a Leste, ele vai andar sobre nossas cabeças. Não choverá. Mas, se for o contrário, as nuvens estiverem vindo, cairá água. “O movimento é daqui pra lá”, mostrou.

Dia desses, questionei se ele nunca pensou ser meteorologista. Quis saber o que era, expliquei. “Então, tem que estudar? Dá pra mim não. Sou fraco de leitura”. Não chegou ao segundo grau. Silvino lê somente o básico, o suficiente para trabalhar num condomínio. Mas sabe ler o livro místico do universo que nos circunda.

Outro dia, eu fui saindo para uma caminhada matinal. “Vai chover”. Resolvi dar crédito, voltei para o apartamento. Não quis caminhar debaixo de água. De fato, o tempo fechou, uma boa meia hora de chuva. Desci, para lhe dar os parabéns. Silvino é bem humorado. Conversa vai, conversa vem, saímos das questões climáticas, entramos nas políticas, assunto predileto dos pernambucanos.


Já que Silvino era bom de palpite, quis saber se ele arriscava dizer quem ganharia a eleição para presidente. “Quem vai ganhar, eu não sei. Mas, dizem que Deus é brasileiro. Pois este vai ser um teste bom”. Eu e minha mania de repórter:

– Mas, você acha que Deus vai pender para que lado?

E ele, mais uma vez muito sábio:

– Vamos rezar muito Padre Nosso para que ele não deixe o lado errado ganhar.

Silvino é concreto nas previsões do tempo, mas fugidio nos detalhes políticos. Encerrei o assunto, mas ele acrescentou:

– Desculpe a brincadeira. É que eu acho que Deus já faz a parte dele. A gente é que temos que fazer a nossa.

Assim, com seu jeito de falar, mas com a competência que lhe diferencia. É inteligente, tanto que disse: “O senhor quer saber? Esta é a eleição mais fácil que eu já vi. Os dois candidatos já foram presidentes. Basta que o eleitor avalie quem mais lhe atendeu na hora da precisão”.

Votar é uma questão de leitura e Silvino percebe o mundo a partir das suas experiências. E é neste mundo que ele enxerga a vida. Há pessoas que sabem ler e escrever o bom português, mas são analfabetas na vida. Nisso, Silvino é mestre e doutor. Sabe ler um tipo de texto que somente alguns conseguem decifrar.

Cícero Belmar

Qual é a liberdade defendida por Bolsonaro na campanha

O lema "Deus, Pátria e Família", citado por Jair Bolsonaro em inúmeros discursos desde a sua campanha de 2018, ganhou um quarto elemento na disputa eleitoral deste ano. Os atuais materiais de campanha do presidente usam: "Deus, Pátria, Família e Liberdade".

Na terça-feira, em Balneário Camboriú (SC), ele afirmou: "Temos a obrigação de lutar pela liberdade". Seus apoiadores também citam o termo com abundância. O empresário Roberto Justus divulgou um vídeo no qual se define como um "liberal na essência" e declara apoio a Bolsonaro por ele ser o candidato que "luta pela liberdade individual". Para completar, o atual partido do presidente se chama Partido Liberal (PL).

A defesa da liberdade no bolsonarismo também aparece ligada à flexibilização do acesso às armas e como reação a decisões judiciais que puniram apoiadores do presidente por ataques às instituições democráticas e a ministros do Supremo Tribunal Federal.

Seria o uso do conceito de liberdade pelo presidente compatível com seus constantes ataques à liberdade de imprensa, à separação entre os Poderes e à liberdade de escolhas individuais, inclusive sexuais e de gênero, que fundamentam o liberalismo?

A associação Livres, que promove os valores do liberalismo no Brasil e reúne em seus quadros os economistas Pérsio Arida e Elena Landau, entre outros, afirma que não.

Mano Ferreira, diretor de comunicação do grupo, diz que o liberalismo, uma ideologia política e econômica que teve seu ápice no século 19, é representado no mundo contemporâneo por três pilares: democracia liberal, economia de mercado e sociedade aberta e tolerante. O que se vê na campanha do presidente, segundo ele, é apenas um desses aspectos, o econômico – e, mesmo assim, de forma deturpada.

Ele diz que o melhor teste para avaliar o compromisso de uma pessoa com o liberalismo não é checar se ela defende a própria liberdade ou a de seu grupo, mas a liberdade do outro. Esse preceito é resumido numa frase do historiador abolicionista Joaquim Nabuco (1849-1910), inspirador do Livres, de que é necessário cultivar o "amor da liberdade alheia". O atual presidente não passa nessa prova, afirma Ferreira.

"No discurso bolsonarista, há a evocação da liberdade para defender o grupo do próprio presidente, mas existe pouco compromisso com a liberdade do outro, de quem discorda. O Bolsonaro traz construções como a ideia de que a minoria deve se curvar à maioria ou desaparecer, um tipo de ideia profundamente antiliberal."

Ficam de fora do discurso do presidente, diz, a liberdade de imprensa, a liberdade sexual e de gênero e o respeito à separação de Poderes e ao sistema de freios e contrapesos da democracia liberal, entre outras.

Ele avalia que o primeiro mandato de Bolsonaro ficou muito distante de um governo liberal, com exceções pontuais como a aprovação da Lei da Liberdade Econômica, que reduziu a burocracia para a abertura de empresas, e do marco legal do saneamento, que ampliou a competição no setor.

No geral, diz, a gestão do presidente violou os valores do liberalismo ao "demonizar a divergência" e na sua agenda de políticas públicas, como no Ministério da Educação, na criação e ampliação de benefícios sociais às vésperas da eleição e nos repetidos ataques ao sistema eleitoral que ferem por consequência a liberdade política da população.

O Livres apoiou neste ano 59 candidatos a cargos eletivos, e elegeu um deputado federal, Alex Manete (Cidadania-SP) e dois deputados estaduais, Emerson Jarude (MDB-AC) e Cibele Moura (MDB-AL). Tem ainda um candidato a governador no segundo turno, Pedro Cunha Lima (PSDB-PB), e uma candidata a vice-governadora, Priscila Krause (Cidadania-PE). A associação não se posiciona sobre a disputa ao segundo turno para presidente.

O liberalismo foi utilizado em muitos países nos séculos 18 e 19 como base teórica de movimentos que derrubaram regimes baseado na nobreza e criaram estados mais enxutos, que garantissem a liberdade privada e a segurança dos cidadãos.

No Brasil, esse processo ocorreu de forma peculiar, como um "liberalismo conservador", diz o sociólogo Fábio Gentile, professor da Universidade Federal do Ceará e autor de um artigo acadêmico que analisa a tensão entre liberalismo e autoritarismo ao longo da história do país.

O próprio processo de Independência, cita, foi dirigido por uma oligarquia, que outorgou a nova Constituição. "Não teve uma burguesia que fez uma revolução de baixo e chegou ao poder, criando o Estado e os direitos."

O liberalismo foi um mote da Independência, mas não estruturou um pacto político liberal, nem era associado à ética burguesa da livre iniciativa. Durante algumas décadas, o Brasil teve autodenominados liberais que defendiam a liberdade de ter trabalhadores escravos.

Nessa transição do Império para a República, Gentile afirma que muitos intelectuais e políticos brasileiros consideravam o liberalismo uma ideia "fora de lugar" no país, devido ao seu estágio de desenvolvimento econômico e social, e que o Brasil precisaria de uma "fase autoritária" para avançar.

A associação entre liberalismo e autoritarismo não foi exclusiva do Brasil. Gentile menciona que Milton Friedman, um dos expoentes do neoliberalismo – teoria que atualizou os princípios liberais na segunda metade do século 20 – considerava a realização da sociedade de mercado o objetivo principal, e deu seminários e instruiu autoridades da ditadura de Augusto Pinochet no Chile, que durou de 1973 a 1990.

Diversos chilenos que haviam estudado na Universidade de Chicago nos anos 70 e 80 sob a orientação de Friedman trabalharam posteriormente no governo Pinochet, ficando conhecidos como Chicago Boys. O ministro da Economia brasileiro, Paulo Guedes, estudou nessa universidade na mesma época.

Gentile afirma que a ascensão da direita no Brasil na segunda década do século 21 reproduz a "peculiar convivência de princípios liberais e práticas autoritárias" e inclui alianças entre um líder de perfil autoritário e movimentos neoliberais que não concordam com toda a cartilha bolsonarista, mas o "consideram útil" para seus interesses.

Um exemplo é o apoio a Bolsonaro do governador de Minas Gerais, Romeu Zema, do partido Novo, criado em 2015 para defender o liberalismo no Brasil.
Liberdade versus fantasma do comunismo

Há um outro aspecto que ajuda a compreender o que o presidente tem em mente ao se referir à defesa da liberdade, diz Gentile: a época e o tipo de sua formação acadêmica.

O presidente graduou-se pela Academia Militar das Agulhas Negras em 1977, quando a liberdade era um conceito "abusado" no mundo e no Brasil para se contrapor ao modelo comunista durante a Guerra Fria.

A defesa da liberdade foi um dos motes do golpe militar de 1964, expresso no nome da Marcha da Família com Deus pela Liberdade, uma sequência de manifestações de rua que antecederam a derrubada do governo do então presidente João Goulart.

Bolsonaro é um defensor da ditadura que governou o Brasil até 1985, e elogiou e homenageou líderes e torturadores do regime militar. "Ele incorporou a teoria do golpe de 1964 como um argumento de libertação do país do inimigo comunista, como um movimento libertador do Brasil. Então, para ele, a liberdade é totalmente compatível com uma ditadura que sufoca quem não está de acordo", diz Gentile.

O presidente e sua campanha à reeleição seguem recorrendo ao fantasma do comunismo para aglutinar apoiadores. Em setembro, antes do primeiro turno, ele disse num comício em Sorocaba que Lula era um "capeta que quer impor o comunismo no nosso Brasil". Nesta quarta-feira, a senadora eleita Damares Alves (Republicanos), afirmou em post no Twitter que o Brasil seria a "última barreira de proteção contra o avanço do comunismo na América".