quinta-feira, 17 de novembro de 2022

Uma voz nova no planeta

Dois Brasis fazem parte da numerosa delegação que foi a Sharm El-Sheikh, no Egito, para a COP27 (27ª Conferência das Partes). Patrocinado pela ONU, o encontro reúne lideranças dos quatro cantos do mundo para discutir o desafio comum das mudanças climáticas. O Brasil do presidente vencido nas urnas, nos estertores de seu desgoverno, foi cumprir tabela, encerrando, com um murmúrio, quatro anos de desmantelamento da imagem da nação.

O outro Brasil, representado por governadores e demais autoridades subnacionais; personalidades ligadas à defesa do meio ambiente; organizações da sociedade civil; empresários e — sobretudo — pelo presidente eleito, compareceu para mostrar o quanto se avançou na percepção dos inúmeros riscos ambientais aqui presentes e nas propostas para enfrentá-los. Desde 2019, amadureceu a consciência da importância da defesa do patrimônio ambiental para o desenvolvimento e a projeção externa do país.


No último ano, multiplicaram-se estudos e propostas para lidar do ponto de vista brasileiro com o que a ONU considerou serem as dimensões da tríplice crise planetária: mudança climática, poluição e perda da biodiversidade. A peça mais abrangente e ambiciosa se intitula "Clima e estratégia internacional — novos rumos para o Brasil". O documento, prefaciado pelo ex-chanceler Celso Amorim, de autoria da socióloga Adriana Abdenur, da ex-ministra do Meio Ambiente Izabella Teixeira, do ex-governador da Bahia, hoje senador Jacques Wagner, e do advogado Pedro Abramovay, foi levado por seus redatores para a COP27.

Proposta inovadora, instala o meio ambiente no centro da política externa brasileira, entrelaçada à busca de formas sustentáveis de desenvolvimento interno. E tem como premissa que a distribuição dos custos e responsabilidades da defesa do planeta há de estar baseada na chamada "justiça climática’’: o imperativo de garantir os direitos de pessoas, populações e países mais vulneráveis.

Com os seus limitados recursos econômicos e militares, o Brasil possui poucos trunfos no jogo duro da política internacional. Não é assim na esfera climática. Nela o país é crucial para o destino da vida na Terra. Eis por que é impossível subestimar a importância da proposta que reestrutura as prioridades da ação externa em torno às saídas para a crise do clima e as lastreia em uma variedade de políticas domésticas. Já a proximidade dos autores com o PT é auspiciosa pela mudança que poderá acarretar à agenda partidária. Que o poderoso discurso do presidente eleito Lula tenha ido no mesmo diapasão mostra que o país volta ao mundo com nova voz.

Mercadinho Brasil

 


O lábaro estiolado

No feriado de 15 de novembro, data da Proclamação da República, subiu um pouco o número de pedestres que se concentram em frente a quartéis de algumas cidades brasileiras para requisitar um golpe de Estado. Tem sido assim desde que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) proclamou o resultado das urnas, dando a vitória a Luiz Inácio Lula da Silva. A turma que não se conforma exige que as baionetas anulem a eleição. Uma das faixas desfraldadas em São Paulo, diante da sede do Comando Militar do Sudeste, ao lado da Assembleia Legislativa, anteontem, resumiu bem o espírito do pessoal: “Nação brasileira implora por socorro – SOS Forças Armadas”.


Como nomear esse tipo de coisa? Com acerto, a imprensa vem se valendo de adjetivos precisos: “atos golpistas”, “manifestações antidemocráticas” ou “inconstitucionais”. É o que são, de fato. Na linguagem do jornalismo, o emprego de qualificativos criteriosos dá mais objetividade, e não menos, ao que se descreve. Um ato público que solicita uma ruptura violenta da ordem democrática só pode ser definido como golpista, assim como um cidadão que tem nacionalidade brasileira e dispõe de passaporte brasileiro só pode ser definido como um cidadão brasileiro. As aglomerações às portas dos quartéis trazem uma pauta de reivindicações inconstitucionais e ilegais. Logo, são golpistas. Dar o devido nome aos fatos, com substantivos e adjetivos, é um dos deveres mais valiosos da imprensa – e é exatamente esse dever que a imprensa está cumprindo quando chama de golpistas as manifestações golpistas.

Não adianta dizer que são apenas reuniões “pacíficas” e “ordeiras”. Não são, não senhor. Do mesmo modo que uns minguados caminhoneiros bloquearam estradas pelo País afora, num levante criminoso e até agora muito mal explicado, esta turma quer estrangular as vias do Estado Democrático de Direito. Mais do que os caminhoneiros sabotadores, querem inviabilizar o País. O seu propósito não tem nada de “pacífico”, não tem nada de “ordeiro”. Quanto aos quartéis, em vez de se esgueirar na ambiguidade melíflua, deveriam se considerar ofendidos com o assédio da barbárie que se amontoa ao redor de seus muros.

O que mais chama a atenção, contudo, é o mau gosto infantiloide que há nisso tudo. As imagens mostram adultos em trajes auriverdes perfilados sobre o asfalto para brincar de “marcha-soldado”. O golpismo da temporada tem uma nota pueril, por mais que seja perverso. Uns batem continência. Outros marcam passo, desengonçados e balofos, como escoteiros da terceira idade. Sempre aparece alguém tocando corneta (e mal). Como crianças amedrontadas, pedem “socorro” à força bruta para dar cabo de assombrações que não existem. Um lá fez discurso e disse que os apartamentos de mais de 60 metros quadrados serão ocupados e repartidos pelo novo governo. Delírios imobiliários. O atual presidente (agora empenhado no abandono de emprego) se reuniu com Geraldo Alckmin e pediu a ele que ajudasse a livrar o Brasil do “comunismo”. Delírios reacionários. Um fantasma ronda a imaginação devastada dos crianções envelhecidos: o fantasma do fantasma do fantasma do comunismo.

A vestimenta dos circunstantes também merece registro. O pendão nacional virou um adereço prêt-à-porter que as senhoras mais ricas usam como um lenço, uma écharpe tropical. Os homens tendem a vestir a mesma peça como se fosse uma capa de super-herói, e há os que improvisam um capuz quando chuvisca. O lábaro emoldura o bárbaro estrilado.

Que espetáculo desconcertante. Quando vemos as vagas em verde-amarelo pela televisão, a cena parece saída de um daqueles filmes de zumbis. Os tipos que se movem na tela, implorando a intercessão da brutalidade, lembram mortos-vivos políticos adornados pelo estandarte pátrio e armados de telefones celulares. Deserdados pela ditadura militar extinta, transitam num limbo entre a tirania defunta e a ordem democrática em formação. Eles não souberam se desprender do que a História já cuidou de sepultar e não se sensibilizam com o que a Nação presente tenta construir.

Com ares de comédia, o que vem se desenrolando é uma tragédia. Seria um erro zombar da situação. Dia destes, em Nova York, ao ser importunado por alguém que o perseguia na calçada com um celular dizendo frases de morto-vivo político, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso virou o rosto para trás, sem diminuir o passo, e disparou: “Perdeu, mané. Não amola”. A tirada do magistrado soa sardônica, mas o impasse é grave. As forças que procuram fazer regredir a roda da História nacional não estão aí a passeio. Por um triz, não ganharam as eleições. Suas performances são cafonas, sua estética é jeca e seu discurso, infantil, mas nunca, desde a redemocratização, estiveram tão organizadas e tão determinadas como agora.

As pequenas multidões de camisa amarela que agora acampam nas cercanias da soldadesca têm lá o seu quê de ridículo, mas o que elas expressam é mais profundo e ameaçador. Os golpistas que sequestraram e estiolaram as cores 
nacionais ainda vão dar muito trabalho. As instituições que se preparem.

O novo Brasil de Lula e sem Bolsonaro

O turbulento Brasil de Bolsonaro com suas conotações fascistas desapareceu? O Brasil luminoso de Lula voltou com suas conquistas sociais? Existe hoje um Brasil novo, sem precedentes, cujo objetivo final ainda é desconhecido? Essas são algumas das perguntas feitas por brasileiros que tremiam diante de um possível golpe militar.

Ainda não é fácil responder com certeza a essas perguntas, já que a situação no Brasil se desenvolve sob as areias movediças da incerteza. Bolsonaro perdeu as eleições, mas seus anfitriões continuam ferozes e não se contentam com a derrota. Isso é demonstrado pelas manifestações das centenas de caminhoneiros acampados em Brasília em frente ao reduto militar exigindo o golpe.


É verdade que os militares, dos quais mais de 6.000 foram colocados no governo por Bolsonaro, aceitaram a derrota do ex-capitão de extrema-direita, mas continuam mantendo uma atitude um tanto ambígua.

Os seguidores do líder de direita estavam confiantes de que a vigilância que o Exército mantinha antes das eleições, mesmo contra a Constituição, poderia levar à anulação do plebiscito que conferia a derrota do mito.

A reação dos militares era a última esperança de Bolsonaro e seus seguidores. Esperavam ter encontrado algum meio para contestar o resultado da derrota eleitoral. Isso não aconteceu, pois o documento de 70 páginas elaborado pelas Forças Armadas revelou que não foram encontradas falhas importantes para anular o resultado das urnas. Os seguidores de Bolsonaro não se conformaram e exigiram um novo posicionamento dos militares, mobilizando centenas de caminhoneiros em Brasília.

Em um segundo documento, o Exército quis presentear os bolsonaristas revoltados e declarou que, embora não tenham sido detectadas falhas nas urnas, isso não significava que não pudessem ser vulneráveis. Foi uma resposta diplomática, que não disse nada.

Tudo isso deu à equipe vitoriosa de Lula, amparada por dez partidos que vão da extrema esquerda à direita liberal não golpista, uma nova força para se mostrar eufórica e com mãos livres para realizar as reformas, especialmente as sociais. Assim, as verdadeiras lágrimas de Lula foram vistas com bons olhos quando ele afirmou que seu sonho é que ao final de seu mandato não haja um único brasileiro que não consiga comer três refeições por dia.

Não há dúvidas de que o novo governo Lula será fortemente marcado por seu caráter social e não ideológico. Onde a polêmica ainda pode irromper é na formação de seu novo governo, que pode não ser fundamentalmente de seu partido, o PT, mas de uma gama de partidos que vão da esquerda ao centro e à direita liberal.

Daí as dificuldades que Lula está tendo para escolher alguns de seus principais ministros, da Economia ao Meio Ambiente e ao Itamaraty, já que pretende restabelecer as relações do Brasil com o resto do mundo após o isolamento a que Bolsonaro o condenou.

Daí a importância da recepção que Lula começou a ter na Cúpula do Meio Ambiente, no Egito. Será seu primeiro teste internacional, já que nessas cúpulas Bolsonaro foi bastante evitado pelos demais chefes de Estado para não se comprometer com suas alucinações do golpe e da extrema-direita fascista.

Tudo isso é importante neste momento para Lula, que não pode se enganar nem esquecer que não foi eleito apenas pela força de seu partido, mas porque criou um bloco de forças, todas elas democráticas, capazes de enfrentar o bolsonarismo em suas raízes.

Como destacou Catarina Rochamonte em sua coluna no jornal O Globo: “Não há carta branca para o novo governo. Se a maioria dos brasileiros fez uma varredura dos enormes erros cometidos pelos governos petistas, não foi por amor a Lula, mas por horror a Bolsonaro”.

De fato, é uma verdade que começa a se mostrar importante na formação do novo governo Lula. O que talvez menos importe agora é que o PT aproveite a ocasião para colocar na nova administração o maior número possível dos seus quadros, mas sim que contribua na montagem de uma frente forte contra o bolsonarismo, que é a grande ameaça à democracia.

São aqueles momentos da história em que surgem verdadeiros estadistas, capazes de afugentar os monstros da desintegração política e das tentações autoritárias. A verdade é que para Lula, que jura que esta será sua última aventura política, pode ser o momento em que se firme como um verdadeiro estadista capaz de tirar o Brasil do inferno.

Os novos subversivos

É tocante: homens, mulheres e crianças fantasiados de verde-amarelo e enrolados em bandeiras, ajoelhados e de mãos postas diante dos quartéis, implorando que os militares salvem o Brasil. Esta salvação consiste em impedir, a sabre e cavalo, a posse do presidente eleito e manter no poder o derrotado, parece que ainda em exercício. Como a alternância do poder pelo voto direto é uma condição da democracia e, segundo a Constituição, o Brasil é um estado democrático de direito, é acintoso que se pregue aberta e impunemente um golpe de Estado. Mas o que espanta é que os quartéis ouçam toda essa subversão e fiquem em silêncio.


A palavra subversão já foi mais bem cotada na tropa. No dia 13 de março de 1964, uma multidão diante do antigo Ministério da Guerra, na avenida Presidente Vargas, no Rio, exigia que o presidente da República, João Goulart, desse um golpe preventivo contra as forças que, todos sabiam, se aglutinavam para derrubá-lo. Os generais de então viram naquele apelo uma "subversão da ordem" e derrubaram Goulart.

Hoje, os subversivos usam o sinal trocado, mas a soma é igual: a subversão da ordem democrática, pregada diante de prédios militares. A diferença é que, para as atuais Forças Armadas, isso não é mais subversão, mas "liberdade de expressão".

Para os fardados de 1964, os subversivos eram financiados por Moscou. Em 2022, Moscou tem mais o que fazer do que financiar subversões no Brasil. E nem os atuais subversivos precisam de apoio externo — são bancados por brasileiros mesmo, como empresários do agro e do tiro, pastores, políticos e policiais, que lhes fornecem segurança, transporte, comida, água, abrigo, bandeiras e as frases, inclusive em inglês, para as faixas que eles desfraldam em praças e estradas.

E, quem sabe, uma diária para fazê-los expressar com mais fervor essa liberdade que soa como música para os militares.