terça-feira, 25 de julho de 2017

Frutos podres do recesso

O jornalismo político – do qual sou mero leitor – cunhou uma expressão deliciosa: “flores do recesso”. Os repórteres referiam-se a balões de ensaio, especulações, possibilidades, promessas, tudo o que, com o Legislativo parado, se urdia, se tramava, se plantava. Ao menos o noticiário ficava agitado, neste país onde o Parlamento sempre teve muito peso.

Agora, a nossa decrepitude partidária é tão grande que não se pode esperar florescer nada após esse pequeno recesso de julho. Ao contrário, o que se percebe são articulações da casta política com um objetivo central: sobreviver. Colocar na gaveta as graves denúncias que pesam sobre todos as grandes e médias legendas e tocar a vida, pois “não se pode acabar com a política”. No fundo, têm a convicção dogmática do “fora de nós não há salvação”.

Então, em vez de flores, esse recesso nos legará, já nos primeiros dias de agosto, frutos podres, imprestáveis. A árvore frondosa chamada “reforma política”, sem participação popular e sem envolvimento da cidadania, é como se não tivesse raízes e seiva. Mas em seus galhos tentarão enxertar absurdos como o tal “distritão”, que prefiro chamar de “detritão”.

É a lei do “cada um por si”, da classificação “vestibulesca” dos candidatos em cada estado, do desprezo ao coletivo das legendas, da ideia de partido. Como diz o cientista político Sérgio Abranches, “eleger os mais votados parece fazer sentido. Mas, na verdade, favorece os que têm acesso a bolsões eleitorais controlados de forma clientelista”. Na Câmara dos Deputados, se esse “distritão” vigorar, serão 513 partidos do “eu sozinho”. E quase todos os que tentarem a reeleição, por serem mais conhecidos, terão êxito, estando ou não acusado de corrupção.

Outra aberração é o Fundo Especial de Financiamento da Democracia. Sob esse nome pomposo, o FFD (a sigla já não soa pomposa assim...) abocanhará R$ 3,6 bilhões dos cofres públicos para pagar a campanha do ano que vem. Um terço dessa generosa soma irá para o PMDB, o PT e o PSDB. O Fundo Partidário em vigor não será extinto e sequer tocado. Como se vê, o “teto de gastos”, que afeta os serviços públicos e, consequentemente, a população, não chega ao mundo da política dominante.

Por fim, o que se quer com a “cláusula de barreira” não é propriamente barrar a proliferação de siglas sem conteúdo, sem programas, sem ideologia. Busca-se fazer com que no cenário político brasileiro haja um “enxugamento” vertical e sobrem apenas 11 partidos já constituídos, com suas mazelas e inautenticidades. Essa decantação – necessária, sem dúvida – já viria com o fim das coligações nas eleições proporcionais. Mas é preciso restringir para garantir o mando dos que já mandam.

Enquanto isso, o governo que prometera não aumentar impostos acaba de fazê-lo, nos combustíveis, o que já está incidindo no custo de vida. E, na contramão da sua falsa “austeridade”, liberou, em emendas parlamentares e obras para “atender suas bases”, R$ 15,3 bilhões de reais, em 15 dias. Tudo para não ter o pedido de investigação de Sua Excelência, o presidente, aprovado na CCJ. A matéria vai ao plenário no fim do recesso e as torneiras novamente se abrirão.

Após o recesso, o que se anuncia é mais retrocesso. Só que vai ter reação.

Lula é o perseguido político mais rico do mundo

Abalados com os nove anos e seis meses de prisão que transformaram o cliente no primeiro presidente brasileiro condenado por atropelamento do Código Penal, os bacharéis do Instituto Lula parecem ter esquecido o restante da sentença: o juiz Sergio Moro também decidiu que o réu teria de devolver R$ 10 milhões tungados da Petrobras. Na quarta-feira, os distraídos doutores se dedicaram exclusivamente ao recomeço da versão petista da Ópera do Malandro, cujo enredo tenta transformar em perseguido político um condenado por corrupção e lavagem de dinheiro.

Só se deram conta do equívoco com o início do bloqueio de bens do ex-presidente. Além de três apartamentos, um terreno e dois automóveis, foram recolhidos R$ 600 mil que dormiam em quatro contas bancárias. A quantia é superior aos R$ 500 mil que Olavo Setúbal, dono do Itaú, costumava deixar em sua conta pessoal. No quesito conta corrente, Lula ganhou do maior banqueiro do país.
Nenhum texto alternativo automático disponível.

Na quinta-feira, enquanto uma plateia de Série C assistia a outra missa negra na Avenida Paulista, em louvor do direito de ir e vir do supremo sacerdote da seita, Moro ampliou a contra-ofensiva. O Brasil ficou sabendo que Lula resolveu preocupar-se com a aposentadoria em 2014, quando se aproximava dos 70 anos, e aplicou R$ 9 milhões em dois planos de previdência privada, um deles em nome da empresa que cuida das discurseiras fantasiadas de palestras. (Ou cuidava: os convites sumiram assim que apareceu a Lava Jato).

Com apenas dois lances de enxadrista, Sergio Moro deixou claro que o presidente que passava o tempo todo pensando nos pobres era a camuflagem do camelô de empreiteira que só pensava em virar milionário. Virou. É o perseguido político mais rico do mundo.

Um caso de cura da nossa doença

Há 100, 120 anos os Estados Unidos estavam numa crise muito parecida com a do Brasil de hoje. O fim da cultura rural, a urbanização caótica, a explosão da miséria e da violência nas grandes cidades, a descoberta da economia de escala esmagando o trabalho, as novas tecnologias (ferrovias) proporcionando a ocupação econômica de territórios virgens antes que houvesse regras para sua exploração, os robber barons que primeiro trilharam esses caminhos criando monopólios com ajuda de políticos corruptos e levando a patamares nunca sonhados o poder de subornar...

Com o problema e suas causas essenciais diagnosticados, o remédio, formulado na legislação antitruste para impedir a criação de monopólios, não era ministrado por um sistema tomado por caciques que controlavam havia décadas as portas de entrada da política e do serviço público. A separação dos Poderes, a independência de um Judiciário também venal, a blindagem dos mandatos, todas as instituições criadas pelos fundadores para garantir a hegemonia da vontade popular estavam sendo usadas para anulá-la. A expressão da vontade dos eleitores exclusivamente por meio de canais de representação, combinada com a intocabilidade dos mandatos, tinha sido pervertida em garantias de impunidade contra a falsificação dessa vontade. Ia morrendo numa odiada tirania da minoria o sonho do governo do povo, pelo povo e para o povo.

Resultado de imagem para referendum
As esperanças começaram a renascer com o movimento Progressista (1890-1920), que se inspirava no modelo suíço de recurso a ferramentas de democracia direta para contornar instâncias de representação recalcitrantes. O foco concentrou-se em dois instrumentos importados e uma adaptação nacional. Os direitos de referendo das leis dos Legislativos municipais e estaduais e de propor leis por iniciativa popular, como se fazia nos cantões suíços, para criar um acelerador para forçar reformas e um freio contra leis viciadas por interesses espúrios. Eleições primárias diretas para neutralizar o primeiro foco de acordos contra o direito de escolher, que estava no poder dos caciques de decidir quem podia ou não se candidatar. O recall, ou retomada de mandatos a qualquer momento por iniciativa popular, viria mais adiante para quebrar resistências. O objetivo era “manter a opinião pública sempre em posição de ascendência sobre as instituições de representação para amarrá-las concretamente à vontade popular”.

Por aquela mesma altura o jornalismo americano passou por uma revolução com o surgimento da revista McClure e seu jornalismo investigativo em profundidade revolvendo a sujeira (muckraking) da política, desmascarando os robber barons e seus métodos de ação e indicando os remédios contra a institucionalização da mentira. A matéria de Ida Tarbell sobre Rockefeller e seus esquemas com as ferrovias, que tinham “departamentos de política” exatamente semelhantes em métodos e propósitos aos das nossas odebrechts e JBSs, tornou-se um ícone desse novo jornalismo. E a circulação saltou para a casa dos milhões de exemplares.

Em 1901, o presidente McKinley é assassinado antes da posse e Theodore Roosevelt – um outsider que entrara para a política para desafiar “o sistema”, fizera fama em Nova York desvendando grandes esquemas de corrupção e, por ter sempre desafiado os velhos caciques republicanos, havia sido “contemplado” com a Vice-Presidência, numa manobra para tirá-lo da eleição presidencial de 1900 – torna-se presidente da República e passa a “governar com os jornalistas”, abraçando amplamente as reformas e procurando, com inédito sucesso, coordenar com eles a comunicação de suas investidas nesse campo.

São Francisco e Los Angeles tinham feito os primeiros ensaios e houve outras experiências em nível municipal, mas o movimento toma impulso decisivo ao se transformar em bandeira de luta do governo nacional. Em 1902 o Estado de Oregon inscreve em sua Constituição os direitos de iniciativa e referendo. Ali se estabeleceu o modelo de coleta de assinaturas que ficou nacionalmente conhecido como o “Sistema do Oregon”: 8% do eleitorado para qualificar uma lei de iniciativa popular e 5% para forçar um referendo. Com eles nas mãos, os eleitores foram construindo por ensaio e erro todo o resto da receita. Entre 1902 e 1913, 108 leis de iniciativa popular foram a voto no Oregon. A primeira delas para instituir as primárias diretas. Até 1915, quando a 1.ª Guerra Mundial esfriou o movimento, outros 15 Estados haviam adotado o modelo. A Califórnia foi o primeiro a incorporar o recall, em 1911. Isso acabou com as resistências e consolidou a revolução.

Hoje nenhum servidor público ou representante eleito, aí incluídos os juízes, é estável em seu cargo ou em seu mandato e tudo é passível de ir a voto direto nos EUA. Seja tomando carona nas eleições do calendário normal (a cada dois anos, incluindo legislativas e majoritárias), seja por meio de eleições especialmente convocadas, leis de iniciativa popular, veto a leis dos Legislativos, cassação de cargos e mandatos são diretamente decididos pelos eleitores. Na última eleição para presidente a média nacional de quesitos nas cédulas foi de 72. Impostos, emissão de dívida, gestão de escolas públicas, temas ambientais, leis sobre usos e costumes, direitos do consumidor, regulamentos de negócios, salário mínimo, alimentação e agricultura, legislação penal, tudo pode ser proposto ou desafiado mediante coleta de assinaturas ou mecanismos automáticos impondo esse procedimento aos próprios Legislativos em assuntos sensíveis nos municípios e nos Estados americanos. Há mais de uma dúzia de modelos diferentes de ballot measures ou “medidas para votação” passíveis de ser incluídas na cédula da próxima eleição para um “sim” ou “não” dos eleitores.

Foi isso que pôs a política jogando a favor da nação, reduziu drasticamente a corrupção e fez dos norte-americanos o povo mais rico e mais livre da História da humanidade.

Imagem do Dia

Vila Franca do Campo, Ilha de São Miguel, Açores, Portugal Mais
Vila Franca do Campo, Ilha de São Miguel, Açores, Portugal 

O cálculo de Lula

Há quem aponte o fiasco petista na eleição municipal de 2016 como sinal de que Lula não teria força para uma campanha em 2018. Trata-se de grave erro de leitura, decorrente da compreensão de que PT e seu fundador seriam o mesmo. Não são. Sim: o PT é Lula. Ele, contudo, é também o partido — mas isso apenas para o exercício de propriedade em que o criador se serve da criatura. O PT morreu como organização política. Serve ainda, porém, como caixão — mais um — sobre o qual seu senhor arma palanque.

Na semana passada, classificou-se como fracassado um ato em São Paulo — com a presença do ex-presidente e em desagravo a ele — que não reuniu mais que duas mil pessoas. Entendo que a percepção imediata seja essa. Se a expectativa era por um comício do catalisador que Lula foi em 1989 (e, ainda enganando, até 2002), o fracasso fica tão evidente quanto a inocência da expectativa. Já não há ilusões acerca do ex-popular. Isso não significa que não tenha votos nem que sua pregação, convertidos. Se é provável que os 20% de lulistas convictos tenham se tornado minoria silenciosa, certo é que votarão — incondicionalmente — nele. Certo é também que um candidato não precisará de muito mais para estar no segundo turno em 2018.

Hoje, o que interessa a Lula é menos a concentração de audiência num evento — menos cultivar a própria mitologia — do que a frequência de oportunidades para repetir sua narrativa entre os seus. Não interessa se para jornalistas puxa-sacos, se para rádios dos grotões ou se para um milhar de mortadelas, a intenção de Lula ao falar é apenas uma: martelar-se como vítima para seu público.

Vitimizar-se somente, no entanto, não basta para sustentar um discurso competitivo até a eleição. Aí que entra o zumbi PT.
A imagem pode conter: texto

Imposta como presidente petista por Lula, Gleisi Hoffmann é símbolo representativo do cadáver em que se putrifica o PT. Há quem relacione o grau a mais no tom de histeria da senadora — confundido com ascensão política — à definição de que seria ela o plano B do partido caso Lula não possa disputar a eleição. Trata-se novamente de grave erro de leitura, decorrente da compreensão de que o PT teria existência sem ele. Não teria. Não há plano B.

O próprio protagonismo de Gleisi é ilustrativo do processo acelerado de autodestruição a que Lula submete o PT para sobreviver individualmente e, com sorte, reencaixar seu projeto de poder — o partido desmorona enquanto seus escombros lhe servem de plataforma ao derradeiro comício. Nessa ruína, sim, Gleisi foi a escolhida. Não como alternativa presidencial. Mas como boi de piranha — agente detonadora da radicalização do discurso petista.

Mero utensílio tático, a senadora verbaliza a estratégia traçada pelo ex-presidente. Enquanto ele viaja Brasil adentro se vitimizando profissionalmente e se apregoando como candidato suprapartidário da esquerda, ao partido cabe se atirar ao precipício do ataque raivoso, cuspir fogo na gasolina esquerdista, reinventar a tal elite opressora, disparar contra a imprensa e, sobretudo, centrar munição em Sergio Moro. Tudo para robustecer as circunstâncias necessárias a uma campanha eleitoral como jamais houve, judicializada, a ser esgrimida nos tribunais pelo senso de oportunismo lulista — o ambiente incerto, institucionalmente miserável, em que um tipo como Lula cresce.

O PT afunda, como escada na lama, para que ele, acima de partidos, suba.

Qualquer outro em seu lugar estaria liquidado para as urnas. Por muito menos, Aécio Neves está. Condenado a quase dez anos de prisão, ainda assim Lula encontrou a vereda — a politização de sua condição de réu — por meio da qual avançar, trilha facilitada pela seletividade, pelo açodamento e pela incompetência do Ministério Público Federal. Ele deve ser grato a Janot. Em primeiro lugar, pela obra de ficção em que consistiu a caguetagem dos donos da J&F, lá onde uma história de crescimento empresarial anabolizado por 13 anos de gestão petista revela como bandido protagonista, entretanto, o PMDB de Temer. Em segundo lugar, pela difusão influente de que entre os crimes cometidos pelos políticos não haveria diferenças — como se a prática generalizada de caixa dois pudesse ser ombreada ao assalto ao Estado, promovido pelo petismo, para permanecer no poder. Em terceiro lugar, pela qualidade precária das denúncias relativas à Lava-Jato, flagelo em que se destaca a deturpação da delação premiada, que, de ponto de partida para aprofundamento sigiloso de investigação, deformou-se em fim vazado de si mesmo — como se a fala isolada de alguém contra outrem pudesse ter peso de prova. Deu no que deu.

Não importa a verdade. Não importa a sentença de Moro. Lula é o injustiçado, aquele contra quem não há prova material — não é essa a narrativa? Não importa a verdade. Ele é o perseguido, aquele cuja eventual ausência entre os postulantes a presidente será fraude. Não importa a verdade. Este é um amanhã enfiado goela abaixo do brasileiro por Lula, mas graças a Janot e turma: a campanha será disputada nos tribunais, ele será candidato — e já está no segundo turno.

Carlos Andreazza

E se quem decidisse o futuro de Temer fosse você?

Um juízo recorrente sobre o Brasil atual afirma que o país se encontraria excessivamente polarizado. É possível, em princípio, lamentar ou celebrar este fato, mas a própria variedade de razões para faze-lo sugerem um quadro com mais tons de cinza. Há quem lamente a polarização porque abriria caminho a aventureiros políticos, e quem a celebre como a oportunidade de exorcizar a doutrinação esquerdista. Há quem lamente a polarização como sequela da era petista, que teria introduzido este vírus exótico no país, e quem a celebre como o momento em que finalmente se porá a corrupção sob controle. Há quem celebre a polarização porque agora, finalmente, a luta de classes estaria às claras; e há quem lamente, não o fato de existir polarização, mas que sua forma presente encubra contradições mais profundas e importantes.


Uma sabedoria antiga ensina a distinguir entre contradição principal e aspecto principal da contradição: mesmo que se admita que a contradição principal é sempre a mesma, isto não impede que ela se apresente ora sob um aspecto, ora sob outro – e sejam estes diferentes aspectos a determinar por quais polarizações a contradição se expressa a cada momento. Para quem souber agir de acordo com esta sabedoria, a questão será sempre explorar a polarização que se apresenta como modo de chegar à contradição principal. Mas é possível que o contrário ocorra, e que as polarizações aparentes não só tornem impossível chegar ao cerne da contradição principal, como mantenham as coisas em suspenso, sem resolução, apesar de tudo.

“Apesar de tudo” é uma locução que define o momento atual ” tanto quanto “polarização”. Afinal, temos um governante com a maior rejeição em 28 anos, ostentando a peculiar distinção de ser o primeiro presidente em exercício denunciado por crime comum e cercado por um núcleo de Governo que talvez já estivesse todo preso não fosse o foro privilegiado, que, apesar de indícios contundentes de corrupção e ao custo de R$ 15 bilhões aos cofres públicos, consegue apoio de um Congresso em que 65% da população afirma absolutamente não confiar para driblar a ameaça de um impeachment apoiado por 81% da população. Notavelmente, Temer talvez seja único na história em ostentar sua baixíssima legitimidade como virtude: segundo ele, é justamente por não ter submetido e não pretender submeter seu programa ao voto popular que ele estaria habilitado a fazer as “reformas necessárias”. Mas suas reformas são rejeitadas por 71% (previdência) e 64% da população (trabalhista), ao mesmo tempo em que 90% dizem acreditar que o país está no rumo errado.

E ainda assim – apesar de tudo – a máquina segue andando. A razão imediata, é claro, é que a população, apesar de insatisfeita, não tem ido às ruas. Mas qual seria a razão disso? As duas principais respostas oferecidas até aqui indicam uma exaustão decorrente da mobilização constante dos últimos anos e a falta de perspectiva de soluções de curto prazo. Mas a indicação acima nos oferece uma outra hipótese: e se Temer estivesse sobrevivendo não apesar, mas justamente por causa da polarização existente? E se fosse não a ausência de conflito, mas o fato de que as forças em conflito se cancelam mutuamente, que mantivesse o frágil equilíbrio em que ele se apoia?

Neste caso, aquilo que nos impediria de tocar a contradição principal seria justamente as polarizações que a cercam e acobertam. Mas quais seriam, então, a contradição principal e os aspectos pelos quais esta tem se manifestado?

O mais estranho é perceber que este momento em que a classe política parece ter se descolado de qualquer controle social vem quatro anos após a maior expressão de poder destituinte da história do país: junho de 2013.

Em 2013, pela primeira vez em décadas, a população soube o que é ver a classe política com medo. E o medo se explicava porque aquele ciclo de protestos, certamente entre os maiores da história nacional, era fora de controle em pelo menos dois sentidos cruciais. Primeiro, por seu tamanho e transversalidade social. (Para além das manifestações no centro das grandes cidades, 2013-2014 também foi um período intenso de greves selvagens, rolezinhos, agitação nas periferias e mesmo entre jogadores de futebol.) Segundo, porque este transbordamento, em sua totalidade, não era controlado nem podia ser contido por nenhuma das forças políticas estabelecidas.

Ambos elementos indicam qual era o aspecto principal pelo qual as tensões sociais se expressavam ali: o antagonismo entre população e sistema político. Por certo, este antagonismo encobria profundas contradições entre os manifestantes, como ficaria evidente a seguir. Ainda assim, descartar 2013 como episódio meramente “antipolítico” é confundir “política” com “sistema político”, e ignorar a possibilidade de que a oposição ao sistema político seja ela mesmapolítica. Lamente-se ou celebre-se, o fato é incontornável: 2013 botava em questão o sistema político e as relações Estado-sociedade como um todo; e se foi incapaz de constituir saídas para os impasses que apontava, foi sem dúvida nossa grande Assembleia Nacional Destituinte.

Como entender a passagem que nos leva daí aonde estamos agora: um Governo sem legitimidade, um congresso sem moral e um sistema político funcionando por conta, exclusivamente segundo seus próprios imperativos, mais alheio à sociedade do que nunca; a descrença na classe política e nas instituições a níveis ainda mais altos que os de 2013; e tanta calma, “apesar de tudo”?

A primeira coisa a considerar é que os protestos de então feriram a besta, mas não a mataram. Nada mais perigoso: quanto mais a classe política se viu encurralada pela rejeição popular e por escândalos de corrupção, mais a sobrevivência imediata passou a ser seu único horizonte – e, portanto, ainda menos preocupada com a legitimidade ela se tornou. E quanto mais preparado para operar com baixa legitimidade o sistema político esteja, mais força será necessária para impor-lhe limites; uma mobilização capaz de fazer diferença hoje teria que ser ainda mais intensa que a de quatro anos atrás.

Mas porque o serviço ficou pela metade? Houve, é claro, a inércia da classe política, que, após uma série inicial de concessões, apostou que, ignorada e reprimida, a onda acabaria refluindo. Mas se a onda refluiu, é muito também por causas internas: a incapacidade de transformar o destituinte em constituinte e as contradições que levaram os protestos à fragmentação, fazendo com que o “fora de controle” se tornasse controlável – não somente por diminuir de tamanho, mas sobretudo por incorporar-se ao jogo político existente. A esta recolonização do poder destituinte pelo poder constituído corresponde a transformação do aspecto principal da contradição: de uma polarização externa(entre população e sistema político) a uma polarização interna (entre frações da classe política).

Profissão: político

O episódio lamentável da ocupação da Mesa Diretora do Senado – que serviu até de mesa de almoço – por senadoras que se opunham à aprovação da reforma trabalhista, contra todos os princípios de comportamento parlamentar, levou-me a reflexão sobre a atuação dos políticos na sociedade brasileira. Certamente, as nobres senadoras desconhecem uma das regras básicas na política, recomendada pelo cardeal Mazarino, homem público contemporâneo de Luís XIV, em seu Breviário dos Políticos, segundo a qual “é perigoso ser muito duro nas ações políticas”. A arte da política, como ensinou Maquiavel, consiste em organizar e superar as divergências entre partidos e pessoas, sem o que reinarão o conflito e a anarquia.

Max Weber, sociólogo alemão, assinalou que os políticos vivem “de” e “para” a política e que ela é não só uma vocação, mas também uma profissão. Uma vez entrando na política, são raros os que dela se afastam. Essa situação não existia na democracia ateniense. A regra era o sorteio, e não a eleição dos cidadãos, havia uma rotação de funções e as responsabilidades passavam de um cidadão para outro. Em alguns países essa situação ainda existe. Na Suécia, por exemplo, a renovação é de 40% e muitos dos que entram para a política depois retornam a suas atividades privadas.

Voltando para a nossa triste realidade, não surpreende que nas pesquisas de opinião pública aqui realizadas nos últimos anos seja justamente a classe política o grupo menos considerado pela sociedade. Há uma crise de representatividade. O grito das ruas é eloquente: “Eles não me representam”.

Resultado de imagem para profissão político charge

Como explicar o comportamento anárquico, tanto na Câmara dos Deputados quanto no Senado Federal, durante as discussões e votações de matérias de grande interesse para cada cidadão e para o País, por serem reformas modernizadoras que vão permitir ao Brasil acompanhar as tendências num mundo em fase de grandes mudanças?

A política no Brasil virou profissão no mau sentido. Na França o novo presidente, Emmanuel Macron, classificou a política como um “negócio de profissionais convictos”. Pelo que estamos vendo nos fatos apurados na Operação Lava Jato, a palavra negócioganha uma atualidade impressionante.

No Brasil, é difícil reconhecer na maioria dos políticos as três qualidade do homem público lembradas por Max Weber: paixão, no sentido próprio de realizar; sentimento de responsabilidade, cuja ausência os leva a só gozar o poder pelo poder, sem nenhum propósito positivo; e senso de proporção, a qualidade psicológica fundamental do político.

A profissionalização da política causa crescentes riscos ao exercício de mandatos, seja no Executivo, seja no Legislativo. A defesa das prioridades partidárias e de seus próprios interesses leva os políticos em geral a atuar deixando de lado o interesse nacional e o bem comum. De forma crescente, os interesses corporativos passam a dominar os objetivos da classe política, como temos podido observar nos últimos tempos. Além disso, com o crescimento da economia o Brasil mudou de escala e as oportunidades de negócios se tornaram muito atraentes, como vimos nos escândalos da Petrobrás. Regras instáveis para as eleições, para o financiamento das campanhas, para a criação e o funcionamento dos partidos, entre outros aspectos, levam à confusão entre o público e o privado e à defesa de interesses pouco republicanos. Aumenta o fosso entre o governante e o governado, cai o nível cultural e instala-se a corrupção.

Como justificar a permanência na vida política por tanto tempo? Muitos apontam para a complexidade das matérias em pauta e a necessidade de conhecimentos jurídicos, econômicos e outros que facilitariam a discussão de temas especializados. Historicamente, a política iniciou-se como uma atividade reservada à chamada elite rural e urbana e houve momentos em que só participavam dela os alfabetizados e os que tinham certo nível de renda. A democratização da vida política foi muito positiva, mas provocou distorções que hoje afastam muitas vocações da militância partidária e abre espaço para políticos que roubam para o partido, como assinalou o juiz Sergio Moro. Há um apego aos mandatos porque a profissão política oferece vantagem material e retribuição simbólica (sem falar narcisista) de grandeza, autoestima, capacidade de sedução e do “sabe com quem está falando”... O índice de renovação nas eleições proporcionais para o Congresso é muito baixo, embora esteja crescendo (43% no último pleito). A longa presença dos políticos na vida pública, com sucessivos mandatos (há mais de 15 deputados com mais de seis mandatos e alguns com mais de 30 anos na Câmara), torna-se regra, agora ampliada pela eleição de membros da mesma família (mulheres, filhos e outros parentes).

A França, depois a última eleição presidencial, está discutindo reformas institucionais que merecem ser acompanhadas pelos que se interessam pelo aperfeiçoamento dos costumes políticos. Macron propôs na campanha ampla reforma institucional. Eleito chefe de Estado, propôs algumas medidas visando a reduzir a acumulação de cargos: os parlamentares não podem exercer mandato nas Casas do Congresso e ao mesmo tempo ser nomeados para cargos no Executivo. Em discurso perante os parlamentares, ousou propor a redução do número de deputados e senadores em um terço e a reeleição a, no máximo, três mandatos. Se os políticos não aprovarem essas medidas, anunciou que vai convocar referendo para que o povo decida.

Eis uma agenda política que, se aplicada no Brasil, mudaria o cenário nacional e melhoraria a percepção dos eleitores quanto à representatividade e à importância da renovação política. Procura-se candidato, com coragem, para enfrentar esse desafio na eleição de 2018.

Paisagem brasileira

São Cristóvão (SE)

Prudência e Justiça

O ministro do STF Gilmar Mendes, sempre que provocado, não hesita em manifestar de público suas críticas, ainda que elas sejam ao Judiciário, Poder a que pertence e que já dirigiu. Nos últimos dias, o polêmico ministro, egresso do Ministério Público Federal – daí talvez seu estilo frontal e pouco conciliador –, voltou, por meio da imprensa, a criticar os altos custos de funcionamento do aparelho judiciário, denunciando privilégios flagrantemente onerosos e que deveriam ser objeto de reflexão por parte dos que elaboram os Orçamentos públicos e dos ordenadores de despesas afins.

O ministro buscou reforçar suas análises com uma avaliação desfavorável, que acrescentou ao que entende como indesejável desempenho da Justiça brasileira. “O Judiciário brasileiro – assevera Gilmar Mendes – é um macrocéfalo com pernas de pau. É o mais caro do mundo. E muito mal-estruturado. Há uma distorção completa”, concluiu. Provocado, Gilmar Mendes pontuou algumas questões como distorções por ele também identificadas como privilégios, em completo e inoportuno descompasso com a realidade nacional.

Resultado de imagem para justiça  charge

Entre elas, cita o auxílio-moradia, pago aos magistrados, rubrica que sozinha suga dos cofres públicos quase R$ 1 bilhão por ano. A nova Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Loman) não suavizou em nada o elenco do que o próprio ministro do STF denuncia como privilégios ou penduricalhos; coloquem-se em destaque a concessão de férias anuais em dois períodos de 30 dias cada, auxílio-educação para filhos de magistrados até os 24 anos de idade, percepção de gratificações extras por desempenho funcional, auxílio-locomoção, quando não feita em veículos oficiais colocados à disposição, auxílio-alimentação, auxílio-aperfeiçoamento profissional, para compra de livros e custeio de cursos, estes no Brasil ou mesmo no exterior, sem prejuízo, claro, dos vencimentos correntes do próprio magistrado.

Em sã consciência não há quem não defenda que a magistratura, pelas responsabilidades constitucionais que tem, goze de remuneração que possibilite a seus membros vida digna, percebendo vencimentos que lhe proporcionem, inclusive, a necessária independência para exercer suas responsabilidades. Mas nenhum funcionário público brasileiro, independentemente da responsabilidade ou importância da função que exerça, alcança tais padrões de remuneração e tais privilégios.

A presidente do STF, ministra Cármen Lúcia, ao que parece, tem-se mostrado reticente em remeter a nova Lei Orgânica da Magistratura ao Congresso, para sua discussão e eventual aprovação. Comenta-se em Brasília, nos espaços do Judiciário, que a ministra-presidente, por prudência e coerência, qualidades que sempre demonstrou em sua vida funcional, aguarda melhor momento para manifestar sua discordância com a eventual consolidação, como conquistas da categoria, de certos privilégios incluídos na nova Loman, que entende não serem republicanos.

Que não lhe faltem bom senso e juízo.

Pilantra incorrigível

Resultado de imagem para aspas
A palavra propina foi inventada pelos empresários para tentar culpar os políticos - ou pelo Ministério Público (...).
 
Todos candidatos pedem dinheiro para empresário, a vida inteira, desde que foi proclamada da República. A diferença é que agora transformaram as doações em propina, então ficou tudo criminoso"
Lula em entrevista a rádio de Manaus 

Supérfluo intocável

Resultado de imagem para cultura supérflua charge
"Para que precisamos de um Ministério da Cultura? Melhor um bom ministro da Educação, para ter gente que lê, e depois falarmos de cultura. Cultura é a maneira que eu tenho de enriquecer o meu saber. Que saber eu tenho para ser enriquecido se vou tão mal na escola?”, disse ao “Estado de S.Paulo” Pedro Herz, dono da Livraria Cultura.

É preciso coragem para dar hoje essa declaração – 32 anos depois de criado, o Ministério da Cultura ficou tão intocável no Brasil quanto o da Fazenda (quando, para o governo, o atual ou os anteriores, ele é menos importante que o da Pesca). Nada mal para um órgão que só foi criado porque, em 1985, o presidente eleito Tancredo Neves, ao armar seu governo, lembrou-se de que precisava dar um ministério a seu amigo José Aparecido de Oliveira. Donde inventou o da Cultura e escalou o querido Zé Aparecido.

Mas Tancredo morreu antes da posse. José Sarney assumiu e, para não criar caso, manteve o ministério.

Por aqueles dias, Aparecido cruzou na rua com o jornalista carioca Hermano Alves, grande gozador. Hermano exultou: “Parabéns, Zé! Ministro da Cultura! Você precisa ler um livro”. “Ah, é? Qual?”, perguntou Aparecido. Hermano fulminou: “Qualquer um!”.

Em maio do mesmo ano, ouvi para a Folha os sociólogos Octavio Ianni e Florestan Fernandes, o poeta Haroldo de Campos, o romancista Antonio Callado e o linguista Antonio Houaiss sobre a oportunidade daquele ministério. Callado foi radical: “Esse ministério é supérfluo. Com tantos analfabetos adultos e crianças, estamos preocupados com a superestrutura da educação, que é a cultura. Sou contríssimo”. Ianni, Florestan e Haroldo fizeram-lhe coro. Quem gostou da ideia foi Houaiss –que, não por acaso, ocuparia o cargo no governo Itamar.

Estou com Pedro. Se cuidarmos da educação, a cultura cuidará de si própria.

Impostos, como sempre

Na economia vemos o de sempre. O descontrole sobre os gastos públicos exigiu juros astronômicos do Banco Central para reduzir a inflação, derrubando junto a economia, a criação de empregos e a arrecadação de impostos.

E o governo Temer, inaugurado com uma concessão generalizada de aumentos de salários do funcionalismo público nos três Poderes, joga mais uma vez a conta sobre o restante da população.

Mas não devemos temer o futuro. Estamos construindo um país melhor. Pois muitos desses servidores começam a assumir suas responsabilidades com a eficiência e a transparência das políticas públicas.

As degeneradas práticas de corrupção ocorriam impunes havia décadas. É um fenômeno sistêmico e inerente ao disfuncional aparelho de Estado. De novo, apenas a ousadia na escalada das cifras e na generalização dos saques. Afinal, corrupção na política e estagnação na economia são subprodutos clássicos das engrenagens dirigistas.

A reforma política será tema incontornável das eleições de 2018.

A cláusula de representatividade a exigir votação expressiva para recebimento de financiamento público ou mesmo a extinção desse financiamento nas eleições serão assuntos inevitáveis.

A fidelidade partidária associada a uma cláusula de votação em bloco que assegure todos os votos de um partido após votações internas, à semelhança do “fechamento de questão”, garantiriam governabilidade orgânica no atacado, em vez do apoio mercenário por compra de votos no varejo como hoje ocorre.

O colapso dos serviços públicos na saúde, na segurança e na educação requer novo pacto federativo, descentralizando recursos e atribuições para estados e municípios.

Políticas públicas podem ser formuladas centralmente, mas devem ser aplicadas localmente, para garantia de maior eficiência em sua execução.

O dinheiro tem de ir aonde o povo está, e não ficar em Brasília sob o poder discricionário de um governo central hipertrofiado, ineficiente na execução e sem foco em suas atribuições de coordenação.

Mais Brasil e menos Brasília é exigência da Federação há muito asfixiada pelo aparelho de Estado ocupado por hordas de militantes partidários e apoiadores comprados, sem compromisso com a eficiência dos serviços públicos e nem mesmo com a satisfação de seus usuários.