terça-feira, 25 de julho de 2017

E se quem decidisse o futuro de Temer fosse você?

Um juízo recorrente sobre o Brasil atual afirma que o país se encontraria excessivamente polarizado. É possível, em princípio, lamentar ou celebrar este fato, mas a própria variedade de razões para faze-lo sugerem um quadro com mais tons de cinza. Há quem lamente a polarização porque abriria caminho a aventureiros políticos, e quem a celebre como a oportunidade de exorcizar a doutrinação esquerdista. Há quem lamente a polarização como sequela da era petista, que teria introduzido este vírus exótico no país, e quem a celebre como o momento em que finalmente se porá a corrupção sob controle. Há quem celebre a polarização porque agora, finalmente, a luta de classes estaria às claras; e há quem lamente, não o fato de existir polarização, mas que sua forma presente encubra contradições mais profundas e importantes.


Uma sabedoria antiga ensina a distinguir entre contradição principal e aspecto principal da contradição: mesmo que se admita que a contradição principal é sempre a mesma, isto não impede que ela se apresente ora sob um aspecto, ora sob outro – e sejam estes diferentes aspectos a determinar por quais polarizações a contradição se expressa a cada momento. Para quem souber agir de acordo com esta sabedoria, a questão será sempre explorar a polarização que se apresenta como modo de chegar à contradição principal. Mas é possível que o contrário ocorra, e que as polarizações aparentes não só tornem impossível chegar ao cerne da contradição principal, como mantenham as coisas em suspenso, sem resolução, apesar de tudo.

“Apesar de tudo” é uma locução que define o momento atual ” tanto quanto “polarização”. Afinal, temos um governante com a maior rejeição em 28 anos, ostentando a peculiar distinção de ser o primeiro presidente em exercício denunciado por crime comum e cercado por um núcleo de Governo que talvez já estivesse todo preso não fosse o foro privilegiado, que, apesar de indícios contundentes de corrupção e ao custo de R$ 15 bilhões aos cofres públicos, consegue apoio de um Congresso em que 65% da população afirma absolutamente não confiar para driblar a ameaça de um impeachment apoiado por 81% da população. Notavelmente, Temer talvez seja único na história em ostentar sua baixíssima legitimidade como virtude: segundo ele, é justamente por não ter submetido e não pretender submeter seu programa ao voto popular que ele estaria habilitado a fazer as “reformas necessárias”. Mas suas reformas são rejeitadas por 71% (previdência) e 64% da população (trabalhista), ao mesmo tempo em que 90% dizem acreditar que o país está no rumo errado.

E ainda assim – apesar de tudo – a máquina segue andando. A razão imediata, é claro, é que a população, apesar de insatisfeita, não tem ido às ruas. Mas qual seria a razão disso? As duas principais respostas oferecidas até aqui indicam uma exaustão decorrente da mobilização constante dos últimos anos e a falta de perspectiva de soluções de curto prazo. Mas a indicação acima nos oferece uma outra hipótese: e se Temer estivesse sobrevivendo não apesar, mas justamente por causa da polarização existente? E se fosse não a ausência de conflito, mas o fato de que as forças em conflito se cancelam mutuamente, que mantivesse o frágil equilíbrio em que ele se apoia?

Neste caso, aquilo que nos impediria de tocar a contradição principal seria justamente as polarizações que a cercam e acobertam. Mas quais seriam, então, a contradição principal e os aspectos pelos quais esta tem se manifestado?

O mais estranho é perceber que este momento em que a classe política parece ter se descolado de qualquer controle social vem quatro anos após a maior expressão de poder destituinte da história do país: junho de 2013.

Em 2013, pela primeira vez em décadas, a população soube o que é ver a classe política com medo. E o medo se explicava porque aquele ciclo de protestos, certamente entre os maiores da história nacional, era fora de controle em pelo menos dois sentidos cruciais. Primeiro, por seu tamanho e transversalidade social. (Para além das manifestações no centro das grandes cidades, 2013-2014 também foi um período intenso de greves selvagens, rolezinhos, agitação nas periferias e mesmo entre jogadores de futebol.) Segundo, porque este transbordamento, em sua totalidade, não era controlado nem podia ser contido por nenhuma das forças políticas estabelecidas.

Ambos elementos indicam qual era o aspecto principal pelo qual as tensões sociais se expressavam ali: o antagonismo entre população e sistema político. Por certo, este antagonismo encobria profundas contradições entre os manifestantes, como ficaria evidente a seguir. Ainda assim, descartar 2013 como episódio meramente “antipolítico” é confundir “política” com “sistema político”, e ignorar a possibilidade de que a oposição ao sistema político seja ela mesmapolítica. Lamente-se ou celebre-se, o fato é incontornável: 2013 botava em questão o sistema político e as relações Estado-sociedade como um todo; e se foi incapaz de constituir saídas para os impasses que apontava, foi sem dúvida nossa grande Assembleia Nacional Destituinte.

Como entender a passagem que nos leva daí aonde estamos agora: um Governo sem legitimidade, um congresso sem moral e um sistema político funcionando por conta, exclusivamente segundo seus próprios imperativos, mais alheio à sociedade do que nunca; a descrença na classe política e nas instituições a níveis ainda mais altos que os de 2013; e tanta calma, “apesar de tudo”?

A primeira coisa a considerar é que os protestos de então feriram a besta, mas não a mataram. Nada mais perigoso: quanto mais a classe política se viu encurralada pela rejeição popular e por escândalos de corrupção, mais a sobrevivência imediata passou a ser seu único horizonte – e, portanto, ainda menos preocupada com a legitimidade ela se tornou. E quanto mais preparado para operar com baixa legitimidade o sistema político esteja, mais força será necessária para impor-lhe limites; uma mobilização capaz de fazer diferença hoje teria que ser ainda mais intensa que a de quatro anos atrás.

Mas porque o serviço ficou pela metade? Houve, é claro, a inércia da classe política, que, após uma série inicial de concessões, apostou que, ignorada e reprimida, a onda acabaria refluindo. Mas se a onda refluiu, é muito também por causas internas: a incapacidade de transformar o destituinte em constituinte e as contradições que levaram os protestos à fragmentação, fazendo com que o “fora de controle” se tornasse controlável – não somente por diminuir de tamanho, mas sobretudo por incorporar-se ao jogo político existente. A esta recolonização do poder destituinte pelo poder constituído corresponde a transformação do aspecto principal da contradição: de uma polarização externa(entre população e sistema político) a uma polarização interna (entre frações da classe política).

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