quarta-feira, 11 de maio de 2016

Depois do desastre, o esquecimento

Com o malogro da desesperada tentativa de procrastinar o processo de impeachment usando como mão do gato a lamentável figura do presidente interino da Câmara dos Deputados, Dilma Rousseff acabou perdendo o que lhe restava de dignidade antes de perder o mandato de presidente da República. O Senado Federal deve aprovar hoje a admissibilidade do impeachment por crime de responsabilidade, decisão que implicará o afastamento da presidente por até 180 dias ou até a cassação definitiva de seu mandato, o que a esta altura é dado como coisa certa mesmo – embora eles não admitam publicamente – pelos partidários de Dilma. E, por se tratar de um julgamento eminentemente político, o destino de Dilma está desde já selado também pela manifestação da vontade amplamente majoritária do povo brasileiro.

A base legal para o processo que permite o impedimento de Dilma são as “pedaladas” fiscais e os decretos que liberaram recursos sem autorização prévia do Congresso. Trata-se, como toda questão legal, de assunto sujeito a controvérsia. A controvérsia, aliás, é o fundamento do princípio democrático do direito à ampla defesa. Neste caso, quem tinha competência constitucional para decidir se a discussão do impeachment é admissível ou não era a Câmara dos Deputados. Uma maioria de mais de dois terços dos parlamentares decidiu que o processo deveria, sim, ser encaminhado ao Senado Federal, para confirmar a admissibilidade e, nesse caso, julgar o mérito do processo, decidindo se Dilma deve ou não ser afastada do cargo. É claro que essa ampla maioria de deputados refletiu o sentimento também majoritário dos brasileiros, do mesmo modo que estarão se comportando hoje, e certamente se comportarão no julgamento final, os senadores da República.


Pesam, na formação da repulsa que a imensa maioria dos brasileiros manifesta pelo governo lulopetista, a recessão econômica em que o País foi jogado pela gestão irresponsável da presidente; a redução do poder aquisitivo da população e o aumento inédito do desemprego; a Operação Lava Jato revelando até que ponto o governo se comprometeu com a corrupção, transformada em método político; e as mentiras deslavadas com as quais Lula, Dilma e a tigrada enganaram a Nação durante anos.

O Senado dará prosseguimento hoje a um processo eminentemente político que prosperou porque tem lastro jurídico suficiente, apesar dos protestos de Dilma e seus cada vez mais escassos seguidores. O fato é que, se o governo estivesse sendo bem-sucedido, Dilma não teria tido a necessidade de cometer os crimes das “pedaladas” e dos decretos ilegais com os quais tentou mascarar a falência fiscal do País.

Fosse outro o seu estofo, diante da inevitabilidade do impeachment, Dilma Rousseff teria a dignidade de pensar no Brasil em primeiro lugar. Em vez disso, tenta incendiar o País à custa da inconsequência política e da falta de genuíno sentimento democrático dos “movimentos sociais” que o PT manipula.

Mesmo sem renunciar a seu direito de se defender jurídica e politicamente, Dilma não precisaria ter promovido o vergonhoso espetáculo da apropriação de espaços públicos, como o Palácio do Planalto, para promover manifestações partidárias e de entidades que sobrevivem à custa de recursos públicos contra instituições como o Parlamento e o Judiciário. Dilma poderia ter-se poupado, e ao País que jurou defender, da ignomínia de ter patrocinado a divulgação internacional de sua visão da crise brasileira, que implica desmoralizar as instituições nacionais, rebaixando o Brasil ao nível de uma republiqueta bananeira submetida a um “golpe” urdido pelas “elites”.

Mas Dilma e o PT – Lula, como de hábito, quando a coisa aperta permanece atrás da moita – renderam-se ao que neles há de mais primário, na tentativa de “construir um discurso político” que lhes garanta a sobrevivência depois do desterro. Mas, principalmente no que concerne a Dilma, é razoável cogitar de sobrevivência política, tendo ela jogado no lixo 54 milhões de votos?

É hora de Dilma Rousseff começar a se preparar para o destino que o Brasil lhe reservou generosamente: o esquecimento.

Súcia e simpatizantes, tirem a mão desse impeachment que não pertence a Cunha

Na biografia que Lira Neto escreveu de Getúlio Vargas, é impactante ver como o ditador acalentou a própria morte por 20 anos. Ao contrário do que sustentam seus adoradores, o ato irreversível não foi consumado por alguém torturado pelas pressões dos adversários. A tortura de Vargas era a perda do poder – a desonra inadmissível – e o suicídio foi determinado pela alma tirânica de quem não suportava viver sem mandar.

Dilma Rousseff se diz vítima de um golpe que não ousa denunciar em nenhum órgão internacional sério; vê-se alvo de “manhas e artimanhas” enquanto usa, para a defesa impossível, o advogado-geral da União que ataca a União; sente-se atingida pela conspiração de Michel Temer como se as prerrogativas institucionais do vice se submetessem às conveniências dela; choraminga a vingança de Eduardo Cunha como se ele votasse por 513 deputados – enfim, Dilma é torturada pela expectativa de perder o poder, inadmissível para a mulherzinha autoritária.

Há alguns dias, circularam notícias de que a presidente, negando a realidade enquanto rumina tais confusões, planejava um ato grandiloquente. E, como não se trata de uma figura com a lucidez trágica de Vargas, mas apenas de uma fraude tosca, grandiloquência obriga ao ridículo, patético ou apenas idiota: Dilma Rousseff se acorrentaria à cadeira de presidente. Ora, a súcia acorrentou-se ao poder há 13 anos e, eleita, a czarina da roubalheira tornou-se elo das cadeias que atariam o PT ao poder por décadas. Quando milhões de indignados arrebentam o projeto odioso, a quem repele a democracia e estranha a dignidade, nada resta senão arrastar correntes entre balbucios delirantes de vigarice.

Enquanto não se parte a corrente de vez, no prolongamento dramático da agonia do país que tenta socorrer a meninazinha de olhos verdes que Quintana chamou de esperança, o PT e comparsas seguem fazendo política como a entendem: forçando o Brasil a perder mais tempo, dinheiro, credibilidade dos investidores e algum remanescente respeito internacional para que a súcia ganhe umas horas a mais acorrentada e, assim, o aberrante Waldir Maranhão despontou para o vexame planetário e a cassação tardia.

Com uma rápida consulta às normas da Câmara, descobre-se que o anúncio da anulação do impeachment, na dublagem do grotesco presidente interino, seria o maior disparate em 190 anos de história daquela Casa. Mas e daí? Se a súcia reconhecesse leis, competência, decoro ou honestidade, não teria trazido o país à desolação.

Pleno de equívocos técnicos e morais, o ato bisonho escancara o gozo perverso desses cafajestes xexelentos asfixiando o país para não romperem as correntes com o poder e é a cena sem cortes, o nu frontal, do que tramaram Ricardo Lewandovski e Marco Aurélio, no STF, se Teori Zavascki não tivesse se antecipado para suspender o mandato de Eduardo Cunha e afastá-lo da presidência da Câmara. A exótica dupla togada se preparava para acatar recurso que ensejaria o pedido de cancelamento das sessões para a admissibilidade do impeachment.

Olhem aqui, súcia e simpatizantes, tirem a mão desse impeachment, ele não pertence a Cunha, Temer ou à oposição: ele é meu; é seu; é de milhões de indignados. Essas e outras ciladas avisam que a meninazinha de olhos verdes – não esqueçamos, adverte o poeta, o nome dela é esperança – continuará ameaçada e é preciso que os indignados se reúnam em torno dela na calçada para protegê-la da tirana que arrasta correntes.

Os pecados capitais de Dilma


Gula

Dilma emagreceu 20 quilos no período de pouco mais de um ano e emagreceu o país ao fazê-lo mergulhar na pior recessão econômica de sua história desde os anos 30 do século passado. Nem por isso deixou de atentar contra o pecado da gula.

Presidente algum, nem mesmo os da ditadura de 64, se empenhou tanto em concentrar o poder como Dilma o fez. Seu apetite era insaciável. Confiou em poucos auxiliares. E mesmo desses costumava duvidar quando lhe diziam o que não queria ouvir. “Não, você não entende de nada disso”, gritava se a opinião de um a contrariasse.

Dilma jamais inspirou ternura ou respeito entre os que a cercavam. Inspirava temor. Certa vez, de tão assustada com o que ela lhe disse, uma ministra da área social fez pipi na calça.

Um executivo de empresa moderna delega poderes, estabelece metas e cobra resultados. Dilma cobrou resultados sem delegar suficientes poderes. Foi uma gerente à moda antiga e, como tal, ineficiente.

Na organização de esquerda na qual militou nos anos 70, ganhou fama como tarefeira. Fazia o que lhe mandavam. E só se distinguiu por isso.

Avareza

Ganha um fim de semana com Dilma no Palácio da Alvorada quem apontar uma dezena de pessoas alvos de elogios feitos por ela.

Risque a palavra elogio do vocabulário capenga de Dilma.

O que move gente, o que a leva a superar limitações, é o reconhecimento. Sem ele não se consegue desempenho acima da média.

A maioria dos ministros escolhidos por Dilma destacou-se por sua mediocridade ou falta de iniciativa. Mas mesmo os que não eram medíocres, acabaram se igualando aos demais por falta de incentivo.

Fernando Haddad, atual prefeito de São Paulo, largou o Ministério da Educação. Nelson Jobim, o Ministério da Defesa para não ter que brigar com Dilma. O ex-ministro Edison Lobão, de Minas e Energia, resignou-se a tocar um ministério com nomes indicados por Dilma para os cargos mais estratégicos. Aproveitou o tempo disponível para fazer negócios e se dar bem. É hoje investigado pela Lava-Jato.

Luxúria

O desejo egoísta por todo o prazer corporal e material está longe de marcar o desempenho de Dilma como presidente. Mas o desejo de sentir-se superior em relação aos seus semelhantes é também uma forma de luxúria, e desse mal ela padeceu.

Enquanto foi ministra de Lula, comportou-se face a ele como uma humilde cumpridora de ordens. Uma vez, acertou-se com Geddel Vieira Lima, então ministro da Integração Nacional, sobre o trecho por onde deveria começar a transposição das águas do rio São Francisco. Depois, ela o acompanhou à uma reunião com Lula. Ouviu Geddel dissertar sobre as vantagens do trecho escolhido, mas calou-se quando Lula discordou. Então passou a defender o ponto de vista de Lula.

A necessidade de afirmação de Dilma agravou-se tão logo ela foi eleita para suceder Lula. Exigiu, a partir dali, ser tratada como “presidenta”. Jamais furtou-se a humilhar os que somente tolerava. Expulsou um general do elevador privativo do Palácio do Planalto. Fez chorar José Sérgio Gabrielli, presidente da Petrobras. E deixou em pânico o jardineiro do Alvorada ao culpá-lo pela bicada de uma ema no cachorro que ela ganhara de presente do ex-ministro José Dirceu.

Ira

Um dos ministros do governo inicial de Dilma deu-se ao prazer de anotar os frequentes surtos de ira que a acometia. Quando já colecionava 16 episódios em dois anos, abdicou do trabalho. Os surtos haviam se banalizado. Alguns se tornaram famosos em 13 anos de governos do PT.

Dilma era ministra das Minas e Energia e recebia um deputado da oposição quando Erenice Guerra e um assessor irromperam em seu gabinete. Erenice limitou-se a estender um papel para Dilma, que depois de lê-lo, explodiu: “Esses caras estão pensando o quê? Que vão botar aqui?” – e apontou para a própria bunda. “Aqui, nem a ditatura pôs”. Tão logo Erenice e o assessor saíram, Dilma começou a gargalhar. Virou-se para o deputado e disse: “Essa gente tem de ser tratada assim”. Picou o papel e retomou a conversa.

Como presidente, Dilma protagonizou o que ficaria conhecido como “A guerra dos cabides”. Irritada com a arrumação do seu guarda-roupa no Alvorada, começou a jogar cabides em Jane, a camareira. Que reagiu jogando cabides nela. Jane acabou demitida, mas depois presenteada com outro emprego em troca do seu silêncio.

Inveja

Quem se acha não inveja seus semelhantes. A não ser que reconheça que pelo menos um deles possa lhe ser superior.

A inveja de Lula responde por uma série de atritos que Dilma teve com ele, prejudicando seus governos. No primeiro, logo de saída, ela quis mostrar que não seria tolerante como Lula fora com suspeitos de corrupção. Nascia, ali, a “faxineira ética”, capaz de demitir sete ministros em menos de um ano. Nos anos seguintes, aconselhada por Lula, ela readmitiu alguns e empregou representantes dos outros para garantir apoio à sua reeleição. A faxineira ética teve vida curta.

Havia um pacto não escrito firmado por ela com Lula que permitiria o retorno dele à presidência em 2014. Dona Marisa, mulher de Lula, jamais perdoou Dilma por ter passado seu marido para trás. Dilma é mulher de confronto. Lula só confronta da boca para fora. Ela ganhou a parada, mas, por pouco, não perdeu a eleição para Aécio Neves, candidato do PSDB. Ganhou, também, a mágoa de Lula para sempre. “Eu errei, não deveria ter escolhido essa mulher”, repete ele à exaustão.

Preguiça

De dar longos expedientes, certamente não. De ler relatórios e de anotá-los, também não. De meter-se em tudo, inclusive no que não deveria, tampouco. A preguiça de Dilma, talvez a forma mais perversa de preguiça, foi de ouvir, de conversar, de trocar ideias, de conviver com pessoas.

Dilma é uma mulher solitária e atormentada por seus demônios. Amava o pai. Não se dava bem com a mãe, e ainda não se dá. Considera a filha “insuportável”, como uma vez confessou. A mãe mora com ela no Alvorada. Mas antes morava com o ex-marido de Dilma em Porto Alegre.

Quando a Câmara aprovou o impeachment, o ministro Jaques Wagner sugeriu a Dilma que telefonasse para cada um dos 137 deputados que haviam votado contra. Seria um gesto simpático. Wagner entregou a Dilma a lista dos 137 com pelo menos dois ou três números de telefone de cada um. Destacou quatro telefonistas para fazerem as ligações. Dilma não quis.

O vice Michel Temer telefonou para quase todos os 367 deputados que votaram a favor do impeachment. Muitas razões explicam a queda de Dilma, mas talvez a principal seja o fato de ela não gostar de ninguém e de ninguém gostar dela.

Soberba


A vaidade é o pecado preferido do carismático personagem vivido por Al Pacino no filme “Advogado do Diabo”. A soberba talvez tenha sido o pecado preferido de Dilma. Por soberba, ela desprezou os políticos em geral, e a maioria deles em particular. Evitou aproximar-se deles. Evitou recebê-los. Tratou-os como cargas que era obrigada a carregar. Ao então deputado Paulo Rocha (PT-PA), referindo-se à sua atividade na Câmara, uma vez ela observou: “Não sei como você suporta isso”. Há mais de três anos que o ex-senador Eduardo Suplicy (PT-SP) pede para ser recebido por ela – sem sucesso.

Diante do risco de a Lava-Jato bater à sua porta antes da reeleição, Dilma divulgou uma nota que afastava qualquer culpa dela, mas que deixava Lula exposto à suspeita de que a roubalheira na Petrobras fora obra dele, sim. Pode ter sido. Mas pode ter sido de Dilma também.

Por mais que a soberba a impeça de reconhecer, ela e Lula estarão ligados para sempre pela história do país. Para o bem ou para o mal. Hoje, são as conveniências, apenas elas, que os fazem encenar uma parceria que já se desfez.

País do surreal

Essa crise só é compreensível por causa do nosso surrealismo, que é essa diferença entre a realidade do Brasil e o que se descreve como sendo o Brasil.
Jorge Mautner
Charge O Tempo 10/05

O bambolê que não foi usado por Dilma na Presidência

Quando Dilma Rousseff foi escolhida candidata de Lula em 2010, todos sabiam que ela era profundamente inábil politicamente. Sabiam, também, que não tinha jogo de cintura, a ponto de o deputado Henrique Eduardo Alves, então líder do PMDB, ter-lhe presenteado com um bambolê, para que praticasse.

Muitos acreditavam que Lula, seu padrinho e mentor, poderia compensar as grotescas deficiências de Dilma. Não foi o que aconteceu. A presidente consumiu o capital político do chefe e o próprio com imensa rapidez. E passou a vagar à deriva no espaço político.

Ela só não perdeu as eleições em 2014 por causa de uma campanha equivocada de Aécio Neves, mal votado em sua própria base eleitoral, Minas Gerais, e pela imensa fragilidade de Marina Silva no período da campanha em que era competitiva. Funcionou, também, a dialética do medo. Tão criticada pela esquerda e largamente empregada por ela na campanha, sob a orientação do marqueteiro João Santana. Sem falar na estratégia de negar a realidade da derrocada econômica que estava à vista desde 2013, conforme diagnóstico repetido por nove entre dez economistas formadores de opinião.

Nesta semana, de forma melancólica, Dilma Rousseff deixará o governo para não voltar. Sua saída não deixará saudades. Obviamente, aqueles milhares que foram se perpetuando em cargos de confiança vão sentir falta dos bons tempos. Muitos jamais ganharão o mesmo que recebiam em suas funções públicas e perderão o status conquistado há 13 anos. Centenas de ONGs, que também vivem penduradas nos cofres públicos, vão sentir saudades desse lugar confortável da máquina pública que desfrutaram supondo que fosse para sempre.

A imensa maioria da sociedade, porém, não sentirá saudades e, rapidamente, esquecerá a era Dilma. Para eles, a presidente já vai tarde. Seus últimos dias foram tristes, imersos em crises variadas. O mais inacreditável de tudo é que não foi por falta de aviso. Aliados avisaram que muita coisa estava errada. Os sinais de descaminho do governo já eram evidentes em 2013. A contabilidade destrutiva e a caótica pilotagem política eram mais do que evidentes.

Recente reportagem de Leandra Peres no jornal “Valor Econômico” descreveu em detalhes, por meio de depoimentos, a ruinosa política fiscal conduzida por Arno Augustin na Secretaria do Tesouro, executando formulação da presidente, com quem nutria perfeita identidade ideológica.

Os erros se avolumaram com a vitória em 2014. Naquele momento, Dilma e seu entorno acreditaram que mandariam no Congresso. Aloizio Mercadante, o guru de então, liderou uma reforma ministerial inócua e uma luta inglória contra Eduardo Cunha. Jamais conseguiram conter as sucessivas rebeliões nem estabelecer um padrão de relacionamento. Um a um, os aliados foram abandonando a presidente. Seu fim é melancólico como ex-presidente da mais poderosa das democracias ocidentais.

O presidente do Brasil, seja ele quem for, controla um Orçamento de R$ 1,4 trilhão; manda em 50% do sistema financeiro nacional; nomeia mais de 30 mil cargos de confiança; usa e abusa de medidas provisórias; concentra um poder extraordinário; e maneja um amplo painel de controle. Trata-se de uma equação de primeiro grau – se não for tolo, o presidente do Brasil terá todos os instrumentos nos campos da economia e da política para impor sua vontade e assegurar a governabilidade. Caso contrário, o resultado será mais do que previsível.

Três sílabas e R$ 1 bilhão

Apaga-se o velho governo entre manhas e artimanhas, como as ofertas sedutoras ao presidente interino da Câmara que o estimularam a ridicularizar a Casa que comanda, ao tentar “anular” uma decisão tomada há 23 dias por um colégio de 511 deputados, em ritual definido pelo Supremo, e já repassada ao Senado.

O processo de impeachment, é útil lembrar, começou pelo voto de 72% da Câmara, na acachapante maioria de 367 deputados. A esquálida base governista somou 137 votos, sequer alcançou 27% dos presentes.

Essa “brincadeira com a democracia”, na qualificação do presidente do Senado, teve as digitais do advogado-geral da União, José Eduardo Cardozo. O principal resultado foi expor como tresloucado seu agente na Câmara, o deputado Waldir Maranhão, que, acusado de abuso de poder, agora deve enfrentar um processo de destituição ou cassação de mandato.

O antigo governo submerge em tumulto, sob o olhar sorridente da presidente Dilma Rousseff e a súbita afonia de Lula.

A nova administração ainda não ascendeu. Pelas vacilações do vice Michel Temer, expostas na semana passada, corre risco de emergir prisioneira de um modo arcaico de fazer política, cujo réquiem vem sendo entoado por multidões nas ruas, há três anos, e a exumação avança nos inquéritos sobre corrupção nas empresas estatais.

A tensão atual é um derivativo da travessia para mudanças impostas à geração de políticos como Lula, Dilma e Temer. Sobram evidências da marcha na transição do convívio coletivo com a impunidade do esbulho dos cofres públicos, em privilégio de poucas e ineficientes empresas, para uma sociedade disposta a premiar com recursos coletivos a iniciativa privada focada na subsistência da competição no mercado.

Nessa perspectiva, ganha relevância o “pedido de desculpas ao povo brasileiro” anunciado ontem pelo grupo Andrade Gutierrez: “Reconhecemos que erros graves foram cometidos e, ao contrário de negá-los, estamos assumindo-os publicamente. Entretanto, um pedido de desculpas, por si só, não basta: é preciso aprender com os erros praticados e, principalmente, atuar firmemente para que não voltem a ocorrer.”

Às três sílabas da palavra (“desculpas”), adicionou o compromisso de indenização de R$ 1 bilhão ao Estado. O valor equivale a US$ 272 milhões, pelo câmbio de ontem, e corresponde a 13,5% da receita líquida da empreiteira. Garante seu lugar entre as dez corporações globais mais penalizadas desde 2008, logo abaixo da francesa Techinp (US$ 338 milhões), acima da japonesa JGC (US$ 218 milhões) e da alemã Daimler (US$ 185 milhões).

Acionistas e executivos da Andrade Gutierrez fizeram a coisa certa, na trilha aberta pela concorrente Camargo Corrêa, primeira entre empreiteiras acusadas nos inquéritos sobre corrupção a aceitar um compromisso judicial para mudar de forma radical as relações com políticos, partidos e governos.

A Andrade Gutierrez diz acreditar que “a Operação Lava-Jato poderá servir como um catalisador para profundas mudanças culturais, que transformem o modo de fazer negócios no país”.

É ótima notícia num ambiente tumultuado por um governo que há muito perdeu a bússola e agora fenece por inanição política.

José Casado

Um pela outra sem querermos volta

A gente sabe como começa mas não sabe como acaba. A votação pelos senadores pela admissibilidade do impeachment da presidente Dilma tem seu início marcado para a manhã de hoje, mas vai durar até de noite, ignorando-se se entrará pela madrugada de amanhã. Pelo menos 60 oradores estão inscritos, a maioria favorável ao início do processo. Uma vez colhidos os votos, tudo indica que Madame estará afastada do exercício de suas funções por 180 dias, quando se dará o julgamento das acusações que pesam sobre ela. Condenada, estará fora do jogo político, sendo que Michel Temer, ocupando interinamente as funções presidenciais a partir de amanhã, assumirá em definitivo até o final do mandato, a 31 de dezembro de 2018. Caso, é óbvio, não sobrevenham surpresas, dessas a que quase nos acostumamos.

Dilma dedetizacao e decoradora mesa gabinete presidente Temer.psd

Devemos estar preparados para conturbações e inusitados que, aliás, já entraram ontem em sua fase mais aguda, como manifestações de toda ordem, no país inteiro. Rodovias tem sido interrompidas, ruas e praças ocupadas, entreveros variados entre partidários da presidente Dilma e seus adversários.

Vexame igual raríssimas vezes tem ocorrido na República, fazendo prenunciar que nada se normalizará daqui para a frente. O Brasil está dividido, ao contrário do Congresso, onde prevalece a tendência antigoverno. O ideal seria que a população ficasse à margem, mas as emoções espontâneas ou fabricadas fazem prever o contrário. O resultado é que o Brasil vive um de seus piores momentos, destacando-se a crise econômica acima e além da crise política.

A hesitação do ainda vice-presidente Michel Temer em compor seu ministério e, especialmente, em definir seu programa de governo, só f az aumentar as agruras nacionais. Não dá para calcular quanto andamos para trás em termos de crescimento, esperança e previsões. Muito menos de miséria e desilusão.

Continuamos aguardando a virada do jogo, mas a conclusão é de que só com mudanças profundas nas estruturas institucionais e políticas. A corrupção, apesar de combatida, dá a impressão de ter aumentado. Há quem suponha que apenas com imediatas eleições gerais será possível reverter o quadro, mas o perigo será trocarmos seis por meia dúzia, como já vai acontecer na Esplanada dos Ministérios.

Pelo menos a reforma econômica faz-se imprescindível, mas do que mais se fala é da troca das garantias trabalhistas pela “livre” negociação entre patrões e empregados, da desvinculação do salário mínimo da justiça social, do aumento de impostos e do aumento do desemprego. Não há possibilidade de união nacional, já que nenhuma categoria admite abrir mão de seus privilégios e regalias. A classe política, em vez de encontrar e buscar soluções, mais se aferra às suas vantagens. A classe trabalhadora não encontra forças para sustentar antigas conquistas e as elites parecem prestes a ampliar suas benesses.

Em suma, se os horizontes parecem cada vez mais nebulosos, continuamos à espera de milagres, inexistentes em meio à desesperança. Entre Dilma e Temer, damos um pela outra e não queremos volta.

Douto Michel, leia mestre Graça. Não se deixe levar pelos fisiológicos

Graciliano Ramos dizia, com muita propriedade, que a “a arte de escrever é cortar”. Se Temer transportar a sabedoria do escritor para a sua futura administração, certamente começaria o governo sem traumas. Não dá mais para manter uma máquina de governo inchada, sacrificando o contribuinte que paga cada vez mais impostos para sustentar milhares de pessoas em cargos comissionados, além de mais de trinta ministérios aparelhados por partidos políticos de eficiência duvidosa. O escritor alagoano levou ao pé da letra o que alardeava ser um bom texto, enxuto e objetivo como servidor público. Quando esteve à frente da prefeitura de Palmeira dos Índios deixou para a posteridade o relatório da sua administração que o levou a ser descoberto como um dos maiores escritores brasileiros do Século XX: cortou despesas, acabou com a corrupção, o fisiologismo e enxugou a máquina para governar com eficiência.

Se Temer quiser conhecer de austeridade administrativa não custa nada, nas horas de folga, folhear algumas páginas do livro “Viventes das Alagoas”, onde vai encontrar o relatório que Graciliano enviou para o governo da época falando das suas obras, dos custos e do uso do dinheiro público. Evidentemente que esse conselho não se aplicaria jamais a presidente que sai, confessadamente ignorante e distante das boas leituras. Dilma vai passar para a história – se passar, é claro – como um objeto decorativo de uma presidência da república. Só não será totalmente esquecida, porque os livros vão falar dela como uma presidente banida do cargo pelo povo brasileiro.

É, mas vamos ao futuro, porque do presente já não se fala mais. A indecisão de Michel Temer em reduzir o número de ministérios é um vacilo que o povo brasileiro vai cobrar caro. Se ele for realmente atender a todos os políticos fisiológicos e a todos os partidos de aluguel, não precisa ser nenhum expert em política para profetizar que o governo já começa errado. Ao Brasil, com a sua economia em frangalhos, já não se permite deixar que o povo fique em segundo plano numa mudança de governo.

O novo presidente tem a obrigação de pensar mais nos trabalhadores que tiveram seus salários corroídos pela inflação, pensar nos 12 milhões de desempregados que o PT largou na rua da amargura, pensar no combate a corrupção apoiando a Polícia Federal e o Ministério Público, pensar na educação e na saúde, setores destroçados pela política de aparelhamento petista e pensar mais nessa nova geração que do Brasil só conhece a palavra corrupção. Enfim, Temer precisa, com urgência, se despoluir do fisiologismo partidário para governar olhando para o futuro.

É inadmissível que a máquina pública atravanque o desenvolvimento do país. O Estado não pode ser ele apenas a locomotiva econômica, o único gerador de emprego. O Brasil precisa, isso sim, desburocratizar a administração, incentivar as médias, pequenas e microempresas geradoras de emprego. Abrir as portas para o mercado externo e interno; incentivar os empresários a produzir; reduzir os juros cavalares que sacrificam o trabalhador; taxar os lucros dos bancos que, com a nova tecnologia, deixaram de ser empregadores em alta escala; limpar, limpar mesmo a administração pública acabando com a maioria dos cargos comissionados, extinguindo boa parte dos ministérios; e fiscalizando com seriedade as obras que, infelizmente, ainda estão nas mãos dos empreiteiros envolvidos na Operação Lava Jato.

Michel Temer precisa tomar medidas moralizadoras e saneadoras para devolver a confiança e autoestima à população brasileira. Se não fizer isso logo nos primeiros dias de governo, dará pretexto para os petistas corruptos se mobilizarem e pedir a sua cabeça orientando as centrais sindicais à greve e à mobilização popular, porque, de todos os partidos, o PT ainda é o único que tem uma base organizada pelas centrais sindicais, famigeradas organizações de pelegos que vivem às custas do estado.

Por isso, doutor Michel, sem querer ser chato, gostaria de sugerir novamente a Vossa Excelência que lesse, sem muito compromisso, o relatório de Graciliano Ramos. Quem sabe se o comportamento dos nossos governantes não teria sido traçado há mais de meio século por um matuto genuíno e genial com as letras lá das bandas de Quebrangulo. Doutor Michel, a solução para os nossos problemas, não está no estrangeiro, mas aqui pertinho de nós. É só conhecer mais um pouco a inteligência de alguns dos nossos homens públicos.

Não deram exemplo

Não importa a reivindicação ou a justiça histórica e social, o que verdadeiramente importa é que em algum lugar deve se começar o exemplo. A lição para Dilma e Lula é que, apesar de terem feito o impossível para impulsionar sua revolução, caíram no erro de imitar, permitir e contribuir com o enredo daquela ditadura da corrupção que os precedeu, com uma série de escândalos desde o caso Mensalão até a Lava Jato que acabou por devorá-los
Antonio Navalón, "Carnaval em maio"

O golpe inexistente e o planejado pelo PT

Ao longo das últimas semanas tive oportunidade de observar a conduta da tropa de choque petista na Câmara e no Senado durante as longas etapas de deliberação sobre o impeachment da presidente Dilma. Havia duas linhas paralelas de atuação e ambas convergiam para aquela câmera que dava publicidade às infindáveis sessões. A primeira das linhas de defesa do governo repetia, à nossa fadiga, que assistíamos a um "golpe". A segunda pretendia, com gritos, tumultos, questões de ordem e contestações, evitar que fossem mencionados outros crimes não constantes do processo. Desses não poderíamos ouvir falar. O PT insistentemente varria seu lixo para debaixo do tapete.

Quem são os agentes do "golpe" que o PT insistentemente denuncia? Vamos a eles:
1. a população brasileira, que aos milhões saiu às ruas para sacudir as instituições de sua inércia;
2. os autores de dezenas de requerimentos de impeachment que, ao longo de 2015, foram transformados por Eduardo Cunha em moeda de negociação para salvar a própria pele;
3. os signatários do requerimento finalmente escolhido para prosseguir, subscrito, entre outros, por um fundador do PT e, não por acaso, o que reduzia a apenas dois os muitos crimes de responsabilidade praticados pelo governo (opção que muito contrariou a Dra. Janaína Paschoal, como ela fez questão de deixar bem claro);
4. o Tribunal de Contas da União, que por seus técnicos e pela unanimidade de seus ministros rejeitou as contas e apontou os crimes de responsabilidade ao Congresso Nacional;
5. o Supremo Tribunal Federal, que definiu minuciosamente o moroso rito a ser seguido pelas duas casas do Congresso em sua deliberação;
6. a Câmara dos Deputados, que em duas etapas e por quase três quartos de seus membros votou pela admissibilidade do processo;
7. o Senado Federal, que na próxima quarta-feira, por grande maioria de seus membros, salvo contratempo, acolherá a denúncia e dará início ao processo público de julgamento da presidente.


É a todos esses que a presidente e sua tropa de choque se referem quando insistem no discurso do golpe, cuja única utilidade é legitimar as ações efetivamente golpistas que se sucederão e para as quais estão sendo motivadas as milícias a serviço do partido e do governo. Não é mesmo, Gilberto Carvalho? Não basta terem, através de uma organização criminosa, assim designada pelo Procurador Geral da República, conduzido o país à mais caótica situação dos últimos 80 anos. É preciso, por todos os meios, impedir que ele se recupere.

Assim, de um lado, temos um processo transparente, fundamentado, dispondo de amplo apoio popular e congressual, contando com reiterado reconhecimento judicial. De outro, as motivações e condutas golpistas do governo, como essa traquinagem inventada pela AGU com a cumplicidade do presidente interino da Câmara dos Deputados, que ronrona fidelidade nos ouvidos do governo pedindo cafuné.

Percival Puggina

12 lições do Manual para Político Honesto

Aproveitando que teremos eleições este ano, resolvi colaborar com os candidatos de todos os partidos criando um pequeno manual de conduta do político honesto.

Recomendo a aplicação integral do que está aqui prescrito sob pena de não surtir efeito.

Não crie leis que criam crimes que sem essas leis não seriam crimes jamais por não violarem direitos de ninguém. Se tiver que criar leis, que essas sejam objetivas, prospectivas, iguais para todos, claras, simples, de maneira a serem compreendidas por qualquer um e que estejam limitadas a defender os direitos individuais à vida, à liberdade, à propriedade e à busca da felicidade, como cada indivíduo preferir para si;

Não crie privilégios para alguém quando esses privilégios, necessariamente, somente poderão ser oferecidos se os privilegiados, ou o próprio governo, tiver que violar direitos de alguém;

Não crie impostos porque impostos são uma violação de direitos e o governo não tem isenção moral para violar os direitos de ninguém. Pelo contrário, o governo tem a obrigação moral de proteger os direitos individuais de todos;

Não crie gastos que não possam ser pagos pelo que for angariado dos usuários do governo através do pagamento espontâneo de taxas e doações;

Elimine todo e qualquer tipo de lei que viole os direitos das pessoas, seja com relação à vida, à liberdade e à propriedade que elas possuem;

Não viva da política, viva de um trabalho produtivo. A política não cria valor. Ela pode no máximo transferir tais valores de uma mão para outra. Sempre que os valores produzidos por alguém forem transferidos para terceiros através de um ato violento promovido por uma lei instituída por um político, pelo menos um valor estará sendo destruído, o da justiça.

Impeça que o governo se imiscua na economia, na educação, na geração de ideias (cultura) e na ciência. Economia, educação, cultura e ciência são atividades baseadas no uso da razão e são diretamente dependentes do grau de liberdade experimentado pela sociedade. O governo, pelo contrário, tem a sua natureza diretamente relacionada com a coerção, com o uso da força. Coerção e uso da força são ações destrutivas, exatamente o oposto do que economia, educação, cultura e ciência têm como propósito, a criação de valor.

Não leve em consideração quantas pessoas terão vantagens com suas propostas legislativas. Considere apenas que, se alguém, mesmo um único indivíduo, tiver seus direitos individuais violados, então sua proposta é imoral e ilegítima, não devendo ser levada adiante;

Considere que nenhum grupo pode ter direitos superiores aos direitos que cada indivíduo do grupo possui isoladamente. E que ninguém num grupo tem direitos inferiores ou superiores aos direitos de qualquer outro membro do grupo.

Direitos e privilégios são coisas diferentes. Quando alguém adquire direito sobre algo que não é seu, através de uma ação violenta, está adquirindo um privilégio ilegítimo, um ganho imerecido e injustificado. Direitos só existem quando somos proprietários daquilo que efetivamente nos pertence, seja a nossa vida, seja a nossa liberdade ou seja a propriedade que adquirimos legitimamente, através da sua criação, produção, troca por algo que já se tinha ou por doação voluntária feita por alguém.


Se você quer participar da política, entenda claramente que fazer política não é comprometer suas convicções éticas, cedendo aos apelos daqueles que querem violar direitos, em vez de preservá-los. Se você cede ao mal, você é um mau político. Político bom é aquele que defende o bem, a verdade e o que é moralmente correto, de forma intransigente e inegociável. Um político do bem não está na política para transigir com quem defende o mal. Pelo contrário! Um político do bem está na política para impedir que o mal prospere.

Finalmente, já que você insiste em atuar na política, faça da sua atuação uma defesa intransigente da livre iniciativa e da propriedade privada. Não apenas na retórica. Proponha a privatização de tudo que for estatal: empresas, instituições, imóveis, serviços. Enfim, tudo! Quando sobrar apenas a justiça e a polícia, e você ainda quiser ser um político servindo à sociedade, demita-se do cargo para o qual foi eleito e torne-se um juiz ou um policial a serviço da defesa dos direitos individuais.

Se você não seguir algum desses itens, tenha certeza que você acabará sendo mais do que um político, você acabará sendo um bandido como qualquer bandido que viola os direitos individuais.

Resposta certa para pergunta errada

A maioria das polêmicas sobre saúde não se refere a fatos. Dificilmente, haverá discordâncias sobre a menor expectativa de vida de populações expostas a piores condições de vida. O dissenso é se as desigualdades de adoecer e morrer refletem inferioridade biológica, estimulam ou decorrem de déficits culturais ou injustiças sociais. O pau quebra porque diferentes perspectivas de observação, percepção sobre problemas de saúde, quais são e como se conectam causas e efeitos acompanham-se de propostas e ações simétricas ao diagnóstico para resolvê-las.

Problemas de saúde nem sempre estão ao alcance de escalas físicas visíveis ao olho nu, não são desencadeados apenas dentro dos corpos biológicos, o “corpo” social estabelece padrões de morbi-mortalidade que modificam características inatas. Dependendo da explicação, o número elevado de assassinatos de jovens negros pode ser considerado estatística para a Justiça criminal ou informação de saúde pública. As consequências para a ação são a coibição e o aumento da probabilidade de prevenção. Certamente, ambas alternativas são necessárias. Mas, não basta combiná-las na retórica. Estudos, trabalho técnico e participação social são vitais para que políticas sociais não se transfigurem em trocas de favores.

Saúde relaciona-se diretamente com vidas concretas, gerações históricas. A predileção para jogar com acaso e contingência é um recurso dos deuses e figuras míticas. O destino e a sorte não têm a última palavra quando se conhecem teorias e métodos que permitem às sociedades aumentar as chances para que a todos seja assegurada uma vida saudável e digna. Dizer que está se politizando a saúde como se ignorar a política não fosse em si uma tomada de posição ou misturar no papel um pouco de público com muito privado não garante bons resultados. A responsabilidade de cientistas, pesquisadores e políticos é estudar e buscar soluções para problemas relevantes.

A crise econômica mundial de 2008 não é um álibi genérico. As causas da falta de vacina e penicilina nas unidades de saúde, fechamento de enfermarias, leitos, maternidades públicas em um país que constitucionalmente tem SUS são intoleráveis. Estamos indo para trás, a “travessia” para a melhoria da saúde de qualquer governo deveria ser séria e racional.

A proposta programática para a saúde de Michel Temer é um plágio da plataforma de Aécio Neves. Porém, deve-se conceder o devido desconto ao gesto. Os programas para a saúde dos mais diferentes partidos apresentados em períodos eleitorais distintos são quase primos-irmãos. Portanto, o reparo não é a semelhança do parentesco, e sim a desatenção dos copistas à situação objetiva da saúde em 2016. A montagem de acordos com empresários, entidades médicas e especialistas em saúde pública realizada pelo PSDB em 2014 perdeu a validade.

O modelo “SUS etéreo”, um fantasma bonzinho que teima em permanecer entre os vivos e parcerias público-privadas corporificadas em organizações sociais e em outros formatos de transferência de recursos públicos para grupos privados deu errado. As organizações sociais foram protagonistas das denúncias e comprovações de corrupção e empresas de planos de saúde citadas em delações. A privatização pode ou não ser a resposta certa para a pergunta sobre aumento de competitividade em áreas que transacionam mercadorias. Contudo, saúde e mercado nunca colaram bem. Mesmo um jargão aparentemente inteligente como investir na saúde não decolou. Saúde não pode ser vendida, nem estocada. A adoção de estilos de vida saudáveis ou compra de planos privados que deveriam atenuar gastos assistenciais catastróficos das famílias não significa retorno em saúde.

Tem discurso que pode convencer, mas nada explica. Propor a livre concorrência, afirmar a ineficiência das instituições públicas, aludindo sempre ao bom funcionamento do mercado e à falência do SUS, mas ironicamente elaborar e impor esquemas regulatórios aos governos não são atitudes de quem se preocupa com saúde. A banha da cobra, uma das mais populares mezinhas para o tratamento de diversas maleitas baseia-se em uma das regras da medicina tradicional: animais assustadores e perigosos seriam fontes de tratamentos poderosos. A metáfora continua fazendo sentido, mas o óleo de cobra perdeu valor medicinal. A moderna saúde pública contribuiu para alterar as probabilidades de sofrer, adoecer e morrer em determinadas condições e idade. Portanto, é preciso que as ações de saúde sejam conscientes, coordenadas e informadas por conhecimentos científicos.

A disputa não é entre a ciência e a política. Sistemas de saúde em sociedades democráticas são inerentemente politicamente orientados. Mas a extensão do controle político-partidário e dos lobbies varia e determina se os orçamentos públicos serão destinados para a saúde ou a imposturas. A interrogação sobre a agressividade da serpente deve ser respondida positivamente. No entanto, a pergunta sobre o que fazer com a saúde e quem o fará não admite como solução a transformação da área em depósito de ferozes organizações e parlamentares envolvidos na Lava-Jato. Comprovadamente, políticas e programas de saúde podem reduzir ou incrementar desigualdades. Caracterizar evidências, teorias e fatores de sustentação de políticas de saúde no médio e longo prazo como insignificantes e valorizar apenas a força dos interesses particulares e mercantis tornam a própria condição humana insignificante.