sexta-feira, 21 de novembro de 2025
O Pedro, o lobo e a Inteligência Artificial
A encomenda ao Copilot, ferramenta da Inteligência Artificial, era simples: quero um poema romântico sobre a liberdade e a IA nos próximos anos.
A resposta chegou de pronto:
“No sopro elétrico do tempo que avança, ergue-se a promessa, frágil esperança. Circuitos sonham, frios, mas tão profundos, tecendo destinos, moldando os mundos.
Democracia, flor de voz e escolha, dança ao vento que a tecnologia acolha. Mas quem guia o código, quem guarda a razão, quando a máquina sussurra ao coração?
Se o amor é humano, feito de imperfeição, pode a IA aprender a compaixão? Ou será que, no cálculo exato e preciso, perdemos o riso, o toque, o improviso?
Que os próximos cinquenta anos sejam luz, onde a ética, como estrela, nos conduz. Que a inteligência não roube, mas inspire, um mundo onde a liberdade nunca expire.”
Circuitos tecem destino? Perdemos “o riso, o toque, o improviso”?
Apesar do pobre versejar, segura de si, a IA não se esconde. O ChatGPT admite que em 50 anos “a tecnologia concentre o poder: Estados e megacorporações controlam dados, comunicação e decisões políticas” e a “opinião pública é gerida por sistemas de algoritmos de propaganda”.
Verdade que este é o cenário mais desfavorável que o ChatGPT admite, pois a “tendência provável” é que “as democracias formais continuem a existir, mas com forte influência tecnológica e económica”. Note-se o “forte”.
Se houvesse dúvidas sobre a ameaça que já por cá anda, estas confissões serviriam de sobreaviso.
Há dias, um apoiante de Noronha Lopes à presidência do Benfica contava a um defensor de Rui Costa que tinha estado certo da vitória, por só lhe terem chegado boas notícias, e muitas, sobre o seu apoiado. Riu-se o interlocutor: a ele só chegaram novas sobre o favoritismo de Rui Costa.
Já passaram anos suficientes para se saber que os algoritmos não mostram a verdade, exibem o que sabem que gostamos de ler. É experimentar perguntar ao Google se as facas de cerâmica são boas e ver como nos dias seguintes se multiplicam anúncios e propostas de desconto sobre estes utensílios.
Todas as novas tecnologias assustam. No Paleolítico, quando os nossos antepassados começaram a usar o fogo (a Wikipedia assegura que foi há 1,7 milhões de anos, mas não consegui confirmar nas velhas enciclopédias de papel e muitos volumes) que medo devem ter sentido daquelas chamas. A fissão nuclear, que aterrorizou o mundo em Hiroshima e Nagasaki, também é hoje essencial na medicina e na engenharia. Sabe-se: o que o conhecimento traz de novo pode ter bom ou mau uso.
O perigo acrescido da IA é que nos manipula, seleciona os dados e condiciona o pensamento. Nenhum dos anteriores avanços tecnológicos ambicionou ultrapassar a Humanidade. É este o perigo novo.
“E o mais preocupante é que, à medida que estes modelos se tornam mais fluentes, mais acessíveis e mais integrados nos nossos hábitos quotidianos, torna-se cada vez mais improvável desconfiar”, alerta Adolfo Mesquita Nunes, no seu Algoritmocracia.
E quanto mais se usam, mais dados obtêm, alimentando-se vorazmente. Como a mitológica Hidra, por cada cabeça cortada, crescem duas.
Pior do que estar mal informado é ser enganado. Acreditar na verdade única quase sempre leva à maior das mentiras.
“A mentira já não gera vergonha: gera cliques, partilhas, convites para programas. O que antes destruía reputações, agora rende dividendos políticos”, escreveu Mesquita Nunes. Como diz, a informação sempre teve viés. A diferença – grande – é que sabíamos de onde vinha o enviesamento e sabíamos onde procurar o contraponto. Sabíamos quem responsabilizar e podíamos fazê-lo. Agora desconhecemos o que está por detrás do ecrã juntando letras e criando ilusões.
Daniel Innerarity, em O Novo Espaço Público, já em 2010, dizia que “sem a adequada representação, isto é, sem o trabalho de mediação institucional [de jornalistas, entre outros] que concretiza e integra o diverso num espaço público, a sociedade encontra grandes dificuldades para se ver, para decifrar e tornar operativa a multiplicidade”.
O problema que os algoritmos trouxeram é que, “como em tantas coisas, também à política se aplica o aviso de que a profusão de dados não substitui a necessidade de formar uma ideia geral e de se organizar coerentemente”, reforça o mesmo autor. E o algoritmo dá-nos sempre mais do mesmo.
Daqui nascem bolhas, discute-se e lê-se sobre o que se concorda, estreita-se o conhecimento, conversa-se em pequenas comunidades que se autoalimentam. Como o apoiante de Noronha Lopes…
Mesquita Nunes propõe a regulação dos algoritmos. O problema da regulação é que, por norma, quando é aceite, já minou o terreno. Vejam-se os tratados para o desarmamento nuclear. Quando conseguiram fixar uma meta, já havia ogivas mais do que suficientes para destruir toda a vida humana.
Karen Hao, uma das pioneiras da IA e agora feroz adversária das grandes tecnológicas, em Empire of AI, veio alertar para que “a forma de dissolver o império [das grandes tecnológicas] exige uma redistribuição dos seus poderes”, através da criação de uma rede de investigadores independentes das corporações.
Agora, “qualquer gigante tecnológico está na corrida para deixar os adversários fora de prova, em prol de um novo desenvolvimento da IA”. Karen Hao quer dividir, para reinar.
Yuval Noah Harari, sem deixar de parte as questões políticas e cívicas, alerta em Nexus que “IA e automação serão um desafio ainda maior para os países em desenvolvimento”. Sem capacidade para entrarem na corrida, vão ver os produtos que tradicionalmente fabricavam passarem a ser produzidos por autómatos nos países em que são consumidos. A mão de obra barata daqueles países será mais cara do que os robots. “O que lhes acontecerá quando for mais barato produzir têxteis na Europa?”, interroga.
Mesquita Nunes não se fica pela necessidade de regular, como a Europa tem tibiamente tentado. Ele aborda a questão da educação e do ensino das novas gerações: “A primeira condição é simples: reconhecer que existe. Não como um detalhe técnico, não como uma curiosidade de especialistas, mas como um problema central para as democracias liberais.”
Voltemos às previsões do Copilot: daqui por 50 anos, “a IA não será apenas uma ferramenta tecnológica; será um fator estruturante da política global. Sem governança robusta e cooperação internacional, os riscos de erosão democrática são elevados. Por outro lado, se bem regulada, a IA pode ser um catalisador para sistemas mais transparentes, inclusivos e resilientes”. Fica o alerta. Alguém acredita que esta seja uma bandeira dos que influenciam a sociedade?
Harari, que não dá tréguas à IA, nas suas 21 Lições Para o Século XXI, defende a teoria dos quatro C, com origem em alguns pedagogos: pensamento crítico, comunicação, colaboração e criatividade. “As escolas devem dar menos atenção às aptidões técnicas e colocar a ênfase nas aptidões de vida polivalente. Acima de tudo estará a capacidade de lidar com a mudança.”
Eis-nos chegados ao que dificilmente se fará: perceber que, mais do que ensinar que um ácido e uma base dão um sal e água, ou mesmo quem era o pai de D. Sancho I, o núcleo do conhecimento terá de caminhar para o ensino das novas tecnologias, dos seus proveitos e dos seus perigos. A questão não é proibir telemóveis, é ensinar a usá-los, é explicar truques e técnicas que nos defendam das artimanhas. É fazer destas matérias verdadeiras e exigentes áreas de ensino.
Há coisas simples de explicar: numa fotografia gerada pela IA é usual que as sombras não batam certo, assim como a iluminação dos objetos. Ensinar a ser crítico, com a importância e o empenho com que se ensina a ler.
Ou corremos o risco de termos académicos a gritar que vem aí o lobo, quando já está no meio do rebanho e só não queremos vê-lo.
Chegamos sempre tarde.
A resposta chegou de pronto:
“No sopro elétrico do tempo que avança, ergue-se a promessa, frágil esperança. Circuitos sonham, frios, mas tão profundos, tecendo destinos, moldando os mundos.
Democracia, flor de voz e escolha, dança ao vento que a tecnologia acolha. Mas quem guia o código, quem guarda a razão, quando a máquina sussurra ao coração?
Se o amor é humano, feito de imperfeição, pode a IA aprender a compaixão? Ou será que, no cálculo exato e preciso, perdemos o riso, o toque, o improviso?
Que os próximos cinquenta anos sejam luz, onde a ética, como estrela, nos conduz. Que a inteligência não roube, mas inspire, um mundo onde a liberdade nunca expire.”
Circuitos tecem destino? Perdemos “o riso, o toque, o improviso”?
Apesar do pobre versejar, segura de si, a IA não se esconde. O ChatGPT admite que em 50 anos “a tecnologia concentre o poder: Estados e megacorporações controlam dados, comunicação e decisões políticas” e a “opinião pública é gerida por sistemas de algoritmos de propaganda”.
Verdade que este é o cenário mais desfavorável que o ChatGPT admite, pois a “tendência provável” é que “as democracias formais continuem a existir, mas com forte influência tecnológica e económica”. Note-se o “forte”.
Se houvesse dúvidas sobre a ameaça que já por cá anda, estas confissões serviriam de sobreaviso.
Há dias, um apoiante de Noronha Lopes à presidência do Benfica contava a um defensor de Rui Costa que tinha estado certo da vitória, por só lhe terem chegado boas notícias, e muitas, sobre o seu apoiado. Riu-se o interlocutor: a ele só chegaram novas sobre o favoritismo de Rui Costa.
Já passaram anos suficientes para se saber que os algoritmos não mostram a verdade, exibem o que sabem que gostamos de ler. É experimentar perguntar ao Google se as facas de cerâmica são boas e ver como nos dias seguintes se multiplicam anúncios e propostas de desconto sobre estes utensílios.
Todas as novas tecnologias assustam. No Paleolítico, quando os nossos antepassados começaram a usar o fogo (a Wikipedia assegura que foi há 1,7 milhões de anos, mas não consegui confirmar nas velhas enciclopédias de papel e muitos volumes) que medo devem ter sentido daquelas chamas. A fissão nuclear, que aterrorizou o mundo em Hiroshima e Nagasaki, também é hoje essencial na medicina e na engenharia. Sabe-se: o que o conhecimento traz de novo pode ter bom ou mau uso.
O perigo acrescido da IA é que nos manipula, seleciona os dados e condiciona o pensamento. Nenhum dos anteriores avanços tecnológicos ambicionou ultrapassar a Humanidade. É este o perigo novo.
“E o mais preocupante é que, à medida que estes modelos se tornam mais fluentes, mais acessíveis e mais integrados nos nossos hábitos quotidianos, torna-se cada vez mais improvável desconfiar”, alerta Adolfo Mesquita Nunes, no seu Algoritmocracia.
E quanto mais se usam, mais dados obtêm, alimentando-se vorazmente. Como a mitológica Hidra, por cada cabeça cortada, crescem duas.
Pior do que estar mal informado é ser enganado. Acreditar na verdade única quase sempre leva à maior das mentiras.
“A mentira já não gera vergonha: gera cliques, partilhas, convites para programas. O que antes destruía reputações, agora rende dividendos políticos”, escreveu Mesquita Nunes. Como diz, a informação sempre teve viés. A diferença – grande – é que sabíamos de onde vinha o enviesamento e sabíamos onde procurar o contraponto. Sabíamos quem responsabilizar e podíamos fazê-lo. Agora desconhecemos o que está por detrás do ecrã juntando letras e criando ilusões.
Daniel Innerarity, em O Novo Espaço Público, já em 2010, dizia que “sem a adequada representação, isto é, sem o trabalho de mediação institucional [de jornalistas, entre outros] que concretiza e integra o diverso num espaço público, a sociedade encontra grandes dificuldades para se ver, para decifrar e tornar operativa a multiplicidade”.
O problema que os algoritmos trouxeram é que, “como em tantas coisas, também à política se aplica o aviso de que a profusão de dados não substitui a necessidade de formar uma ideia geral e de se organizar coerentemente”, reforça o mesmo autor. E o algoritmo dá-nos sempre mais do mesmo.
Daqui nascem bolhas, discute-se e lê-se sobre o que se concorda, estreita-se o conhecimento, conversa-se em pequenas comunidades que se autoalimentam. Como o apoiante de Noronha Lopes…
Mesquita Nunes propõe a regulação dos algoritmos. O problema da regulação é que, por norma, quando é aceite, já minou o terreno. Vejam-se os tratados para o desarmamento nuclear. Quando conseguiram fixar uma meta, já havia ogivas mais do que suficientes para destruir toda a vida humana.
Karen Hao, uma das pioneiras da IA e agora feroz adversária das grandes tecnológicas, em Empire of AI, veio alertar para que “a forma de dissolver o império [das grandes tecnológicas] exige uma redistribuição dos seus poderes”, através da criação de uma rede de investigadores independentes das corporações.
Agora, “qualquer gigante tecnológico está na corrida para deixar os adversários fora de prova, em prol de um novo desenvolvimento da IA”. Karen Hao quer dividir, para reinar.
Yuval Noah Harari, sem deixar de parte as questões políticas e cívicas, alerta em Nexus que “IA e automação serão um desafio ainda maior para os países em desenvolvimento”. Sem capacidade para entrarem na corrida, vão ver os produtos que tradicionalmente fabricavam passarem a ser produzidos por autómatos nos países em que são consumidos. A mão de obra barata daqueles países será mais cara do que os robots. “O que lhes acontecerá quando for mais barato produzir têxteis na Europa?”, interroga.
Mesquita Nunes não se fica pela necessidade de regular, como a Europa tem tibiamente tentado. Ele aborda a questão da educação e do ensino das novas gerações: “A primeira condição é simples: reconhecer que existe. Não como um detalhe técnico, não como uma curiosidade de especialistas, mas como um problema central para as democracias liberais.”
Voltemos às previsões do Copilot: daqui por 50 anos, “a IA não será apenas uma ferramenta tecnológica; será um fator estruturante da política global. Sem governança robusta e cooperação internacional, os riscos de erosão democrática são elevados. Por outro lado, se bem regulada, a IA pode ser um catalisador para sistemas mais transparentes, inclusivos e resilientes”. Fica o alerta. Alguém acredita que esta seja uma bandeira dos que influenciam a sociedade?
Harari, que não dá tréguas à IA, nas suas 21 Lições Para o Século XXI, defende a teoria dos quatro C, com origem em alguns pedagogos: pensamento crítico, comunicação, colaboração e criatividade. “As escolas devem dar menos atenção às aptidões técnicas e colocar a ênfase nas aptidões de vida polivalente. Acima de tudo estará a capacidade de lidar com a mudança.”
Eis-nos chegados ao que dificilmente se fará: perceber que, mais do que ensinar que um ácido e uma base dão um sal e água, ou mesmo quem era o pai de D. Sancho I, o núcleo do conhecimento terá de caminhar para o ensino das novas tecnologias, dos seus proveitos e dos seus perigos. A questão não é proibir telemóveis, é ensinar a usá-los, é explicar truques e técnicas que nos defendam das artimanhas. É fazer destas matérias verdadeiras e exigentes áreas de ensino.
Há coisas simples de explicar: numa fotografia gerada pela IA é usual que as sombras não batam certo, assim como a iluminação dos objetos. Ensinar a ser crítico, com a importância e o empenho com que se ensina a ler.
Ou corremos o risco de termos académicos a gritar que vem aí o lobo, quando já está no meio do rebanho e só não queremos vê-lo.
Chegamos sempre tarde.
Assassinos das palavras
O dicionário também foi assassinado pela organização criminosa do mundo. As palavras já não dizem o que dizem ou não sabemos o que dizem.
Eduardo Galeano
Cartografia do genocídio: As fronteiras da subjugação perpétua em Gaza
Mesmo aqueles que não estão totalmente familiarizados com a história profunda e dolorosa de Gaza devem perceber que manter a Linha Amarela de Gaza nada mais é do que uma ilusão perigosa e sangrenta.
O chamado cessar-fogo em Gaza não foi uma cessação genuína das hostilidades, mas sim uma mudança estratégica e cínica no genocídio israelense e na campanha contínua de destruição.
A partir de 10 de outubro, primeiro dia do cessar-fogo anunciado, Israel mudou de tática: passou de bombardeios aéreos indiscriminados para a demolição calculada e planejada de casas e infraestrutura vital. Imagens de satélite, corroboradas por relatos da mídia e do terreno quase que a cada hora, confirmaram essa mudança metódica.
Enquanto as forças de combate direto aparentemente se retiravam para a região adjacente ao "envoltório de Gaza", uma nova vanguarda de soldados israelenses avançou para a área a leste da chamada Linha Amarela, com o objetivo de desmantelar sistematicamente qualquer vestígio de vida, raízes e civilização que ainda restasse após o genocídio israelense. Entre 10 de outubro e 2 de novembro, Israel demoliu 1.500 edifícios, utilizando suas unidades especializadas de engenharia militar.
O acordo de cessar-fogo dividiu Gaza em duas metades: uma a oeste da Linha Amarela, onde os sobreviventes do genocídio israelense foram confinados, e uma maior, a leste da linha, onde o exército israelense manteve uma presença militar ativa e continuou a operar impunemente.
Se Israel realmente tivesse a intenção de evacuar a área após a segunda fase do cessar-fogo, não estaria empenhado na destruição sistemática e estrutural dessa região já devastada. Claramente, os motivos de Israel são muito mais insidiosos, centrados em tornar a região perpetuamente inabitável.
Além de destruir infraestruturas, Israel também realiza uma campanha contínua de ataques aéreos e navais, visando implacavelmente Rafah e Khan Yunis, no sul. Posteriormente, e com maior intensidade, Israel também começou a realizar ataques em áreas que, em teoria, deveriam estar sob o controle dos habitantes de Gaza.
Segundo o Ministério da Saúde palestino em Gaza, 260 palestinos foram mortos e 632 ficaram feridos desde o início do chamado cessar-fogo.
Na prática, esse cessar-fogo equivale a uma trégua unilateral, na qual Israel pode conduzir uma guerra implacável e de baixa intensidade contra Gaza, enquanto os palestinos são sistematicamente privados do direito de responder ou se defender. Gaza fica, portanto, condenada a reviver o mesmo ciclo trágico de violência histórica: uma região indefesa e empobrecida, presa sob o jugo dos cálculos militares de Israel, que operam consistentemente à margem do direito internacional.
Antes da criação do Estado de Israel sobre as ruínas da Palestina histórica em 1948, a demarcação das fronteiras de Gaza não era motivada por cálculos militares. A região de Gaza, um dos berços das civilizações mais antigas do mundo, sempre esteve perfeitamente integrada a um espaço geográfico e socioeconômico mais amplo.
Antes de os britânicos a denominarem Distrito de Gaza (1920-1948), os otomanos a consideravam um subdistrito (Kaza) dentro do Mutasarrifado de Jerusalém – o Distrito Independente de Jerusalém.
Mas nem mesmo a designação britânica de Gaza a isolou do resto da geografia palestina, já que as fronteiras do novo distrito alcançavam Al-Majdal (atual Ashkelon) ao norte, Bir al-Saba' (Beersheba) ao leste e a linha de Rafah na fronteira egípcia.
Após os Acordos de Armistício de 1949 , que codificaram as linhas pós-Nakba, o tormento coletivo de Gaza, ilustrado pela redução de suas fronteiras, começou de fato. O extenso Distrito de Gaza foi brutalmente reduzido à Faixa de Gaza, meros 1,3% da área total da Palestina histórica. Sua população, devido à Nakba, cresceu exponencialmente, com mais de 200.000 refugiados desesperados que, juntamente com várias gerações de seus descendentes, estão presos e confinados nesta pequena faixa de terra há mais de 77 anos.
Quando Israel ocupou Gaza permanentemente em junho de 1967, as linhas que a separavam do restante do território palestino e árabe tornaram-se parte integrante e permanente da própria Gaza. Logo após a ocupação da Faixa, Israel começou a restringir ainda mais a circulação dos palestinos, dividindo Gaza em várias regiões. O tamanho e a localização dessas linhas internas foram amplamente determinados por dois motivos principais: fragmentar a sociedade palestina para garantir sua subjugação e criar "zonas tampão" militares ao redor dos acampamentos militares israelenses e assentamentos ilegais.
Entre 1967 e a chamada "retirada" de Israel da Faixa de Gaza, Israel construiu 21 assentamentos ilegais e inúmeros corredores militares e postos de controle, dividindo efetivamente a Faixa ao meio e confiscando quase 40% de seu território.
Após a redistribuição de tropas, Israel manteve o controle absoluto e unilateral sobre as fronteiras de Gaza, o acesso ao mar, o espaço aéreo e até mesmo o registro populacional. Além disso, Israel criou outra fronteira interna dentro de Gaza, uma " zona tampão" fortemente fortificada que se estende pelas fronteiras norte e leste. Essa nova área testemunhou o assassinato a sangue frio de centenas de manifestantes desarmados e o ferimento de milhares que ousaram se aproximar do que muitas vezes era chamado de "zona da morte".
Até mesmo o mar de Gaza foi efetivamente proibido. Os pescadores eram confinados de forma desumana a espaços minúsculos, às vezes com menos de três milhas náuticas, enquanto simultaneamente estavam cercados pela marinha israelense, que rotineiramente atirava em pescadores, afundava barcos e detinha tripulações à vontade.
A nova Linha Amarela de Gaza é apenas a mais recente e mais flagrante demarcação militar em uma longa e cruel história de linhas destinadas a tornar a vida dos palestinos impossível. A linha atual, no entanto, é pior do que qualquer outra anterior, pois sufoca completamente a população deslocada em uma área totalmente destruída, sem hospitais em funcionamento e com apenas um fluxo mínimo de ajuda humanitária.
Para os palestinos, que lutam contra o confinamento e a fragmentação há gerações, esse novo acordo representa o culminar intolerável e inevitável de seu prolongado desapossamento multigeneracional.
Se Israel acredita que pode impor a nova demarcação de Gaza como um novo status quo, os próximos meses provarão que essa convicção está terrivelmente errada. Tel Aviv simplesmente recriou uma versão muito pior e inerentemente instável da realidade violenta que existia antes de 7 de outubro e do genocídio. Mesmo aqueles que não estão totalmente familiarizados com a história profunda e dolorosa de Gaza devem perceber que manter a Linha Amarela de Gaza nada mais é do que uma ilusão perigosa e sangrenta.
O chamado cessar-fogo em Gaza não foi uma cessação genuína das hostilidades, mas sim uma mudança estratégica e cínica no genocídio israelense e na campanha contínua de destruição.
A partir de 10 de outubro, primeiro dia do cessar-fogo anunciado, Israel mudou de tática: passou de bombardeios aéreos indiscriminados para a demolição calculada e planejada de casas e infraestrutura vital. Imagens de satélite, corroboradas por relatos da mídia e do terreno quase que a cada hora, confirmaram essa mudança metódica.
Enquanto as forças de combate direto aparentemente se retiravam para a região adjacente ao "envoltório de Gaza", uma nova vanguarda de soldados israelenses avançou para a área a leste da chamada Linha Amarela, com o objetivo de desmantelar sistematicamente qualquer vestígio de vida, raízes e civilização que ainda restasse após o genocídio israelense. Entre 10 de outubro e 2 de novembro, Israel demoliu 1.500 edifícios, utilizando suas unidades especializadas de engenharia militar.
O acordo de cessar-fogo dividiu Gaza em duas metades: uma a oeste da Linha Amarela, onde os sobreviventes do genocídio israelense foram confinados, e uma maior, a leste da linha, onde o exército israelense manteve uma presença militar ativa e continuou a operar impunemente.
Se Israel realmente tivesse a intenção de evacuar a área após a segunda fase do cessar-fogo, não estaria empenhado na destruição sistemática e estrutural dessa região já devastada. Claramente, os motivos de Israel são muito mais insidiosos, centrados em tornar a região perpetuamente inabitável.
Além de destruir infraestruturas, Israel também realiza uma campanha contínua de ataques aéreos e navais, visando implacavelmente Rafah e Khan Yunis, no sul. Posteriormente, e com maior intensidade, Israel também começou a realizar ataques em áreas que, em teoria, deveriam estar sob o controle dos habitantes de Gaza.
Segundo o Ministério da Saúde palestino em Gaza, 260 palestinos foram mortos e 632 ficaram feridos desde o início do chamado cessar-fogo.
Na prática, esse cessar-fogo equivale a uma trégua unilateral, na qual Israel pode conduzir uma guerra implacável e de baixa intensidade contra Gaza, enquanto os palestinos são sistematicamente privados do direito de responder ou se defender. Gaza fica, portanto, condenada a reviver o mesmo ciclo trágico de violência histórica: uma região indefesa e empobrecida, presa sob o jugo dos cálculos militares de Israel, que operam consistentemente à margem do direito internacional.
Antes da criação do Estado de Israel sobre as ruínas da Palestina histórica em 1948, a demarcação das fronteiras de Gaza não era motivada por cálculos militares. A região de Gaza, um dos berços das civilizações mais antigas do mundo, sempre esteve perfeitamente integrada a um espaço geográfico e socioeconômico mais amplo.
Antes de os britânicos a denominarem Distrito de Gaza (1920-1948), os otomanos a consideravam um subdistrito (Kaza) dentro do Mutasarrifado de Jerusalém – o Distrito Independente de Jerusalém.
Mas nem mesmo a designação britânica de Gaza a isolou do resto da geografia palestina, já que as fronteiras do novo distrito alcançavam Al-Majdal (atual Ashkelon) ao norte, Bir al-Saba' (Beersheba) ao leste e a linha de Rafah na fronteira egípcia.
Após os Acordos de Armistício de 1949 , que codificaram as linhas pós-Nakba, o tormento coletivo de Gaza, ilustrado pela redução de suas fronteiras, começou de fato. O extenso Distrito de Gaza foi brutalmente reduzido à Faixa de Gaza, meros 1,3% da área total da Palestina histórica. Sua população, devido à Nakba, cresceu exponencialmente, com mais de 200.000 refugiados desesperados que, juntamente com várias gerações de seus descendentes, estão presos e confinados nesta pequena faixa de terra há mais de 77 anos.
Quando Israel ocupou Gaza permanentemente em junho de 1967, as linhas que a separavam do restante do território palestino e árabe tornaram-se parte integrante e permanente da própria Gaza. Logo após a ocupação da Faixa, Israel começou a restringir ainda mais a circulação dos palestinos, dividindo Gaza em várias regiões. O tamanho e a localização dessas linhas internas foram amplamente determinados por dois motivos principais: fragmentar a sociedade palestina para garantir sua subjugação e criar "zonas tampão" militares ao redor dos acampamentos militares israelenses e assentamentos ilegais.
Entre 1967 e a chamada "retirada" de Israel da Faixa de Gaza, Israel construiu 21 assentamentos ilegais e inúmeros corredores militares e postos de controle, dividindo efetivamente a Faixa ao meio e confiscando quase 40% de seu território.
Após a redistribuição de tropas, Israel manteve o controle absoluto e unilateral sobre as fronteiras de Gaza, o acesso ao mar, o espaço aéreo e até mesmo o registro populacional. Além disso, Israel criou outra fronteira interna dentro de Gaza, uma " zona tampão" fortemente fortificada que se estende pelas fronteiras norte e leste. Essa nova área testemunhou o assassinato a sangue frio de centenas de manifestantes desarmados e o ferimento de milhares que ousaram se aproximar do que muitas vezes era chamado de "zona da morte".
Até mesmo o mar de Gaza foi efetivamente proibido. Os pescadores eram confinados de forma desumana a espaços minúsculos, às vezes com menos de três milhas náuticas, enquanto simultaneamente estavam cercados pela marinha israelense, que rotineiramente atirava em pescadores, afundava barcos e detinha tripulações à vontade.
A nova Linha Amarela de Gaza é apenas a mais recente e mais flagrante demarcação militar em uma longa e cruel história de linhas destinadas a tornar a vida dos palestinos impossível. A linha atual, no entanto, é pior do que qualquer outra anterior, pois sufoca completamente a população deslocada em uma área totalmente destruída, sem hospitais em funcionamento e com apenas um fluxo mínimo de ajuda humanitária.
Para os palestinos, que lutam contra o confinamento e a fragmentação há gerações, esse novo acordo representa o culminar intolerável e inevitável de seu prolongado desapossamento multigeneracional.
Se Israel acredita que pode impor a nova demarcação de Gaza como um novo status quo, os próximos meses provarão que essa convicção está terrivelmente errada. Tel Aviv simplesmente recriou uma versão muito pior e inerentemente instável da realidade violenta que existia antes de 7 de outubro e do genocídio. Mesmo aqueles que não estão totalmente familiarizados com a história profunda e dolorosa de Gaza devem perceber que manter a Linha Amarela de Gaza nada mais é do que uma ilusão perigosa e sangrenta.
A luta contra o sistema que escolhe quem deve ou não deve morrer é universal
Nos últimos tempos, tenho recebido múltiplas mensagens e lido pelas redes sociais inúmeras críticas de gente que nada faz, mas adora apontar o dedo. Acusam de “hipocrisia” quem se indigna com o genocídio na Palestina e, num gesto de falsa moralidade, perguntam: “E a Nigéria? E o Sudão?” São sempre os mesmos, os que nunca se importaram verdadeiramente com as populações africanas. O objetivo deles não é defender os povos esquecidos. É deslegitimar as organizações que denunciam crimes de guerra e desmontar qualquer movimento solidário que confronte Israel ou os poderes instalados.
É enganador e intelectualmente desonesto sugerir que a ONU e a Anistia Internacional estão em “silêncio” sobre a Nigéria ou o Sudão. Essa perceção nasce da dependência acrítica das redes sociais. Embora a ONU demonstre muitas vezes uma fragilidade política, as suas agências, como o Programa Alimentar Mundial (PAM), denunciaram a falta de fundos que as obrigou a cortar ajuda a milhões de pessoas, e os seus relatórios não cessam de alertar para todas estas crises. A hipocrisia não está em quem luta pela Palestina; está em quem instrumentaliza o sofrimento humano para fins eleitorais ou ideológicos. Está, sobretudo, em quem fala de África apenas quando quer atacar quem defende a Palestina.
Comparar o ativismo em torno da Palestina à crise nigeriana ou sudanesa é, além de demagógico, moralmente reprovável. O envolvimento global com a Palestina tem raízes históricas profundas: décadas de ocupação, um conflito com impacto direto nas relações internacionais, e a existência de uma enorme e politicamente ativa diáspora palestiniana que se organiza e com o apoio da opinião pública expõe a causa e mantém o debate ativo lutando assim contra o esquecimento. Usar esse envolvimento para diminuir outras causas é apenas mais uma forma de manipulação.
A hipocrisia mais gritante reside na duplicidade moral que revela que o compromisso com os direitos humanos não é universal, dependendo da geografia, da conveniência política e da cor da pele dos afetados. A rapidez do apoio internacional à Ucrânia, por exemplo, contrasta brutalmente com a indiferença perante conflitos africanos ou asiáticos e escandalosamente com o genocídio palestiniano.
E há uma hipocrisia que nos toca a todos: o Mediterrâneo, hoje o maior cemitério marítimo do mundo, onde milhares de pessoas se afogam, todos os anos, fugindo da guerra, da seca extrema, da fome e da miséria.
A mesma lógica que permite a brutalidade contínua sobre o povo palestiniano e que ignora as crises africanas é a que transforma o Mediterrâneo num palco de disputa, onde vidas são ativamente tratadas como descartáveis para proteger a “Fortaleza Europeia”.
O que é preciso exigir, portanto, é coerência: defender todas as vidas, sem distinção, e exigir dos países ricos e grandes potências que cumpram as suas obrigações, coibindo-se de fabricar armas que abastecem conflitos os e que deixem de instrumentalizar a ajuda humanitária em função dos seus interesses geopolíticos
Não pode haver vidas descartáveis.
Para que não restem dúvidas, quando se fala da Palestina fala-se também de todas as lutas contra a opressão.
Fala-se do Sudão, onde milhões fogem de uma guerra pouco noticiada, apesar de o país estar no centro de disputas entre grandes potências. Fala-se da República Democrática do Congo, onde comunidades são destruídas para alimentar a indústria tecnológica com minerais extraídos à custa da violência e exploração infantil. Fala-se do Iémen, destruído por anos de bombardeamentos sauditas sustentados pelo apoio militar e político dos USA e aliados ocidentais. Fala-se da Síria, um país dilacerado por uma guerra civil transformada num palco de guerra por procuração, onde potências regionais e internacionais testaram as suas armas e condenaram uma geração ao deslocamento e à ruína, perante a passividade do mundo.Fala-se de Mianmar e do povo Rohingya, vítima de limpeza étnica e empurrado para o esquecimento por um silêncio global que protege os responsáveis. Fala-se também do Haiti, onde o povo resiste a décadas de ocupações, ingerências internacionais e governos moldados segundo interesses externos. Fala-se do Bangladesh, onde trabalhadores explorados pagam com a vida para sustentar a fast fashion que enche o Ocidente de roupa barata..Fala-se destes e de todos.
O padrão é o mesmo: vidas descartáveis, territórios transformados em zonas de conflito permanente e um sistema internacional que escolhe quem merece solidariedade e quem pode ser abandonado. A mesma lógica que permite a brutalidade contínua sobre o povo palestiniano é a que mantém estas crises fora do debate público. Fala-se destes e de todos os que são oprimidos.
Fala-se da crise climática, que obriga populações inteiras a fugirem de territórios destruídos, inaugurando uma era de refugiados climáticos que o mundo ainda finge não ver. Fala-se das queimadas que expulsam comunidades indígenas na Amazónia e de todos os que fogem da seca extrema no Corno de África e das inundações no Paquistão.
Estas lutas não são paralelas nem concorrentes: são a mesma batalha contra uma estrutura global de interesses, indústria de armas e neocolonialismo económico que determina quem vive e quem morre.
E há muitas outras situações e geografias preocupantes que permanecem fora do debate público. A lista de vidas em risco é longa, mas o compromisso com a justiça não pode ser seletivo.
A luta pelos direitos humanos é universal. E só seremos livres quando todos, todos, sem exceção formos livres.
É enganador e intelectualmente desonesto sugerir que a ONU e a Anistia Internacional estão em “silêncio” sobre a Nigéria ou o Sudão. Essa perceção nasce da dependência acrítica das redes sociais. Embora a ONU demonstre muitas vezes uma fragilidade política, as suas agências, como o Programa Alimentar Mundial (PAM), denunciaram a falta de fundos que as obrigou a cortar ajuda a milhões de pessoas, e os seus relatórios não cessam de alertar para todas estas crises. A hipocrisia não está em quem luta pela Palestina; está em quem instrumentaliza o sofrimento humano para fins eleitorais ou ideológicos. Está, sobretudo, em quem fala de África apenas quando quer atacar quem defende a Palestina.
Comparar o ativismo em torno da Palestina à crise nigeriana ou sudanesa é, além de demagógico, moralmente reprovável. O envolvimento global com a Palestina tem raízes históricas profundas: décadas de ocupação, um conflito com impacto direto nas relações internacionais, e a existência de uma enorme e politicamente ativa diáspora palestiniana que se organiza e com o apoio da opinião pública expõe a causa e mantém o debate ativo lutando assim contra o esquecimento. Usar esse envolvimento para diminuir outras causas é apenas mais uma forma de manipulação.
A hipocrisia mais gritante reside na duplicidade moral que revela que o compromisso com os direitos humanos não é universal, dependendo da geografia, da conveniência política e da cor da pele dos afetados. A rapidez do apoio internacional à Ucrânia, por exemplo, contrasta brutalmente com a indiferença perante conflitos africanos ou asiáticos e escandalosamente com o genocídio palestiniano.
E há uma hipocrisia que nos toca a todos: o Mediterrâneo, hoje o maior cemitério marítimo do mundo, onde milhares de pessoas se afogam, todos os anos, fugindo da guerra, da seca extrema, da fome e da miséria.
A mesma lógica que permite a brutalidade contínua sobre o povo palestiniano e que ignora as crises africanas é a que transforma o Mediterrâneo num palco de disputa, onde vidas são ativamente tratadas como descartáveis para proteger a “Fortaleza Europeia”.
O que é preciso exigir, portanto, é coerência: defender todas as vidas, sem distinção, e exigir dos países ricos e grandes potências que cumpram as suas obrigações, coibindo-se de fabricar armas que abastecem conflitos os e que deixem de instrumentalizar a ajuda humanitária em função dos seus interesses geopolíticos
Não pode haver vidas descartáveis.
Para que não restem dúvidas, quando se fala da Palestina fala-se também de todas as lutas contra a opressão.
Fala-se do Sudão, onde milhões fogem de uma guerra pouco noticiada, apesar de o país estar no centro de disputas entre grandes potências. Fala-se da República Democrática do Congo, onde comunidades são destruídas para alimentar a indústria tecnológica com minerais extraídos à custa da violência e exploração infantil. Fala-se do Iémen, destruído por anos de bombardeamentos sauditas sustentados pelo apoio militar e político dos USA e aliados ocidentais. Fala-se da Síria, um país dilacerado por uma guerra civil transformada num palco de guerra por procuração, onde potências regionais e internacionais testaram as suas armas e condenaram uma geração ao deslocamento e à ruína, perante a passividade do mundo.Fala-se de Mianmar e do povo Rohingya, vítima de limpeza étnica e empurrado para o esquecimento por um silêncio global que protege os responsáveis. Fala-se também do Haiti, onde o povo resiste a décadas de ocupações, ingerências internacionais e governos moldados segundo interesses externos. Fala-se do Bangladesh, onde trabalhadores explorados pagam com a vida para sustentar a fast fashion que enche o Ocidente de roupa barata..Fala-se destes e de todos.
O padrão é o mesmo: vidas descartáveis, territórios transformados em zonas de conflito permanente e um sistema internacional que escolhe quem merece solidariedade e quem pode ser abandonado. A mesma lógica que permite a brutalidade contínua sobre o povo palestiniano é a que mantém estas crises fora do debate público. Fala-se destes e de todos os que são oprimidos.
Fala-se da crise climática, que obriga populações inteiras a fugirem de territórios destruídos, inaugurando uma era de refugiados climáticos que o mundo ainda finge não ver. Fala-se das queimadas que expulsam comunidades indígenas na Amazónia e de todos os que fogem da seca extrema no Corno de África e das inundações no Paquistão.
Estas lutas não são paralelas nem concorrentes: são a mesma batalha contra uma estrutura global de interesses, indústria de armas e neocolonialismo económico que determina quem vive e quem morre.
E há muitas outras situações e geografias preocupantes que permanecem fora do debate público. A lista de vidas em risco é longa, mas o compromisso com a justiça não pode ser seletivo.
A luta pelos direitos humanos é universal. E só seremos livres quando todos, todos, sem exceção formos livres.
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