É enganador e intelectualmente desonesto sugerir que a ONU e a Anistia Internacional estão em “silêncio” sobre a Nigéria ou o Sudão. Essa perceção nasce da dependência acrítica das redes sociais. Embora a ONU demonstre muitas vezes uma fragilidade política, as suas agências, como o Programa Alimentar Mundial (PAM), denunciaram a falta de fundos que as obrigou a cortar ajuda a milhões de pessoas, e os seus relatórios não cessam de alertar para todas estas crises. A hipocrisia não está em quem luta pela Palestina; está em quem instrumentaliza o sofrimento humano para fins eleitorais ou ideológicos. Está, sobretudo, em quem fala de África apenas quando quer atacar quem defende a Palestina.
Comparar o ativismo em torno da Palestina à crise nigeriana ou sudanesa é, além de demagógico, moralmente reprovável. O envolvimento global com a Palestina tem raízes históricas profundas: décadas de ocupação, um conflito com impacto direto nas relações internacionais, e a existência de uma enorme e politicamente ativa diáspora palestiniana que se organiza e com o apoio da opinião pública expõe a causa e mantém o debate ativo lutando assim contra o esquecimento. Usar esse envolvimento para diminuir outras causas é apenas mais uma forma de manipulação.
A hipocrisia mais gritante reside na duplicidade moral que revela que o compromisso com os direitos humanos não é universal, dependendo da geografia, da conveniência política e da cor da pele dos afetados. A rapidez do apoio internacional à Ucrânia, por exemplo, contrasta brutalmente com a indiferença perante conflitos africanos ou asiáticos e escandalosamente com o genocídio palestiniano.
E há uma hipocrisia que nos toca a todos: o Mediterrâneo, hoje o maior cemitério marítimo do mundo, onde milhares de pessoas se afogam, todos os anos, fugindo da guerra, da seca extrema, da fome e da miséria.
A mesma lógica que permite a brutalidade contínua sobre o povo palestiniano e que ignora as crises africanas é a que transforma o Mediterrâneo num palco de disputa, onde vidas são ativamente tratadas como descartáveis para proteger a “Fortaleza Europeia”.
O que é preciso exigir, portanto, é coerência: defender todas as vidas, sem distinção, e exigir dos países ricos e grandes potências que cumpram as suas obrigações, coibindo-se de fabricar armas que abastecem conflitos os e que deixem de instrumentalizar a ajuda humanitária em função dos seus interesses geopolíticos
Não pode haver vidas descartáveis.
Para que não restem dúvidas, quando se fala da Palestina fala-se também de todas as lutas contra a opressão.
Fala-se do Sudão, onde milhões fogem de uma guerra pouco noticiada, apesar de o país estar no centro de disputas entre grandes potências. Fala-se da República Democrática do Congo, onde comunidades são destruídas para alimentar a indústria tecnológica com minerais extraídos à custa da violência e exploração infantil. Fala-se do Iémen, destruído por anos de bombardeamentos sauditas sustentados pelo apoio militar e político dos USA e aliados ocidentais. Fala-se da Síria, um país dilacerado por uma guerra civil transformada num palco de guerra por procuração, onde potências regionais e internacionais testaram as suas armas e condenaram uma geração ao deslocamento e à ruína, perante a passividade do mundo.Fala-se de Mianmar e do povo Rohingya, vítima de limpeza étnica e empurrado para o esquecimento por um silêncio global que protege os responsáveis. Fala-se também do Haiti, onde o povo resiste a décadas de ocupações, ingerências internacionais e governos moldados segundo interesses externos. Fala-se do Bangladesh, onde trabalhadores explorados pagam com a vida para sustentar a fast fashion que enche o Ocidente de roupa barata..Fala-se destes e de todos.
O padrão é o mesmo: vidas descartáveis, territórios transformados em zonas de conflito permanente e um sistema internacional que escolhe quem merece solidariedade e quem pode ser abandonado. A mesma lógica que permite a brutalidade contínua sobre o povo palestiniano é a que mantém estas crises fora do debate público. Fala-se destes e de todos os que são oprimidos.
Fala-se da crise climática, que obriga populações inteiras a fugirem de territórios destruídos, inaugurando uma era de refugiados climáticos que o mundo ainda finge não ver. Fala-se das queimadas que expulsam comunidades indígenas na Amazónia e de todos os que fogem da seca extrema no Corno de África e das inundações no Paquistão.
Estas lutas não são paralelas nem concorrentes: são a mesma batalha contra uma estrutura global de interesses, indústria de armas e neocolonialismo económico que determina quem vive e quem morre.
E há muitas outras situações e geografias preocupantes que permanecem fora do debate público. A lista de vidas em risco é longa, mas o compromisso com a justiça não pode ser seletivo.
A luta pelos direitos humanos é universal. E só seremos livres quando todos, todos, sem exceção formos livres.
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