quarta-feira, 15 de fevereiro de 2023
Yanomamis vivem inferno a céu aberto
Populismo não é fenômeno homogêneo. Mas um paradoxo interno a quase todos é o desprezo latente pelo povo.
Nos regimes de ultradireita, isso é aberto e não raro com consequências devastadoras para minorias. A tragédia dos yanomamis, revelada em toda a sua brutalidade, é o flagrante da desumanidade dos quatro anos de bolsopopulismo. Nesse período, centenas de crianças morreram de malária e desnutrição por criminosa falta de assistência, com cumplicidade de grupos financeiros (compradores de ouro ilegais, bancada legislativa garimpeira etc.). Agora fica patente que a ameaça pesava sobre milhares de indígenas.
Muitas décadas atrás, San Tiago Dantas, notável tribuno brasileiro, declarou que "o povo é melhor do que as elites". Deixava implícito que o desapreço era apenas de cima para baixo. Mas um líder populista, por derramamento afetivo, é capaz de "amar" abstratamente o povo e dele impostar-se como uma espécie de parente divino. Dessa demagogia brota sempre uma alusão hipócrita a valores de família e, por extensão, de pátria, que leva ao patriotismo qualificado pelo escritor britânico oitocentista Samuel Johnson como "último refúgio dos canalhas". Às vezes, é o primeiro. Na realidade, enquanto ideia de organização liberal das massas, povo é uma forma dinâmica: mais do que ser é tornar-se, processo autônomo, sem agente externo, sem demagogo populista.
O quadriênio da infâmia, que resume o bolsopopulismo, foi marcado pelo desígnio de extermínio de indígenas, negros, mulheres, gays. Apenas sobre a campanha física contra os yanomamis, haverá provavelmente uma discussão jurídica para determinar o dolo governamental. Mas é inequívoco o registro histórico da extinção deliberada dos povos originários.
Para o Inominável, a questão deveria ter sido resolvida no passado, a exemplo da cavalaria americana, que dizimou populações nativas. Como parlamentar, insistia no desmonte da reserva yanomami. Já presidente, autorizou garimpeiros a desmatarem, estuprarem, drogarem, transmitirem doenças e contaminarem os rios, extinguindo possibilidades de existência.
Desmobilizado o controle, choveu dinheiro para ONGs evangélicas. Uma delas, com o lema "a serviço do índio pela glória de Deus", recebeu quase R$ 1 bilhão, sem contrapartida. O lado real da narrativa sobre o ouro que faria emergir cidades é a desertificação da floresta e o envenenamento da vida pelo mercúrio: dolo de lesa-humanidade, um inferno. Isso é o que os tupis-guaranis sempre chamaram de "Abaçaí", um espírito mau, perseguidor. Já o povo yanomami, do qual se sabe que jamais esquece os matadores de seus mortos, está hoje a par do nome jurídico para o crime de que foram vítimas: genocídio, inequívoco.
Nos regimes de ultradireita, isso é aberto e não raro com consequências devastadoras para minorias. A tragédia dos yanomamis, revelada em toda a sua brutalidade, é o flagrante da desumanidade dos quatro anos de bolsopopulismo. Nesse período, centenas de crianças morreram de malária e desnutrição por criminosa falta de assistência, com cumplicidade de grupos financeiros (compradores de ouro ilegais, bancada legislativa garimpeira etc.). Agora fica patente que a ameaça pesava sobre milhares de indígenas.
Muitas décadas atrás, San Tiago Dantas, notável tribuno brasileiro, declarou que "o povo é melhor do que as elites". Deixava implícito que o desapreço era apenas de cima para baixo. Mas um líder populista, por derramamento afetivo, é capaz de "amar" abstratamente o povo e dele impostar-se como uma espécie de parente divino. Dessa demagogia brota sempre uma alusão hipócrita a valores de família e, por extensão, de pátria, que leva ao patriotismo qualificado pelo escritor britânico oitocentista Samuel Johnson como "último refúgio dos canalhas". Às vezes, é o primeiro. Na realidade, enquanto ideia de organização liberal das massas, povo é uma forma dinâmica: mais do que ser é tornar-se, processo autônomo, sem agente externo, sem demagogo populista.
O quadriênio da infâmia, que resume o bolsopopulismo, foi marcado pelo desígnio de extermínio de indígenas, negros, mulheres, gays. Apenas sobre a campanha física contra os yanomamis, haverá provavelmente uma discussão jurídica para determinar o dolo governamental. Mas é inequívoco o registro histórico da extinção deliberada dos povos originários.
Para o Inominável, a questão deveria ter sido resolvida no passado, a exemplo da cavalaria americana, que dizimou populações nativas. Como parlamentar, insistia no desmonte da reserva yanomami. Já presidente, autorizou garimpeiros a desmatarem, estuprarem, drogarem, transmitirem doenças e contaminarem os rios, extinguindo possibilidades de existência.
Desmobilizado o controle, choveu dinheiro para ONGs evangélicas. Uma delas, com o lema "a serviço do índio pela glória de Deus", recebeu quase R$ 1 bilhão, sem contrapartida. O lado real da narrativa sobre o ouro que faria emergir cidades é a desertificação da floresta e o envenenamento da vida pelo mercúrio: dolo de lesa-humanidade, um inferno. Isso é o que os tupis-guaranis sempre chamaram de "Abaçaí", um espírito mau, perseguidor. Já o povo yanomami, do qual se sabe que jamais esquece os matadores de seus mortos, está hoje a par do nome jurídico para o crime de que foram vítimas: genocídio, inequívoco.
Publicado pelo Exército, livro que diz que yanomamis não existem inspirou políticas que levaram a crise humanitária
Em meio à grave crise humanitária que atinge os indígenas yanomami, textos com teorias conspiratórias sobre esse povo voltaram a ser lidos em blogs e compartilhados nas redes sociais.
Em comum, eles reproduzem citações e argumentos de um livro publicado em 1995 pela editora da Biblioteca do Exército e escrito pelo falecido coronel Carlos Alberto Lima Menna Barreto.
O Exército publicou 3.000 exemplares do livro em 1995, mesmo ano em que morreu Menna Barreto.
Hoje, o livro circula em arquivos compartilhados gratuitamente pela internet e foi recomendado algumas vezes por Olavo de Carvalho (1947-2022), como mostram textos de seu site e seus programas de aula.
Além da influência de Carvalho, guru de parte da direita, dois especialistas entrevistados pela BBC News Brasil apontam que a relação entre o livro e a política conduzida pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) em seus quatro anos de governo (2019-2022) é maior.
"Com certeza esse livro ressoa ao longo do governo Bolsonaro. Inclusive, eu comecei a estudar esse livro a partir do discurso do Bolsonaro em 2019 na ONU (Organização das Nações Unidas). Quando eu escutei aquela fala, eu lembrei do livro, que eu tinha lido por curiosidade. A fala tinha total correspondência com o livro”, diz o historiador João Pedro Garcez, que teve A Farsa Ianomâmi como um de seus objetos de estudo no mestrado na Universidade Federal do Paraná (UFPR).
"Parece que o governo Bolsonaro fez um tipo de gestão de acordo com o livro porque, neste, os indígenas são colocados como uma massa de manobra de interesses estrangeiros. Então, eles são vistos como inimigos do Brasil. Dentro dessa racionalidade, faz sentido deixá-los na beira da morte, porque eles não fazem parte da ideia de Brasil que está presente no pensamento militar", acrescenta o pesquisador, referindo-se à crise humanitária entre o povo yanomami.
Não se sabe se Bolsonaro leu A Farsa Ianomâmi ou não, mas o que Garcez e outro entrevistado, o geógrafo francês François-Michel Le Tourneau, afirmam é que o livro simboliza as posições do ex-presidente e aliados acerca dos indígenas e da Amazônia.
No Telegram, Bolsonaro afirmou que as acusações de descaso de seu governo com os indígenas eram uma "farsa de esquerda" e defendeu que a saúde indígena foi uma das prioridades da sua gestão.
A conduta do antigo governo nessa área está passando agora por intenso escrutínio, depois que o site jornalístico Sumaúma revelou fotos e dados da sofrida situação da saúde de crianças, adultos e idosos yanomami.
No final de janeiro, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso pediu a abertura de uma investigação sobre "a possível participação de autoridades do governo Jair Bolsonaro na prática, em tese, dos crimes de genocídio, desobediência, quebra de segredo de justiça, e de delitos ambientais relacionados à vida, à saúde e à segurança de diversas comunidades indígenas".
Na decisão, Barroso menciona haver evidências de "ação ou omissão" do antigo governo que agravaram a situação dos yanomami. Um exemplo trazido pelo ministro do STF foi a publicação, no Diário Oficial, de data e local de uma operação sigilosa contra o garimpo ilegal em território yanomami, o que pode ter alertado os invasores.
Carlos Alberto Lima Menna Barreto se apresenta, logo no início de sua obra, como um “gaúcho natural de Porto Alegre, oriundo de tradicional família de militares”. Foi em 1968 que, segundo o próprio, ele “travou os primeiros contatos com a Amazônia, que a partir dessa data o seduziu”.
Em Roraima, Menna Barreto atuou como primeiro comandante do 2º Batalhão Especial de Fronteira e do Comando de Fronteira e, após ir para a reserva, foi secretário de Segurança do Estado.
Nas páginas finais de sua obra, o coronel propôs algumas ações. A primeira recomendação era a anulação da criação da reserva yanomami — homologada em 1992 —, por conta das “fraudes” que o militar disse ter apresentado no livro. Uma segunda proposta consistia em “regulamentar a exploração do ouro, do diamante e de outros minérios por pessoas físicas e empresas”.
Talvez essas bandeiras lembrem posições de Jair Bolsonaro.
Quando deputado federal, o então capitão da reserva pediu, em 1993, a anulação da demarcação da terra indígena yanomami; quando presidente, ele declarou em diversas ocasiões que não haveria mais demarcação de terras indígenas em seu governo.
Em fevereiro de 2022, o então presidente comemorou que na sua gestão no Planalto “não foi demarcada nenhuma terra indígena”.
Por longos anos, Bolsonaro também defendeu o garimpo em terras indígenas e, na presidência, agiu nesse sentido. Veio do Executivo, por exemplo, um projeto de lei de 2020 que tentou regulamentar a mineração nessas áreas protegidas — mas a proposta acabou não avançando.
Autor de livros e pesquisas sobre os yanomami e a Amazônia, o francês François-Michel Le Tourneau identifica três grupos de pressão sobre o governo Bolsonaro que buscaram limitar direitos do indígenas: os ruralistas, as igrejas evangélicas e os militares.
Para Tourneau, o general Augusto Heleno, então chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) e ex-comandante militar da Amazônia, era uma figura emblemática de uma geração de oficiais e generais que vê a Amazônia como um ponto vulnerável para a unidade nacional brasileira.
“O fato de ter deixado a Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) e os índios do Brasil completamente abandonados por quatro anos era realmente isso. Para eles, se fomentava dentro da Funai um movimento de desmembramento do Brasil e se defendia que esses territórios estavam cheios de riquezas que precisavam ser exploradas”, diz o geógrafo, diretor de pesquisas do Centre National de la Recherche Scientifique, na França.
“Os índios do Brasil não têm nenhum interesse em independência política. Há uma confusão, pois eles podem querer autonomia, mas autonomia não é independência”, explica o francês, que diz ter “aprendido a viver” com as suspeitas que desperta por ser um estrangeiro estudando a Amazônia.
Para Torneau, o livro A Farsa Ianomâmi é mais um exemplo dessa interpretação de um segmento dos militares sobre os indígenas da Amazônia.
“Por que o governo Bolsonaro recebeu bem esse tipo de teoria, ou até mesmo propagou esse tipo de teoria [do livro]? Porque o fundo ideológico e cultural deles está fundamentando sobre a ideia de que as identidades indígenas de certa forma são uma ameaça ao Brasil.”
Segundo o catálogo online do Exército, há hoje 56 exemplares do livro espalhados por bibliotecas da força pelo Brasil — 12 deles estão em colégios militares, que oferecem ensino fundamental e médio.
O historiador João Pedro Garcez lembra de estudos que já demonstraram que, em 1988, ano de promulgação da Constituição, e em 1992, ano de realização da conferência Eco-92 no Rio de Janeiro, aumentou a produção acadêmica militar sobre a Amazônia.
“Eu acredito que tanto esse crescimento quanto a publicação do livro A Farsa Ianomâmi têm a ver com uma reação dos militares à Constituição Federal, que defende a autodeterminação dos povos, e por consequência a demarcação das terras indígenas; e a própria Eco-92, que trouxe muito forte para o Brasil a discussão ambiental”, diz Garcez, doutorando em história na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
O historiador aponta que o autor de A Farsa Ianomâmi usou muitos artigos de opinião publicados em jornais para validar seus argumentos, ao mesmo tempo em que se valeu de sua experiência em Roraima. O livro é escrito em primeira pessoa.
“Ele reivindicava muito essa autoridade testemunhal. O livro tem uma característica autobiográfica”, explica Garcez.
Menna Barreto também traz no livro um documento datado de 1981 e atribuído ao Conselho Mundial de Igrejas Cristãs, que teria sede na Suíça. O texto, reproduzido inicialmente pelo jornal O Estado de S.Paulo, expõe planos de “infiltrar missionários e contratados, inclusive não religiosos, em todas as nações indígenas”. Mas a veracidade do documento é controversa.
Em 1987, foi criada uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) para apurar denúncias “formuladas pelo jornal O Estado de S.Paulo, referentes a uma conspiração internacional envolvendo restrições à soberania nacional sobre a região amazônica”, segundo documentos do Congresso.
Após investigação, o relator concluiu “que a instituição ‘Conselho Mundial de Igrejas Cristãs’, elemento-chave das denúncias, não teve sua existência confirmada […]. Ao contrário, todas as entidades consultadas negaram conhecer sua existência”.
Menna Barreto recorreu também a relatos de viajantes europeus de séculos passados para sustentar o argumento de que a identificação yanomami não era citada. Assim, o coronel defendeu um dos principais argumentos de seu livro: o de que os yanomami não existem e foram inventados por interesses alheios.
“Ele ignora toda a produção antropológica contemporânea a ele. Essa produção mostra que os yanomâmi são um supergrupo e que tem divisões dentro desse supergrupo”, afirma Garcez.
A antropóloga e indigenista Hanna Limulja explica que os indígenas que compõem o grande território yanomami podem até se referir com outras palavras a seus subgrupos, mas que a consideração deles como yanomami pelos especialistas não é nada arbitrária.
“Por que esse povo é considerando yanomami? Porque eles compartilham um território, práticas culturais, uma língua. O yanomami é uma língua isolada, é um tronco, e dentro disso você pode ter variações. Por exemplo, o latim é um tronco, e aí você tem variações como o português e o espanhol, que são próximos”, aponta Limulja.
“O fato de a gente catagorizar os yanomami ou não não quer dizer que a gente invente um povo. O povo está lá. A gente o define da maneira que a gente consegue, com nossos estudos, dentro das nossas categorias.”
François-Michel Le Tourneau explica que boa parte do conteúdo de A Farsa Ianomâmi é uma “cópia” de teorias conspiratórias abastecidas nos anos 1990 pelo americano Lyndon LaRouche.
“Para mim, o mais importante nesse livro não é só o autor, mas quem publicou. Ele foi publicado pela Biblioteca do Exército, e isso dá um peso para o livro”, aponta o geógrafo.
A reportagem enviou perguntas ao Exército brasileiro, que foram parcialmente respondidas. Em nota, o Exército informou que, apesar de exemplares de A Farsa Ianomâmi estarem em colégios militares, “a obra não consta da lista de livros paradidáticos constantes das Normas de Planejamento e Gestão Escolar (NPGE) do Sistema Colégio Militar do Brasil”.
Por isso, não está “autorizada nenhuma atividade pedagógica com o livro nos Colégios Militares”.
A BBC News Brasil também tentou entrevistar líderes yanomami mas, em meio à crise humanitária no território, não pôde ser atendida por falta de disponibilidade.
Também foi oferecida uma oportunidade de posicionamento à fotógrafa Claudia Andujar, por meio do contato com uma galeria de arte que a representa. Não houve retorno. Em 2010, porém, foi publicada uma entrevista em que a artista aborda o livro A Farsa Ianomâmi.
Segundo ela, o livro foi construído em um período em que ela participou dos esforços para a demarcação da terra yanomami.
“Olha, naquela época, fui muito perseguida pelos militares que estavam na presidência e nas diretorias da Funai. Apesar de tudo isso, e graças a bons contatos políticos em Brasília, conseguimos a demarcação das terras. Mas em Roraima continuei odiada. Esse cara que escreveu sobre mim era de lá. Saíram tantas notícias negativas contra nosso trabalho que você nem imagina. Saiu publicamente que eu era uma espiã americana, depois que era uma espiã belga, coisas simplesmente absurdas. Eu não tenho nada haver com a Bélgica”, disse Andujar, em entrevista a uma revista acadêmica.
Apesar de criticarem o conteúdo do livro e sua disseminação pelo Exército, os especialistas entrevistados pela BBC News Brasil opinam que não deveria haver algum tipo de restrição à circulação de A Farsa Ianomâmi.
“Até pensando no caso do meu estudo, eu acho que ele é uma obra sintomática de um pensamento militar acerca dessas das questões indígena e ambiental. Eu entendo que ele reproduz e talvez até dissemine algumas ideias que são bem problemáticas, mas não acredito que a censura ou a tentativa de tirar ele de circulação seja o meio mais efetivo de combater ele”, diz Garcez.
“E algo muito presente no livro e na circulação dele é a colocação de que há uma grande conspiração para deixar tudo aquilo escondido. Então, retirando-o de circulação, talvez acabe validando mais esse ponto.”
“Acho que, se você começar a andar do lado da censura, é um caminho sem volta. Acredito que é mais interessante se produzir um outro livro que demonstre os equívocos com argumentos mais sólidos”, sugere o pesquisador francês.
Em comum, eles reproduzem citações e argumentos de um livro publicado em 1995 pela editora da Biblioteca do Exército e escrito pelo falecido coronel Carlos Alberto Lima Menna Barreto.
Com acusações não comprovadas e um conjunto de documentos controversos, A Farsa Ianomâmi insinua, em linhas gerais, que um povo identificado como yanomami não existia antes que a fotógrafa Claudia Andujar e organizações internacionais com interesses na Amazônia o inventassem para, com isso, se beneficiarem da demarcação da terra indígena (leia abaixo informações que refutam esses argumentos do livro).
O Exército publicou 3.000 exemplares do livro em 1995, mesmo ano em que morreu Menna Barreto.
Hoje, o livro circula em arquivos compartilhados gratuitamente pela internet e foi recomendado algumas vezes por Olavo de Carvalho (1947-2022), como mostram textos de seu site e seus programas de aula.
Além da influência de Carvalho, guru de parte da direita, dois especialistas entrevistados pela BBC News Brasil apontam que a relação entre o livro e a política conduzida pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) em seus quatro anos de governo (2019-2022) é maior.
"Com certeza esse livro ressoa ao longo do governo Bolsonaro. Inclusive, eu comecei a estudar esse livro a partir do discurso do Bolsonaro em 2019 na ONU (Organização das Nações Unidas). Quando eu escutei aquela fala, eu lembrei do livro, que eu tinha lido por curiosidade. A fala tinha total correspondência com o livro”, diz o historiador João Pedro Garcez, que teve A Farsa Ianomâmi como um de seus objetos de estudo no mestrado na Universidade Federal do Paraná (UFPR).
"Parece que o governo Bolsonaro fez um tipo de gestão de acordo com o livro porque, neste, os indígenas são colocados como uma massa de manobra de interesses estrangeiros. Então, eles são vistos como inimigos do Brasil. Dentro dessa racionalidade, faz sentido deixá-los na beira da morte, porque eles não fazem parte da ideia de Brasil que está presente no pensamento militar", acrescenta o pesquisador, referindo-se à crise humanitária entre o povo yanomami.
Não se sabe se Bolsonaro leu A Farsa Ianomâmi ou não, mas o que Garcez e outro entrevistado, o geógrafo francês François-Michel Le Tourneau, afirmam é que o livro simboliza as posições do ex-presidente e aliados acerca dos indígenas e da Amazônia.
No Telegram, Bolsonaro afirmou que as acusações de descaso de seu governo com os indígenas eram uma "farsa de esquerda" e defendeu que a saúde indígena foi uma das prioridades da sua gestão.
A conduta do antigo governo nessa área está passando agora por intenso escrutínio, depois que o site jornalístico Sumaúma revelou fotos e dados da sofrida situação da saúde de crianças, adultos e idosos yanomami.
No final de janeiro, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso pediu a abertura de uma investigação sobre "a possível participação de autoridades do governo Jair Bolsonaro na prática, em tese, dos crimes de genocídio, desobediência, quebra de segredo de justiça, e de delitos ambientais relacionados à vida, à saúde e à segurança de diversas comunidades indígenas".
Na decisão, Barroso menciona haver evidências de "ação ou omissão" do antigo governo que agravaram a situação dos yanomami. Um exemplo trazido pelo ministro do STF foi a publicação, no Diário Oficial, de data e local de uma operação sigilosa contra o garimpo ilegal em território yanomami, o que pode ter alertado os invasores.
Carlos Alberto Lima Menna Barreto se apresenta, logo no início de sua obra, como um “gaúcho natural de Porto Alegre, oriundo de tradicional família de militares”. Foi em 1968 que, segundo o próprio, ele “travou os primeiros contatos com a Amazônia, que a partir dessa data o seduziu”.
Em Roraima, Menna Barreto atuou como primeiro comandante do 2º Batalhão Especial de Fronteira e do Comando de Fronteira e, após ir para a reserva, foi secretário de Segurança do Estado.
Nas páginas finais de sua obra, o coronel propôs algumas ações. A primeira recomendação era a anulação da criação da reserva yanomami — homologada em 1992 —, por conta das “fraudes” que o militar disse ter apresentado no livro. Uma segunda proposta consistia em “regulamentar a exploração do ouro, do diamante e de outros minérios por pessoas físicas e empresas”.
Talvez essas bandeiras lembrem posições de Jair Bolsonaro.
Quando deputado federal, o então capitão da reserva pediu, em 1993, a anulação da demarcação da terra indígena yanomami; quando presidente, ele declarou em diversas ocasiões que não haveria mais demarcação de terras indígenas em seu governo.
Em fevereiro de 2022, o então presidente comemorou que na sua gestão no Planalto “não foi demarcada nenhuma terra indígena”.
Por longos anos, Bolsonaro também defendeu o garimpo em terras indígenas e, na presidência, agiu nesse sentido. Veio do Executivo, por exemplo, um projeto de lei de 2020 que tentou regulamentar a mineração nessas áreas protegidas — mas a proposta acabou não avançando.
Autor de livros e pesquisas sobre os yanomami e a Amazônia, o francês François-Michel Le Tourneau identifica três grupos de pressão sobre o governo Bolsonaro que buscaram limitar direitos do indígenas: os ruralistas, as igrejas evangélicas e os militares.
Para Tourneau, o general Augusto Heleno, então chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) e ex-comandante militar da Amazônia, era uma figura emblemática de uma geração de oficiais e generais que vê a Amazônia como um ponto vulnerável para a unidade nacional brasileira.
“O fato de ter deixado a Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) e os índios do Brasil completamente abandonados por quatro anos era realmente isso. Para eles, se fomentava dentro da Funai um movimento de desmembramento do Brasil e se defendia que esses territórios estavam cheios de riquezas que precisavam ser exploradas”, diz o geógrafo, diretor de pesquisas do Centre National de la Recherche Scientifique, na França.
“Os índios do Brasil não têm nenhum interesse em independência política. Há uma confusão, pois eles podem querer autonomia, mas autonomia não é independência”, explica o francês, que diz ter “aprendido a viver” com as suspeitas que desperta por ser um estrangeiro estudando a Amazônia.
Para Torneau, o livro A Farsa Ianomâmi é mais um exemplo dessa interpretação de um segmento dos militares sobre os indígenas da Amazônia.
“Por que o governo Bolsonaro recebeu bem esse tipo de teoria, ou até mesmo propagou esse tipo de teoria [do livro]? Porque o fundo ideológico e cultural deles está fundamentando sobre a ideia de que as identidades indígenas de certa forma são uma ameaça ao Brasil.”
Segundo o catálogo online do Exército, há hoje 56 exemplares do livro espalhados por bibliotecas da força pelo Brasil — 12 deles estão em colégios militares, que oferecem ensino fundamental e médio.
O historiador João Pedro Garcez lembra de estudos que já demonstraram que, em 1988, ano de promulgação da Constituição, e em 1992, ano de realização da conferência Eco-92 no Rio de Janeiro, aumentou a produção acadêmica militar sobre a Amazônia.
“Eu acredito que tanto esse crescimento quanto a publicação do livro A Farsa Ianomâmi têm a ver com uma reação dos militares à Constituição Federal, que defende a autodeterminação dos povos, e por consequência a demarcação das terras indígenas; e a própria Eco-92, que trouxe muito forte para o Brasil a discussão ambiental”, diz Garcez, doutorando em história na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
O historiador aponta que o autor de A Farsa Ianomâmi usou muitos artigos de opinião publicados em jornais para validar seus argumentos, ao mesmo tempo em que se valeu de sua experiência em Roraima. O livro é escrito em primeira pessoa.
“Ele reivindicava muito essa autoridade testemunhal. O livro tem uma característica autobiográfica”, explica Garcez.
Menna Barreto também traz no livro um documento datado de 1981 e atribuído ao Conselho Mundial de Igrejas Cristãs, que teria sede na Suíça. O texto, reproduzido inicialmente pelo jornal O Estado de S.Paulo, expõe planos de “infiltrar missionários e contratados, inclusive não religiosos, em todas as nações indígenas”. Mas a veracidade do documento é controversa.
Em 1987, foi criada uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) para apurar denúncias “formuladas pelo jornal O Estado de S.Paulo, referentes a uma conspiração internacional envolvendo restrições à soberania nacional sobre a região amazônica”, segundo documentos do Congresso.
Após investigação, o relator concluiu “que a instituição ‘Conselho Mundial de Igrejas Cristãs’, elemento-chave das denúncias, não teve sua existência confirmada […]. Ao contrário, todas as entidades consultadas negaram conhecer sua existência”.
Menna Barreto recorreu também a relatos de viajantes europeus de séculos passados para sustentar o argumento de que a identificação yanomami não era citada. Assim, o coronel defendeu um dos principais argumentos de seu livro: o de que os yanomami não existem e foram inventados por interesses alheios.
“Ele ignora toda a produção antropológica contemporânea a ele. Essa produção mostra que os yanomâmi são um supergrupo e que tem divisões dentro desse supergrupo”, afirma Garcez.
A antropóloga e indigenista Hanna Limulja explica que os indígenas que compõem o grande território yanomami podem até se referir com outras palavras a seus subgrupos, mas que a consideração deles como yanomami pelos especialistas não é nada arbitrária.
“Por que esse povo é considerando yanomami? Porque eles compartilham um território, práticas culturais, uma língua. O yanomami é uma língua isolada, é um tronco, e dentro disso você pode ter variações. Por exemplo, o latim é um tronco, e aí você tem variações como o português e o espanhol, que são próximos”, aponta Limulja.
“O fato de a gente catagorizar os yanomami ou não não quer dizer que a gente invente um povo. O povo está lá. A gente o define da maneira que a gente consegue, com nossos estudos, dentro das nossas categorias.”
François-Michel Le Tourneau explica que boa parte do conteúdo de A Farsa Ianomâmi é uma “cópia” de teorias conspiratórias abastecidas nos anos 1990 pelo americano Lyndon LaRouche.
“Para mim, o mais importante nesse livro não é só o autor, mas quem publicou. Ele foi publicado pela Biblioteca do Exército, e isso dá um peso para o livro”, aponta o geógrafo.
A reportagem enviou perguntas ao Exército brasileiro, que foram parcialmente respondidas. Em nota, o Exército informou que, apesar de exemplares de A Farsa Ianomâmi estarem em colégios militares, “a obra não consta da lista de livros paradidáticos constantes das Normas de Planejamento e Gestão Escolar (NPGE) do Sistema Colégio Militar do Brasil”.
Por isso, não está “autorizada nenhuma atividade pedagógica com o livro nos Colégios Militares”.
A BBC News Brasil também tentou entrevistar líderes yanomami mas, em meio à crise humanitária no território, não pôde ser atendida por falta de disponibilidade.
Também foi oferecida uma oportunidade de posicionamento à fotógrafa Claudia Andujar, por meio do contato com uma galeria de arte que a representa. Não houve retorno. Em 2010, porém, foi publicada uma entrevista em que a artista aborda o livro A Farsa Ianomâmi.
Segundo ela, o livro foi construído em um período em que ela participou dos esforços para a demarcação da terra yanomami.
“Olha, naquela época, fui muito perseguida pelos militares que estavam na presidência e nas diretorias da Funai. Apesar de tudo isso, e graças a bons contatos políticos em Brasília, conseguimos a demarcação das terras. Mas em Roraima continuei odiada. Esse cara que escreveu sobre mim era de lá. Saíram tantas notícias negativas contra nosso trabalho que você nem imagina. Saiu publicamente que eu era uma espiã americana, depois que era uma espiã belga, coisas simplesmente absurdas. Eu não tenho nada haver com a Bélgica”, disse Andujar, em entrevista a uma revista acadêmica.
Apesar de criticarem o conteúdo do livro e sua disseminação pelo Exército, os especialistas entrevistados pela BBC News Brasil opinam que não deveria haver algum tipo de restrição à circulação de A Farsa Ianomâmi.
“Até pensando no caso do meu estudo, eu acho que ele é uma obra sintomática de um pensamento militar acerca dessas das questões indígena e ambiental. Eu entendo que ele reproduz e talvez até dissemine algumas ideias que são bem problemáticas, mas não acredito que a censura ou a tentativa de tirar ele de circulação seja o meio mais efetivo de combater ele”, diz Garcez.
“E algo muito presente no livro e na circulação dele é a colocação de que há uma grande conspiração para deixar tudo aquilo escondido. Então, retirando-o de circulação, talvez acabe validando mais esse ponto.”
“Acho que, se você começar a andar do lado da censura, é um caminho sem volta. Acredito que é mais interessante se produzir um outro livro que demonstre os equívocos com argumentos mais sólidos”, sugere o pesquisador francês.
Jair, o 'libertador'
São o povo mais pobre no solo mais rico do mundo. Tentamos em 2021, com um projeto, libertá-los. Não conseguimos chegar ao final, mas a semente foi plantadaJair Bolsonaro
Os Ofaié, a história e o verbete no Aurélio
Já se passaram dez anos e uma nota no Facebook dava conta de que Eles estão lá, na página 1.497, da 5ª edição do majestoso Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, publicado em parceria com a Editora Positivo, na versão impressa e digital.
E logo explicava: É o verbete ‘Ofaié’, que finalmente salta dos recônditos da história e tem seu nome, agora, incluído entre as mais de cinco milhões de palavras que compõem o léxico da escrita deste nosso pluriétnico Brasil. Ao final a nota dava Parabéns Ofaié. Parabéns Brasilândia.
Nos comentários que se seguiram e a repercussão de pouco mais de 20 curtidas na época, uma delas dizia: Meus parabéns Carlito, acredito que nesta história tem um dedo seu. Com o agradecimento à pessoa querida e pelo reconhecimento ao trabalho realizado, aproveito o mote para me alongar um pouco mais nesta história.
É bom lembrar inicialmente que o nome Ofaié só começou a ser ventilado nas esferas jornalísticas a partir de 1976 com uma reportagem no Jornal O Estado de São Paulo, quando a sucursal de Marilia/SP enviou o jornalista Luiz Carlos Lopes à Brasilândia/MS, e que realizou uma importante matéria sobre esse povo em via de extinção e em situação precaríssima de sobrevivência.
A reportagem assumiu relevância em razão de que, dois anos após, os Ofaié acabaram tendo visibilidade e sendo drasticamente transferidos de sua área tradicional, levados pela Funai, para a Reserva do Kadiwéu, no município de Porto Murtinho, e que acabaram sendo usados como bucha de canhão como se noticiou na época, no epicentro de um conflito que envolvia Incra, Funai, fazendeiros, indígenas e arrendatários na Serra de Bodoquena e região. O ex-Cacique Ataíde Xehitâ-ha foi testemunha ocular deste conflito que resultou em muita violência e morte de indígenas e não indígenas.
Tempos difíceis para um tempo da abertura política que dava seus primeiros passos. Na Funai, as fileiras que a comandavam ainda eram verde-oliva e as poucas vozes que se somavam ao grito dos indígenas – como Marçal de Souza Tupã-I --, eram o Cimi, o CTI, a Opan, Cedi, CPT, GTME, entre outras entidades não governamentais e confessionais que ousavam desafiar o regime para solidarizar-se com a causa indígena.
Os Ofaié, povo minoritário – em Bodoquena viviam 27 pessoas –, foram praticamente redescobertos em 1981 pelo indigenista Prof. Antônio Jacob Brand, falecido em 2012, que reuniu, ao lado dos missionários Ivo Schoroeder, Rogério, Carlito, Orlando, Hilário, Veronice, Nereu, Maucir, Pe. Odilo, Jorge, D. Teodardo, e outros que trabalhavam no Regional do Cimi em Dourados/MS, a documentação para o soerguimento Ofaié.
Registre-se aqui a captação da voz no lamento Ofaié gravado por Antônio Brand, em 1981, ao lado da indígena Ozena Ofaié, sentada no chão, rodeada de crianças da diminuta aldeia, lá no Vazantão.
Naquela região do Tarumã, fundões da Morraria do Sul, pantanal adentro, o indigenista recolheu uma raridade, que se configurou chamar de O último canto dos Ofaié. Estava lançada e eternizada no espaço impresso e virtual a voz desse povo heroico esquecido da história.
Logo deixam de ser confundido com os Xavante. Isso porque a literatura e os apontamentos dos primeiros viajantes estrangeiros chamavam a todos os habitantes das savanas de shavantes. Passam então a serem ouvidos e respeitados como Povo Ofaié ou Äfäyé, como grafam os linguistas.
Foi, sem dúvida, na contemporaneidade, que a ação missionária e acadêmica deram visibilidade à história e ao grito de liberdade desse povo.
Não fossem as campanhas nacionais e internacionais realizadas, com mais de cinco mil assinaturas de entidades e pessoas engajadas em favor da luta intitulada Ofaié, ainda estamos vivos, a história desse povo teria sido diferente.
Não fosse a corajosa participação dos alunos da Escola Estadual Adilson Alves da Silva, com a Profª Márcia Nakamura, em Brasilândia/MS, até o Alto Comissariado das Nações Unidas e da Human Right que solidarizaram-se com a causa dos Ofaié a partir de 1989, não saberíamos dizer a que as frentes agropastoris que tomaram de assalto o MS teriam reduzido esse povo.
Move-se a roda do tempo e novos reforços, novos agentes sociais e políticas públicas; novos atores e metodologias, pesquisas e lutas reivindicatórias, cada vez mais especializadas, mais exigentes e críticas, fazendo a sua parte, como um corretivo à história.
E lá estão eles, agora, indefectíveis, invadindo a academia com suas lanças e jacá, na trilha de monografias, dissertações de mestrado e teses de doutorado. Perambulam pelos estandes da economia, dando seu nome à monumentos, carimbos oficiais e à postos fiscais da receita; na ciência agronômica chegam a imortalizar espécies de cultivares de trigo, ora veja!
Cruzam a linha do horizonte da linguística e da semântica que os manteve presos durante séculos no domínio somente do saber de especialistas. O nome Ofaié com o apoio de parceiros, ingressa nos livros de história, desde a universidade até a cartilha da escola municipal local, não sem alguma resistência.
Há poucos anos, uma coleção que pretendia falar dos indígenas do Estado de MS, deixou de fora os Ofaié. O próprio IHGMS ao republicar suas obras (que não dispunham de ISBN) olvidou de incluir o livro Ofaié, morte de vida de um povo, que patrocinou em 1996. Enfim, um longo caminho de tolerância acadêmica ainda precisava ser trilhado.
Mas os Ofaié da aldeia Anodi, do município de Brasilândia/MS venceram. E estão aí, com viva voz, para falar de sua história e seus sonhos e conquistas vividos nos dias atuais. A inclusão de seu nome no Dicionário Aurélio Buarque de Holanda, edição de 100 anos, sim foi um marco a ser festejado. Ainda que tardio. Mas quanto à autoria do verbete, a história é semelhante a uma outra vivida por este escrevinhador há mais tempo.
Quando fui convidado pelo Cedi, hoje Isa, para escrever sobre os Ofaié, foi algo pioneiro. Os anos 1990 estavam apenas começando e o saber indígena só vinha à lume pelas mãos de uns poucos especialistas.
Hoje, esse saber, assim como todo o cabedal do Aurelião, como era conhecido, está sendo construído por muitas mãos, também indígenas; saberes que na maioria das vezes não aparecem nos créditos das obras. Mas quem liga, se o mérito está no conteúdo e não na forma? Ainda assim, urge devolver-lhes o protagonismo.
De modo especial para quem pouco observa. Afinal, quem liga, se o olhar de uma das filhas de Knii está cabisbaixo, enquanto seu corpo descansa, sentada num barranco, sob a poeira da estrada – Rodovia MS 040, a 12 km da cidade? Quem liga, se ela ainda aguarda o ônibus, que só depois de passar pelas fazendas da região, a levará para a escola e a biblioteca que quiçá guarda tão pouco da memória de sua gente?
E logo explicava: É o verbete ‘Ofaié’, que finalmente salta dos recônditos da história e tem seu nome, agora, incluído entre as mais de cinco milhões de palavras que compõem o léxico da escrita deste nosso pluriétnico Brasil. Ao final a nota dava Parabéns Ofaié. Parabéns Brasilândia.
Nos comentários que se seguiram e a repercussão de pouco mais de 20 curtidas na época, uma delas dizia: Meus parabéns Carlito, acredito que nesta história tem um dedo seu. Com o agradecimento à pessoa querida e pelo reconhecimento ao trabalho realizado, aproveito o mote para me alongar um pouco mais nesta história.
É bom lembrar inicialmente que o nome Ofaié só começou a ser ventilado nas esferas jornalísticas a partir de 1976 com uma reportagem no Jornal O Estado de São Paulo, quando a sucursal de Marilia/SP enviou o jornalista Luiz Carlos Lopes à Brasilândia/MS, e que realizou uma importante matéria sobre esse povo em via de extinção e em situação precaríssima de sobrevivência.
A reportagem assumiu relevância em razão de que, dois anos após, os Ofaié acabaram tendo visibilidade e sendo drasticamente transferidos de sua área tradicional, levados pela Funai, para a Reserva do Kadiwéu, no município de Porto Murtinho, e que acabaram sendo usados como bucha de canhão como se noticiou na época, no epicentro de um conflito que envolvia Incra, Funai, fazendeiros, indígenas e arrendatários na Serra de Bodoquena e região. O ex-Cacique Ataíde Xehitâ-ha foi testemunha ocular deste conflito que resultou em muita violência e morte de indígenas e não indígenas.
Tempos difíceis para um tempo da abertura política que dava seus primeiros passos. Na Funai, as fileiras que a comandavam ainda eram verde-oliva e as poucas vozes que se somavam ao grito dos indígenas – como Marçal de Souza Tupã-I --, eram o Cimi, o CTI, a Opan, Cedi, CPT, GTME, entre outras entidades não governamentais e confessionais que ousavam desafiar o regime para solidarizar-se com a causa indígena.
Os Ofaié, povo minoritário – em Bodoquena viviam 27 pessoas –, foram praticamente redescobertos em 1981 pelo indigenista Prof. Antônio Jacob Brand, falecido em 2012, que reuniu, ao lado dos missionários Ivo Schoroeder, Rogério, Carlito, Orlando, Hilário, Veronice, Nereu, Maucir, Pe. Odilo, Jorge, D. Teodardo, e outros que trabalhavam no Regional do Cimi em Dourados/MS, a documentação para o soerguimento Ofaié.
Registre-se aqui a captação da voz no lamento Ofaié gravado por Antônio Brand, em 1981, ao lado da indígena Ozena Ofaié, sentada no chão, rodeada de crianças da diminuta aldeia, lá no Vazantão.
Naquela região do Tarumã, fundões da Morraria do Sul, pantanal adentro, o indigenista recolheu uma raridade, que se configurou chamar de O último canto dos Ofaié. Estava lançada e eternizada no espaço impresso e virtual a voz desse povo heroico esquecido da história.
Logo deixam de ser confundido com os Xavante. Isso porque a literatura e os apontamentos dos primeiros viajantes estrangeiros chamavam a todos os habitantes das savanas de shavantes. Passam então a serem ouvidos e respeitados como Povo Ofaié ou Äfäyé, como grafam os linguistas.
Foi, sem dúvida, na contemporaneidade, que a ação missionária e acadêmica deram visibilidade à história e ao grito de liberdade desse povo.
Não fossem as campanhas nacionais e internacionais realizadas, com mais de cinco mil assinaturas de entidades e pessoas engajadas em favor da luta intitulada Ofaié, ainda estamos vivos, a história desse povo teria sido diferente.
Não fosse a corajosa participação dos alunos da Escola Estadual Adilson Alves da Silva, com a Profª Márcia Nakamura, em Brasilândia/MS, até o Alto Comissariado das Nações Unidas e da Human Right que solidarizaram-se com a causa dos Ofaié a partir de 1989, não saberíamos dizer a que as frentes agropastoris que tomaram de assalto o MS teriam reduzido esse povo.
Move-se a roda do tempo e novos reforços, novos agentes sociais e políticas públicas; novos atores e metodologias, pesquisas e lutas reivindicatórias, cada vez mais especializadas, mais exigentes e críticas, fazendo a sua parte, como um corretivo à história.
E lá estão eles, agora, indefectíveis, invadindo a academia com suas lanças e jacá, na trilha de monografias, dissertações de mestrado e teses de doutorado. Perambulam pelos estandes da economia, dando seu nome à monumentos, carimbos oficiais e à postos fiscais da receita; na ciência agronômica chegam a imortalizar espécies de cultivares de trigo, ora veja!
Cruzam a linha do horizonte da linguística e da semântica que os manteve presos durante séculos no domínio somente do saber de especialistas. O nome Ofaié com o apoio de parceiros, ingressa nos livros de história, desde a universidade até a cartilha da escola municipal local, não sem alguma resistência.
Há poucos anos, uma coleção que pretendia falar dos indígenas do Estado de MS, deixou de fora os Ofaié. O próprio IHGMS ao republicar suas obras (que não dispunham de ISBN) olvidou de incluir o livro Ofaié, morte de vida de um povo, que patrocinou em 1996. Enfim, um longo caminho de tolerância acadêmica ainda precisava ser trilhado.
Mas os Ofaié da aldeia Anodi, do município de Brasilândia/MS venceram. E estão aí, com viva voz, para falar de sua história e seus sonhos e conquistas vividos nos dias atuais. A inclusão de seu nome no Dicionário Aurélio Buarque de Holanda, edição de 100 anos, sim foi um marco a ser festejado. Ainda que tardio. Mas quanto à autoria do verbete, a história é semelhante a uma outra vivida por este escrevinhador há mais tempo.
Quando fui convidado pelo Cedi, hoje Isa, para escrever sobre os Ofaié, foi algo pioneiro. Os anos 1990 estavam apenas começando e o saber indígena só vinha à lume pelas mãos de uns poucos especialistas.
Hoje, esse saber, assim como todo o cabedal do Aurelião, como era conhecido, está sendo construído por muitas mãos, também indígenas; saberes que na maioria das vezes não aparecem nos créditos das obras. Mas quem liga, se o mérito está no conteúdo e não na forma? Ainda assim, urge devolver-lhes o protagonismo.
De modo especial para quem pouco observa. Afinal, quem liga, se o olhar de uma das filhas de Knii está cabisbaixo, enquanto seu corpo descansa, sentada num barranco, sob a poeira da estrada – Rodovia MS 040, a 12 km da cidade? Quem liga, se ela ainda aguarda o ônibus, que só depois de passar pelas fazendas da região, a levará para a escola e a biblioteca que quiçá guarda tão pouco da memória de sua gente?
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