quarta-feira, 15 de fevereiro de 2023

Os Ofaié, a história e o verbete no Aurélio

Já se passaram dez anos e uma nota no Facebook dava conta de que Eles estão lá, na página 1.497, da 5ª edição do majestoso Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, publicado em parceria com a Editora Positivo, na versão impressa e digital.

E logo explicava: É o verbete ‘Ofaié’, que finalmente salta dos recônditos da história e tem seu nome, agora, incluído entre as mais de cinco milhões de palavras que compõem o léxico da escrita deste nosso pluriétnico Brasil. Ao final a nota dava Parabéns Ofaié. Parabéns Brasilândia.

Nos comentários que se seguiram e a repercussão de pouco mais de 20 curtidas na época, uma delas dizia: Meus parabéns Carlito, acredito que nesta história tem um dedo seu. Com o agradecimento à pessoa querida e pelo reconhecimento ao trabalho realizado, aproveito o mote para me alongar um pouco mais nesta história.



É bom lembrar inicialmente que o nome Ofaié só começou a ser ventilado nas esferas jornalísticas a partir de 1976 com uma reportagem no Jornal O Estado de São Paulo, quando a sucursal de Marilia/SP enviou o jornalista Luiz Carlos Lopes à Brasilândia/MS, e que realizou uma importante matéria sobre esse povo em via de extinção e em situação precaríssima de sobrevivência.

A reportagem assumiu relevância em razão de que, dois anos após, os Ofaié acabaram tendo visibilidade e sendo drasticamente transferidos de sua área tradicional, levados pela Funai, para a Reserva do Kadiwéu, no município de Porto Murtinho, e que acabaram sendo usados como bucha de canhão como se noticiou na época, no epicentro de um conflito que envolvia Incra, Funai, fazendeiros, indígenas e arrendatários na Serra de Bodoquena e região. O ex-Cacique Ataíde Xehitâ-ha foi testemunha ocular deste conflito que resultou em muita violência e morte de indígenas e não indígenas.

Tempos difíceis para um tempo da abertura política que dava seus primeiros passos. Na Funai, as fileiras que a comandavam ainda eram verde-oliva e as poucas vozes que se somavam ao grito dos indígenas – como Marçal de Souza Tupã-I --, eram o Cimi, o CTI, a Opan, Cedi, CPT, GTME, entre outras entidades não governamentais e confessionais que ousavam desafiar o regime para solidarizar-se com a causa indígena.

Os Ofaié, povo minoritário – em Bodoquena viviam 27 pessoas –, foram praticamente redescobertos em 1981 pelo indigenista Prof. Antônio Jacob Brand, falecido em 2012, que reuniu, ao lado dos missionários Ivo Schoroeder, Rogério, Carlito, Orlando, Hilário, Veronice, Nereu, Maucir, Pe. Odilo, Jorge, D. Teodardo, e outros que trabalhavam no Regional do Cimi em Dourados/MS, a documentação para o soerguimento Ofaié.

Registre-se aqui a captação da voz no lamento Ofaié gravado por Antônio Brand, em 1981, ao lado da indígena Ozena Ofaié, sentada no chão, rodeada de crianças da diminuta aldeia, lá no Vazantão.

Naquela região do Tarumã, fundões da Morraria do Sul, pantanal adentro, o indigenista recolheu uma raridade, que se configurou chamar de O último canto dos Ofaié. Estava lançada e eternizada no espaço impresso e virtual a voz desse povo heroico esquecido da história.

Logo deixam de ser confundido com os Xavante. Isso porque a literatura e os apontamentos dos primeiros viajantes estrangeiros chamavam a todos os habitantes das savanas de shavantes. Passam então a serem ouvidos e respeitados como Povo Ofaié ou Äfäyé, como grafam os linguistas.

Foi, sem dúvida, na contemporaneidade, que a ação missionária e acadêmica deram visibilidade à história e ao grito de liberdade desse povo.

Não fossem as campanhas nacionais e internacionais realizadas, com mais de cinco mil assinaturas de entidades e pessoas engajadas em favor da luta intitulada Ofaié, ainda estamos vivos, a história desse povo teria sido diferente.

Não fosse a corajosa participação dos alunos da Escola Estadual Adilson Alves da Silva, com a Profª Márcia Nakamura, em Brasilândia/MS, até o Alto Comissariado das Nações Unidas e da Human Right que solidarizaram-se com a causa dos Ofaié a partir de 1989, não saberíamos dizer a que as frentes agropastoris que tomaram de assalto o MS teriam reduzido esse povo.

Move-se a roda do tempo e novos reforços, novos agentes sociais e políticas públicas; novos atores e metodologias, pesquisas e lutas reivindicatórias, cada vez mais especializadas, mais exigentes e críticas, fazendo a sua parte, como um corretivo à história.

E lá estão eles, agora, indefectíveis, invadindo a academia com suas lanças e jacá, na trilha de monografias, dissertações de mestrado e teses de doutorado. Perambulam pelos estandes da economia, dando seu nome à monumentos, carimbos oficiais e à postos fiscais da receita; na ciência agronômica chegam a imortalizar espécies de cultivares de trigo, ora veja!

Cruzam a linha do horizonte da linguística e da semântica que os manteve presos durante séculos no domínio somente do saber de especialistas. O nome Ofaié com o apoio de parceiros, ingressa nos livros de história, desde a universidade até a cartilha da escola municipal local, não sem alguma resistência.

Há poucos anos, uma coleção que pretendia falar dos indígenas do Estado de MS, deixou de fora os Ofaié. O próprio IHGMS ao republicar suas obras (que não dispunham de ISBN) olvidou de incluir o livro Ofaié, morte de vida de um povo, que patrocinou em 1996. Enfim, um longo caminho de tolerância acadêmica ainda precisava ser trilhado.

Mas os Ofaié da aldeia Anodi, do município de Brasilândia/MS venceram. E estão aí, com viva voz, para falar de sua história e seus sonhos e conquistas vividos nos dias atuais. A inclusão de seu nome no Dicionário Aurélio Buarque de Holanda, edição de 100 anos, sim foi um marco a ser festejado. Ainda que tardio. Mas quanto à autoria do verbete, a história é semelhante a uma outra vivida por este escrevinhador há mais tempo.

Quando fui convidado pelo Cedi, hoje Isa, para escrever sobre os Ofaié, foi algo pioneiro. Os anos 1990 estavam apenas começando e o saber indígena só vinha à lume pelas mãos de uns poucos especialistas.

Hoje, esse saber, assim como todo o cabedal do Aurelião, como era conhecido, está sendo construído por muitas mãos, também indígenas; saberes que na maioria das vezes não aparecem nos créditos das obras. Mas quem liga, se o mérito está no conteúdo e não na forma? Ainda assim, urge devolver-lhes o protagonismo.

De modo especial para quem pouco observa. Afinal, quem liga, se o olhar de uma das filhas de Knii está cabisbaixo, enquanto seu corpo descansa, sentada num barranco, sob a poeira da estrada – Rodovia MS 040, a 12 km da cidade? Quem liga, se ela ainda aguarda o ônibus, que só depois de passar pelas fazendas da região, a levará para a escola e a biblioteca que quiçá guarda tão pouco da memória de sua gente?

Nenhum comentário:

Postar um comentário