sexta-feira, 4 de junho de 2021

Bolsonaro esvazia comandante e põe Exército de joelhos

O capitão subiu a rampa com sete ministros militares. O loteamento se espalhou pelos escalões inferiores da máquina pública. Mais de seis mil fardados se penduraram em cargos civis.

Quem não ganhou emprego embolsou vantagens no contracheque. Os integrantes das Forças foram poupados da reforma da Previdência. Além de manter privilégios, arrancaram novos penduricalhos.

No mês passado, uma canetada autorizou militares da reserva a furar o teto constitucional. Alguns generais passarão a receber supersalários acima dos R$ 60 mil por mês.


O presidente nunca escondeu a regra do jogo: para manter as benesses, é preciso se curvar a ele e a seus filhos. No início do governo, o general Santos Cruz tentou contrariar interesses do vereador Carlos Bolsonaro. Puxou a fila dos demitidos antes de completar seis meses no cargo.

Outros oficiais toparam se humilhar para continuar no poder. Foi o caso do general Luiz Eduardo Ramos, chamado de “Maria Fofoca” e “Banana de Pijama” por um colega de gabinete. Ele engoliu os desaforos e foi promovido a chefe da Casa Civil.

Quando o governo começou a dar sinais de derretimento, o capitão elevou o tom das cobranças. Passou a exigir demonstrações públicas de apoio e ameaçou usar tanques contra prefeitos e governadores.

No fim de março, ele criou uma crise militar e derrubou o general Fernando Azevedo do Ministério da Defesa. Agora esvazia o novo comandante do Exército, que assumiu há pouco mais de dois meses.

Bolsonaro montou uma armadilha para o general Paulo Sérgio Nogueira. Levou o ex-ministro Eduardo Pazuello, que é oficial da ativa, para um comício em seu favor. O comandante ficou emparedado: ou punia o subordinado, arriscando-se a ser demitido, ou fechava os olhos para a indisciplina, abrindo as portas para a anarquia militar.

O general aceitou ficar de joelhos para o capitão. Perdeu a autoridade e ainda pode vir a perder o cargo. Basta que ele contrarie a próxima vontade do chefe.

Sem memória , vão-se os valores, ficam as mentiras

Pior que esquecer a história é distorcê-la para avivar o ressentimento.

Distorcer a história é ainda pior do que esquecê-la. O perigoso são as meias memórias que os políticos utilizam para avivar o ressentimento e os medos.

[Os políticos] estão mais preocupados com os custos de suas decisões. Estamos lidando com uma geração de políticos que carecem há muito tempo de uma educação humanista como a que nós tivemos. Não há nada mais trágico do que um homem que perdeu a memória

Peter Brown, autor de ‘O Mundo da Antiguidade Tardia’

Vírus da anarquia militar ganha passe livre nos quartéis

Haverá alguma reação militar à decisão do general Paulo Sérgio Nogueira, comandante do Exército, de arquivar o procedimento administrativo instaurado contra seu colega Eduardo Pazuello, que participou no Rio de manifestação político-partidária ao lado do presidente Jair Bolsonaro?

Improvável. Nogueira poderia ter punido Pazuello com uma advertência oral, ou por escrito, ou com até 30 dias de prisão como previsto no código do Exército. A maioria dos generais do Estado Maior do Exército defendeu uma dura advertência por escrito. Nogueira escolheu a pior alternativa: não fazer nada.


Bolsonaro enquadrou o Comandante do Exército. A partir de agora, e com razão, poderá chamar o Exército de “meu Exército”. E exigir que os militares graduados só se refiram a ele como “o Comandante Supremo das Forças Armadas”. Pazuello ganhou uma nova sinecura no governo. Nogueira desmoralizou sua Arma.

Haverá choro e ranger de dentes entre generais da ativa e da reserva, mas por enquanto apenas isso. Embora tenha ouvido seus pares pelo menos três vezes desde que Pazuello rasgou o Regimento Disciplinar do Exército, cabia a Nogueira, e somente a ele, a palavra final. Na prática, a palavra final foi de Bolsonaro.

O vírus da anarquia militar ganhou passe livre para circular dentro dos quartéis. Se um general da ativa pode ignorar o que está escrito no Regimento Disciplinar do Exército, se o Comandante do Exército pode ignorar a transgressão cometida por um general, por que soldados, cabos e demais escalões não podem?

Eles também são filhos de Deus – ou do diabo.

No Curralzinho da História

Chamar o Bolsonaro de fascista pode até ser um elogio. Verdade. Não se espantem. O fascismo além de todos os erros que cometeu, de toda a ideologia arbitrária, segregacionista e economicamente predadora foi um partido organizado. Havia todo um ritual, patético digamos a verdade, mas era um ritual. Havia uniformes, gestos com os braços e um culto ao Duce que passava longe dos encontros no cercadinho do planalto. Bolsonaro se veste mal, fala mal, não tem preparo nem para ser nem líder fascista. Mussolini enfrentou uma guerra que acabou com o que existia da Itália, levou à morte milhares de pessoas e ele terminou pendurado na Piazzale Loreto , em Milão pelos executado pela Resistência.

Com tudo o que criou e sedimentou- até hoje existe um partido de extrema direita na Itália- acabou pendurado, mas não foi esquecido pela História, apesar de estar no capítulo dos tiranos derrotados. Aliás, se formos ver pela História, quase todos os tiranos acabam derrotados.

Adolf Hitler quase não pintava pessoas nos quadros

Chamá-lo também de nazista é ainda mais forte. Perto de Adolph Hitler, Bolsonaro não seria capaz nem de ser convocado para alimentar o pastor alemão que tomava conta do Castelo na Floresta Negra. O oficial destinado a essa função tinha que passar por um período de preparação rigoroso. Afinal, esses animais mereciam o carinho e o respeito do Führer e isso exigia um atendimento padrão Fifa. Bolsonaro lida com emas e jacarés, quis se apossar de um cachorro perdido e acabou tendo que devolver o cão, mas tem muitos animais irracionais no seu governo.

Devo dizer que isso não seria suficiente para trabalhar no Reich. Hitler formou um verdadeiro império com a ajuda de industriais alemães, juízes e forças armadas para derrotar o capital e a existência dos judeus na Europa. Foi um extermínio que misturou uma decisão econômica e política meio pífias com um sadismo criminoso que fez levantar o apoio de boa parte da Alemanha. Levados pelo medo ou não foi o que aconteceu. Além do espetáculo ser medonho, ele tinha elementos que ajudavam a reunir apoiadores. A motociata do Bozo foi ridícula apesar dele se inspirar em Mussolini que adorava se mover em duas rodas.

Pirotecnia a parte, o governo Bolsonaro é praticamente nada. Dá trabalho, é verdade. O Supremo, o Congresso, a sociedade e agora até a imprensa oficial têm que ficar alertas o tempo todo para impedir que o pior seja feito. Mas é um estilo de governo cafona, primário, desorganizado, elementar, rudimentar e violento. E foi eleito pela doença antipetista inventada e pelo desejo de um neoliberalismo cruel e falido. Prega a morte porque a morte é a única coisa segura que temos. Não precisamos questioná-la. Ela vai acontecer. Isso facilita o raciocínio de quem quase não o usa. A morte tem seu efeito. Ajuda nos números, diminui a divisão, afasta os inimigos. Morrer é um projeto, talvez o que se pareça mais com o italiano e o alemão aqui citados antes. Mas, desculpem-me todos, falta estilo. Estilo cruel, mortal, assassino e doentio. Mas falta. Se isso é bom ou ruim vamos saber daqui pra frente. Começamos bem com o Exército se recusando a punir Pazuello. A hierarquia é uma coisa que os militares prezam muito. Essa sim foi o que podemos chamar de quebra de patente. Os generais obedecendo ao capitão. Já obedeceram a um pintor. Vejam só, a História é danada.

O capitão dobrou os generais. O próximo passo é transformar o Exército em milícia

Se havia alguma dúvida sobre a posição do Exército em relação a Jair Bolsonaro, foi eliminada na tarde desta quinta-feira. Com a decisão de não punir o general Eduardo Pazuello por ter subido ao palanque de um ato de apoio ao presidente, no Rio de Janeiro, o comandante da principal força militar do país demonstra que os generais, afinal, não são capazes de conter o capitão. 

Os regulamentos militares são claríssimos ao proibir a participação de oficiais da ativa em "manifestações coletivas, tanto sobre atos de superiores quanto as de caráter reivindicatório ou político.” Portanto, ao consignar em nota oficial que "não restou caracterizada a prática de transgressão disciplinar por parte do general Pazuello", o comando do Exército passa algumas mensagens à própria tropa e à sociedade brasileira.

Ao Brasil, que não espere do Exército nenhum esforço de proteção à ordem democrática ou ao estado de direito se, do outro lado, forçando os limites, estiver Jair Bolsonaro. Se não foi capaz de contê-lo nem para proteger um pilar básico da força, o respeito a hierarquia e aos códigos militares; se aceitou se humilhar diante do presidente num impasse em que tinha a seu favor uma regra cristalina e inequívoca, não há por que supor que o comandante terá força para fazê-lo quando estiver em jogo alguma questão politicamente difusa, do tipo que se justifica pelas narrativas delirantes de Bolsonaro.

À tropa, o recado é claro. Cabos, soldados, majores, tenentes, coronéis, estão todos liberados para fazer reivindicações salariais, contestar as regras do comando ou mandar às favas o regulamento disciplinar do Exército. A partir de agora é lícito pensar que, se Pazuello pode, eles também podem. As pilhas de processos disciplinares que se acumulam nas mesas dos comandantes podem ser arquivadas ou jogadas no lixo, porque a partir de agora existe uma nova regra: quem tem costas quentes pode promover a anarquia, que está tudo bem. 

Era público e notório que Bolsonaro não aceitava nenhuma punição para Pazuello. E bancou a aposta ao nomeá-lo para um cargo no Palácio do Planalto. 


Em reação a esses movimentos, há dias generais de vários segmentos vinham procurando a imprensa, diretamente ou por meio de interlocutores, para dizer que não havia hipótese de Pazuello não ser punido. Podia até ser uma punição branda. O que não podia era acabar tudo em "pizza", como se apostava entre os recrutas. 

Mas as poucas informações que vazaram sobre a reunião do Alto Comando do Exército, na última quarta-feira, já indicavam que o desfecho do caso seria diferente. Quando um integrante do Alto Comando disse à repórter Jussara Soares que a decisão do comandante seria acatada por todos como uma “decisão do Exército, independentemente da posição pessoal de cada um”, estava claro que os generais entendiam que teriam de se dobrar à vontade de Bolsonaro. 

Agora, não vai faltar quem se apresse a enviar a imprensa recados na direção contrária. Vão dizer que Bolsonaro é, em última instância, o o comandante máximo das Forças Armadas. Dirão ainda que, se ele decidisse revogar a decisão de Paulo Sérgio, o prejuízo à imagem do Exército seria ainda maior. 

O Exército já desafiou a autoridade de outros presidentes para se preservar, quando achou conveniente. Quando Dilma Rousseff exigiu uma punição para o então general Hamilton Mourão, que em 2015 convocou militares para um "despertar patriótico" e para a mudança do status quo, o comandante, general Villas Boas, negociou uma espécie de punição branca e transferiu Mourão de um comando militar para um setor burocrático, sem tropas. Em 2017, quando Mourão novamente desafiou os militares a resolver "o problema político" do país, o presidente da República era Michel Temer, e não houve nenhuma punição.

Um Exército que não obedece a um comando único, em que cada um faz o que quer, já entra na guerra derrotado. Um Exército em que oficiais priorizam interesses políticos e pessoais em detrimento do todo não serve mais ao país. Transforma-se em partido político. E, armado, facilmente transmuta-se em milícia. 

Em última instância, é esse o preocupante sinal enviado ao Brasil pelo desfecho do caso Pazuello. Depois de entrar no governo, o Exército vai se transformando em partido. A continuar assim, o próximo passo é se transformar em milícia. 
Malu Gaspar