segunda-feira, 30 de maio de 2022
Violência das chacinas é inexplicável
O mês de maio é muito bonito no Rio. Desfruto as manhãs e, no restante do dia, mergulho nos livros. Ensaios, romances, biografias, tudo que consigo ler antes que o cansaço me derrube.
Coincidência ou não, apesar da beleza dos dias de maio, preparava um texto sobre violência, das chacinas às agressões verbais de nossos tempos.
É mais fácil explicar por que o velho Santiago do livro de Ernest Hemingway pesca um imenso peixe e o perde no caminho da praia do que entender as razões do jovem Salvador Ramos, que matou 19 crianças e duas professoras em Uvalde, no Texas.
Também é muito difícil entender por que uma operação de inteligência resulta na morte de 23 pessoas, na Vila Cruzeiro, no Rio.
Será que estamos falando da mesma palavra quando dizemos inteligência?
No fundo, é possível dizer que políticas públicas estão por trás dessas mortes: a que coloca nas mãos do jovem Salvador dois fuzis; ou a que antevê no fuzilamento em grande escala um trunfo eleitoral.
O que estava preparando para explicar não trata diretamente de massacres, mas sim das condições que tornaram nossas vidas tão expostas à violência.
Meus temas eram a polarização e a violência verbal. Baseado numa análise de Milan Kundera do romance “A montanha mágica”, de Thomas Mann, achei que havia ali algo para compartilhar.
É um momento em que muitos se perguntam quando tudo começou. Foi com a internet, foram certas mudanças na própria estrutura da internet ou as revoltas ao longo do planeta, inclusive a de 2013 no Brasil?
Segundo Kundera, o romance de Thomas Mann, passado na véspera da Primeira Guerra Mundial, foi um terrível questionamento das ideias, um grande adeus à época que acreditou nas ideias e na sua faculdade de dirigir o mundo.
Dois importantes personagens do romance, um democrata e um autocrata, Settembrini e Naphta, são muito inteligentes, discutem intensamente suas ideias e, diante de seu pequeno auditório, extremam os argumentos, a tal ponto de não se saber mais quem reclama do progresso; quem, da tradição; quem, da razão; quem, do irracional.
Algumas páginas depois, já próximo à eclosão da guerra, os personagens sucumbem a irritações irracionais. Settembrini ofende Naphta, batem-se num duelo que acabará pelo suicídio de um deles.
Kundera afirma que o romance não mostra o irreconciliável antagonismo ideológico, mas uma agressividade extrarracional, “uma força obscura e inexplicada que impele os homens uns contra os outros, para a qual as ideias não passam de um guarda-chuva, de uma máscara e de um pretexto”.
Assim, o grande romance de ideias de Thomas Mann é uma espécie de despedida da esperança de que a discussão racional das ideias possa nos levar a bom termo. Havia certo pessimismo naquele momento em que a guerra se aproximava. Mas o que Thomas Mann queria dizer no princípio do século passado seria tão estranho assim aos nossos dias?
É possível dizer que a ampla discussão nas redes sociais passa ao largo dessas forças irracionais, é possível dizer que o confronto ideológico não é mais que um disfarce para o exercício do ódio?
Toda essa digressão não nos exime de criticar as políticas públicas que potencializam a violência: a liberação geral de armas, o estímulo ao fuzilamento de suspeitos. Talvez seja necessário ir mais longe em nossa reflexão. Se é verdade que o choque de ideias já revelava um fracasso na véspera da Primeira Guerra Mundial, aquelas forças destrutivas de qualquer consenso tornaram-se mais ativas.
Não é outro o objetivo das técnicas desenvolvidas na campanha de Trump e exportadas para a extrema direita do mundo, o uso do troll, descrito também como a quantidade de tempo usada para intervir numa conversa e dinamitar as possibilidades de diálogo.
Os tempos em que as ideias dirigiam o mundo já estavam em declínio. Imaginem agora, em que forças políticas se dedicam à lacração ou atuam apenas para impedir qualquer consenso: sobre a forma da Terra, o perigo de um vírus, a importância da vacina. O processo de autodestruição, tão nítido no meio ambiente, é também assustador na trajetória democrática.
Coincidência ou não, apesar da beleza dos dias de maio, preparava um texto sobre violência, das chacinas às agressões verbais de nossos tempos.
É mais fácil explicar por que o velho Santiago do livro de Ernest Hemingway pesca um imenso peixe e o perde no caminho da praia do que entender as razões do jovem Salvador Ramos, que matou 19 crianças e duas professoras em Uvalde, no Texas.
Também é muito difícil entender por que uma operação de inteligência resulta na morte de 23 pessoas, na Vila Cruzeiro, no Rio.
Será que estamos falando da mesma palavra quando dizemos inteligência?
No fundo, é possível dizer que políticas públicas estão por trás dessas mortes: a que coloca nas mãos do jovem Salvador dois fuzis; ou a que antevê no fuzilamento em grande escala um trunfo eleitoral.
O que estava preparando para explicar não trata diretamente de massacres, mas sim das condições que tornaram nossas vidas tão expostas à violência.
Meus temas eram a polarização e a violência verbal. Baseado numa análise de Milan Kundera do romance “A montanha mágica”, de Thomas Mann, achei que havia ali algo para compartilhar.
É um momento em que muitos se perguntam quando tudo começou. Foi com a internet, foram certas mudanças na própria estrutura da internet ou as revoltas ao longo do planeta, inclusive a de 2013 no Brasil?
Segundo Kundera, o romance de Thomas Mann, passado na véspera da Primeira Guerra Mundial, foi um terrível questionamento das ideias, um grande adeus à época que acreditou nas ideias e na sua faculdade de dirigir o mundo.
Dois importantes personagens do romance, um democrata e um autocrata, Settembrini e Naphta, são muito inteligentes, discutem intensamente suas ideias e, diante de seu pequeno auditório, extremam os argumentos, a tal ponto de não se saber mais quem reclama do progresso; quem, da tradição; quem, da razão; quem, do irracional.
Algumas páginas depois, já próximo à eclosão da guerra, os personagens sucumbem a irritações irracionais. Settembrini ofende Naphta, batem-se num duelo que acabará pelo suicídio de um deles.
Kundera afirma que o romance não mostra o irreconciliável antagonismo ideológico, mas uma agressividade extrarracional, “uma força obscura e inexplicada que impele os homens uns contra os outros, para a qual as ideias não passam de um guarda-chuva, de uma máscara e de um pretexto”.
Assim, o grande romance de ideias de Thomas Mann é uma espécie de despedida da esperança de que a discussão racional das ideias possa nos levar a bom termo. Havia certo pessimismo naquele momento em que a guerra se aproximava. Mas o que Thomas Mann queria dizer no princípio do século passado seria tão estranho assim aos nossos dias?
É possível dizer que a ampla discussão nas redes sociais passa ao largo dessas forças irracionais, é possível dizer que o confronto ideológico não é mais que um disfarce para o exercício do ódio?
Toda essa digressão não nos exime de criticar as políticas públicas que potencializam a violência: a liberação geral de armas, o estímulo ao fuzilamento de suspeitos. Talvez seja necessário ir mais longe em nossa reflexão. Se é verdade que o choque de ideias já revelava um fracasso na véspera da Primeira Guerra Mundial, aquelas forças destrutivas de qualquer consenso tornaram-se mais ativas.
Não é outro o objetivo das técnicas desenvolvidas na campanha de Trump e exportadas para a extrema direita do mundo, o uso do troll, descrito também como a quantidade de tempo usada para intervir numa conversa e dinamitar as possibilidades de diálogo.
Os tempos em que as ideias dirigiam o mundo já estavam em declínio. Imaginem agora, em que forças políticas se dedicam à lacração ou atuam apenas para impedir qualquer consenso: sobre a forma da Terra, o perigo de um vírus, a importância da vacina. O processo de autodestruição, tão nítido no meio ambiente, é também assustador na trajetória democrática.
Escola para Todos
Nos últimos dias os educadores têm debatido quatro propostas: a) dispensar alunos de frequentarem escola para estudarem em casa, b) cobrar mensalidade dos estudantes das universidades federais porque eles são filhos de ricos, c) militarizar escolas para recuperar a disciplina e d) estender por 50 anos a adoção de cotas para ingresso no ensino superior. Estes debates dizem respeito a como evitar retrocessos para aqueles que já estão na escola, não se debate como erradicar o analfabetismo que atinge 12 milhões de adultos; nem qual estratégia para que a educação brasileira esteja entre as melhores do mundo e ricos e pobres, brancos e negros tenham acesso à escola com a mesma máxima qualidade; nem debatemos como recuperar a paz dentro das escolas, sem necessidade de militares; nem o que fazer para que os pais percebam as vantagens de seus filhos estudarem em escolas, aprendendo com outras crianças e com o mundo externo à família. O debate tem sido para evitar retrocessos, não para fazer avanços na combalida e desigual educação brasileira: de um lado, reacionários-conservadores que desejam impor retrocesso; de outro, progressistas-conservadores que não lutam por avanços: implantar um Sistema Único Público Nacional que ofereça educação com qualidade a máxima qualidade para todas nossas crianças.
Ficamos na defesa correta, mas insuficiente, das cotas para os poucos que terminam o ensino médio, sem olhar para a imensa perda dos que ficam para trás, sem educação de base com qualidade suficiente para se aventurar no vestibular, mesmo com a possibilidade de cotas. Defendemos corretamente que as cotas existam para reduzir o impacto da educação de base desigual, mas não nos mobilizamos para que ela seja a mesma para ricos e pobres, nem acreditamos que isto seja possível antes de 50 anos.
Acertamos ao nos opor ao retrocesso de limitar acesso às universidades federais apenas aos que podem pagar, mas não nos preocupamos com aqueles que nem perto chegarão dela, por serem analfabetos para as exigências do vestibular. Tampouco adotamos a honestidade intelectual de dizer que a universidade já é paga pela sociedade, não existe gratuidade plena, a pergunta devia ser “quem paga” e “quem se beneficia”, e como fazer a universidade servir aos interesses públicos e da nação. Estamos certos em não querer que a universidade seja apenas para quem possa pagar, mas estamos errados ao aceitar a manutenção de um sistema escolar com escolas de qualidade apenas para quem pode pagar caro.
Não lutamos pela gratuidade das escolas de educação de base com qualidade. Defendemos que as universidades sejam grátis, sem defender a gratuidade das escolas de ensino médio com qualidade. Defendemos que alguns poucos pobres possam entrar na universidade, mas não que todos eles concluam o ensino médio em escola com a mesma qualidade dos filhos dos ricos. Possivelmente, nem se acredita que isto seja necessário e possível.
Corretamente defendemos o direito das crianças de famílias ricas e de classe média frequentarem escola para aprenderem com outras crianças, mas pouco fazemos para que as crianças pobres tenham escola com a qualidade que os filhos destas famílias terão em casa. Nem nos preocupamos em saber onde estamos errando ao ponto dos pais desejarem tirar os filhos da escola.
Reagimos ao absurdo de ocupar as escolas com militares, mas não reconhecemos os erros que cometemos ao tolerar a indisciplina, devido a erros pedagógicos, dominação sindical, desprezo à educação por parte de governos e educadores. Não apresentamos, não lutamos nem praticamos métodos que deixem a escola funcionar ordeira e respeitosamente, sem necessidade de ocupação militar.
Ao observar este debate, percebemos que no Brasil o progressista é conservador: defende conceitos arraigados, interesses sindicais e eleitorais, e direitos adquiridos pelos que já têm acesso à educação, ignorando os excluídos que vão ficando abandonados.
Ficamos na defesa correta, mas insuficiente, das cotas para os poucos que terminam o ensino médio, sem olhar para a imensa perda dos que ficam para trás, sem educação de base com qualidade suficiente para se aventurar no vestibular, mesmo com a possibilidade de cotas. Defendemos corretamente que as cotas existam para reduzir o impacto da educação de base desigual, mas não nos mobilizamos para que ela seja a mesma para ricos e pobres, nem acreditamos que isto seja possível antes de 50 anos.
Acertamos ao nos opor ao retrocesso de limitar acesso às universidades federais apenas aos que podem pagar, mas não nos preocupamos com aqueles que nem perto chegarão dela, por serem analfabetos para as exigências do vestibular. Tampouco adotamos a honestidade intelectual de dizer que a universidade já é paga pela sociedade, não existe gratuidade plena, a pergunta devia ser “quem paga” e “quem se beneficia”, e como fazer a universidade servir aos interesses públicos e da nação. Estamos certos em não querer que a universidade seja apenas para quem possa pagar, mas estamos errados ao aceitar a manutenção de um sistema escolar com escolas de qualidade apenas para quem pode pagar caro.
Não lutamos pela gratuidade das escolas de educação de base com qualidade. Defendemos que as universidades sejam grátis, sem defender a gratuidade das escolas de ensino médio com qualidade. Defendemos que alguns poucos pobres possam entrar na universidade, mas não que todos eles concluam o ensino médio em escola com a mesma qualidade dos filhos dos ricos. Possivelmente, nem se acredita que isto seja necessário e possível.
Corretamente defendemos o direito das crianças de famílias ricas e de classe média frequentarem escola para aprenderem com outras crianças, mas pouco fazemos para que as crianças pobres tenham escola com a qualidade que os filhos destas famílias terão em casa. Nem nos preocupamos em saber onde estamos errando ao ponto dos pais desejarem tirar os filhos da escola.
Reagimos ao absurdo de ocupar as escolas com militares, mas não reconhecemos os erros que cometemos ao tolerar a indisciplina, devido a erros pedagógicos, dominação sindical, desprezo à educação por parte de governos e educadores. Não apresentamos, não lutamos nem praticamos métodos que deixem a escola funcionar ordeira e respeitosamente, sem necessidade de ocupação militar.
Ao observar este debate, percebemos que no Brasil o progressista é conservador: defende conceitos arraigados, interesses sindicais e eleitorais, e direitos adquiridos pelos que já têm acesso à educação, ignorando os excluídos que vão ficando abandonados.
Racismo no Brasil: tragédia pouca é bobagem
Violência contra os yanomami, chacina na Vila Cruzeiro, morte por asfixia em abordagem policial. O racismo segue sendo o sistema de poder que organiza o Brasil, no qual a vida de não brancos tem pouco ou nenhum valor.
Minha ideia era dedicar a coluna deste mês à insistência do nosso país em silenciar tudo o que diga respeito aos indígenas – homens, mulheres e crianças que são descendentes dos povos originários desta terra que hoje se chama Brasil. A ideia era tratar de duas situações distintas, mas que comprovam como as violências contra as populações indígenas são múltiplas e se sobrepõem.
A primeira diz respeito à denúncia de um crime feita em 25 de abril: uma jovem yanomami de 12 anos teria sido estuprada até a morte por garimpeiros que invadiram ilegalmente a região de Waikás, em Roraima. Na realidade, o estupro seguido de morte não teria sido o único crime cometido pelos garimpeiros naquele dia, que também teriam lançado no rio uma criança de 3 anos.
Ainda que o grau de violência desses atos seja indivisível, ou justamente por causa disso, era de se esperar que a grande mídia parasse o quer que estivesse fazendo para não só denunciar, como exigir as medidas cabíveis dos órgãos responsáveis pela Justiça brasileira. Mas, o que tivemos, foram algumas matérias, de veículos mais progressistas, que denunciaram o ocorrido, sem que houvesse qualquer repercussão mais forte. Afinal, tratava-se apenas uma jovem yanomami supostamente estuprada até a morte e de uma criança da mesma etnia jogada num rio em Roraima… Se a situação tivesse acontecido em algum bairro da zona Sul do Rio de Janeiro ou da zona oeste de São Paulo com jovens e crianças brancos e de classe média, talvez a dor fosse maior.
Menos de um mês depois, no dia 17 de maio, a antropóloga Sandra Benites enviou uma carta de demissão ao Museu de Arte de São Paulo (Masp) – um dos mais importantes museus brasileiros. Ela era curadora adjunta do museu e estava assinando sua primeira exposição autoral na instituição. E mais: Benites foi a primeira curadora indígena do país, o que fazia do projeto que estava organizando algo muito maior do que ela e o próprio Masp.
No entanto, as instâncias superiores do museu decidiram excluir um conjunto fotográfico que comporia a exposição. De acordo com o Masp, a solicitação das fotografias havia ocorrido fora do prazo estipulado – prazo este que nunca foi devidamente comunicado justamente à curadora da exposição. Poderia até se tratar de um problema de comunicação, não fosse o pequeno detalhe de que as fotografias excluídas eram sobre pessoas ligadas ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e fariam parte de um núcleo expositivo intitulado "Retomadas".
O recado estava dado: exposição assinada por indígena até pode (inclusive pega bem), mas indígena trazendo integrantes do MST para o centro da mostra "Histórias Brasileiras", aí já é demais!
Sandra Benites não se curvou aos limites que lhe impuseram e fez o que uma mulher indígena comprometida com uma agenda realmente transformadora poderia fazer: se desligou da instituição.
Mas, como eu disse, falar sobre os silenciamentos e assassinatos de indígenas brasileiros era a ideia original desta coluna. No meio do caminho, alguns policiais do Rio de Janeiro atacaram o memorial construído na favela do Jacarezinho em homenagem às pessoas mortas na mais letal chacina da história da cidade – um memorial que, vale dizer, também homenageava um dos policiais mortos. Uma ação covarde, sem nenhuma validação legal, e que nos lembra de como o controle da memória também é uma forma de exercício de poder. E que, muitas e muitas vezes, esse exercício se dá de forma violenta.
Só que no Brasil, tragédia pouca é bobagem. Não basta destruir memoriais e tentar controlar o que se lembra e o que se busca esquecer. A violência não tem limites.
Na terça-feira, a polícia do Rio de Janeiro protagonizou mais uma chacina numa favela, agora na Vila Cruzeiro, deixando 23 mortos. Uma ação que vem sendo retratada pela grande mídia como uma operação planejada pelo estado do Rio de Janeiro, na qual algumas baixas já eram esperadas. A mesma mídia que, vale dizer, não deu à mínima para a denúncia do assassinato da jovem yanomami.
Na quarta-feira, exatamente dois anos depois que George Floyd foi assassinado por policiais nos EUA, Genivaldo de Jesus Santos foi morto por asfixia pela polícia rodoviária em Sergipe
Pode parecer que não, mas todos os casos aqui descritos fazem parte de um mesmo sistema de poder, que historicamente organiza o Brasil. E o nome dele é RACISMO. A vida de pessoas não brancas, a memória de pessoas não brancas, a autoria de pessoas não brancas continua tendo pouco ou nenhum valor. Enquanto não tomarmos o racismo pelo tamanho que ele tem, o antirracismo continuará podendo ser tomado como uma ação piedosa e arbitrária – sujeita aos modismos de época – de quem goza os privilégios gerados pelo próprio racismo.
Minha ideia era dedicar a coluna deste mês à insistência do nosso país em silenciar tudo o que diga respeito aos indígenas – homens, mulheres e crianças que são descendentes dos povos originários desta terra que hoje se chama Brasil. A ideia era tratar de duas situações distintas, mas que comprovam como as violências contra as populações indígenas são múltiplas e se sobrepõem.
A primeira diz respeito à denúncia de um crime feita em 25 de abril: uma jovem yanomami de 12 anos teria sido estuprada até a morte por garimpeiros que invadiram ilegalmente a região de Waikás, em Roraima. Na realidade, o estupro seguido de morte não teria sido o único crime cometido pelos garimpeiros naquele dia, que também teriam lançado no rio uma criança de 3 anos.
Ainda que o grau de violência desses atos seja indivisível, ou justamente por causa disso, era de se esperar que a grande mídia parasse o quer que estivesse fazendo para não só denunciar, como exigir as medidas cabíveis dos órgãos responsáveis pela Justiça brasileira. Mas, o que tivemos, foram algumas matérias, de veículos mais progressistas, que denunciaram o ocorrido, sem que houvesse qualquer repercussão mais forte. Afinal, tratava-se apenas uma jovem yanomami supostamente estuprada até a morte e de uma criança da mesma etnia jogada num rio em Roraima… Se a situação tivesse acontecido em algum bairro da zona Sul do Rio de Janeiro ou da zona oeste de São Paulo com jovens e crianças brancos e de classe média, talvez a dor fosse maior.
Menos de um mês depois, no dia 17 de maio, a antropóloga Sandra Benites enviou uma carta de demissão ao Museu de Arte de São Paulo (Masp) – um dos mais importantes museus brasileiros. Ela era curadora adjunta do museu e estava assinando sua primeira exposição autoral na instituição. E mais: Benites foi a primeira curadora indígena do país, o que fazia do projeto que estava organizando algo muito maior do que ela e o próprio Masp.
No entanto, as instâncias superiores do museu decidiram excluir um conjunto fotográfico que comporia a exposição. De acordo com o Masp, a solicitação das fotografias havia ocorrido fora do prazo estipulado – prazo este que nunca foi devidamente comunicado justamente à curadora da exposição. Poderia até se tratar de um problema de comunicação, não fosse o pequeno detalhe de que as fotografias excluídas eram sobre pessoas ligadas ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e fariam parte de um núcleo expositivo intitulado "Retomadas".
O recado estava dado: exposição assinada por indígena até pode (inclusive pega bem), mas indígena trazendo integrantes do MST para o centro da mostra "Histórias Brasileiras", aí já é demais!
Sandra Benites não se curvou aos limites que lhe impuseram e fez o que uma mulher indígena comprometida com uma agenda realmente transformadora poderia fazer: se desligou da instituição.
Mas, como eu disse, falar sobre os silenciamentos e assassinatos de indígenas brasileiros era a ideia original desta coluna. No meio do caminho, alguns policiais do Rio de Janeiro atacaram o memorial construído na favela do Jacarezinho em homenagem às pessoas mortas na mais letal chacina da história da cidade – um memorial que, vale dizer, também homenageava um dos policiais mortos. Uma ação covarde, sem nenhuma validação legal, e que nos lembra de como o controle da memória também é uma forma de exercício de poder. E que, muitas e muitas vezes, esse exercício se dá de forma violenta.
Só que no Brasil, tragédia pouca é bobagem. Não basta destruir memoriais e tentar controlar o que se lembra e o que se busca esquecer. A violência não tem limites.
Na terça-feira, a polícia do Rio de Janeiro protagonizou mais uma chacina numa favela, agora na Vila Cruzeiro, deixando 23 mortos. Uma ação que vem sendo retratada pela grande mídia como uma operação planejada pelo estado do Rio de Janeiro, na qual algumas baixas já eram esperadas. A mesma mídia que, vale dizer, não deu à mínima para a denúncia do assassinato da jovem yanomami.
Na quarta-feira, exatamente dois anos depois que George Floyd foi assassinado por policiais nos EUA, Genivaldo de Jesus Santos foi morto por asfixia pela polícia rodoviária em Sergipe
Pode parecer que não, mas todos os casos aqui descritos fazem parte de um mesmo sistema de poder, que historicamente organiza o Brasil. E o nome dele é RACISMO. A vida de pessoas não brancas, a memória de pessoas não brancas, a autoria de pessoas não brancas continua tendo pouco ou nenhum valor. Enquanto não tomarmos o racismo pelo tamanho que ele tem, o antirracismo continuará podendo ser tomado como uma ação piedosa e arbitrária – sujeita aos modismos de época – de quem goza os privilégios gerados pelo próprio racismo.
O bicho invisível
Recebi uma visita indesejável. Entrou na minha casa sem pedir licença. Esfregou na minha cara um lacônico teste laboratorial: Detectado. COVID – Detecção qualitativa de Coronavírus (2019-nCov).
Surpreso? Claro. Sempre fui classificado como um sujeito frouxo e, por isso, exagerado na luta contra a COVID. Tomei as quatro doses das vacinas; álcool gel do bolso para as mãos; máscara no rosto até para caminhar na Jaqueira, contrariando a função do ar livre que dispersa, segundo os cientistas, a formação da quadrilha virótica.
Medo? Sim, todos os medos, e uma questão de princípio: a paz, detesto brigar, imagine, brigar com quem não vejo, o bicho invisível chamado vírus. Fui confortado pela voz carinhosa de médicos, parentes e amigos. “Tranquilo, vacinado, sintomas leves – diziam os mais afoitos, fortes ou corajosos – já tive”. Tradução: amigo, disso você não morre. Mas seguirei “exagerado”.
Na melhor intenção, repasso a experiência: sintomas leves? Comparado a quê? Na média, uma garganta em chamas com saliva/sabor de gasolina e três noites em claro, acrescidas de severo congestionamento nasal, não é absolutamente nada, se comparado a problemas respiratórios, febre, e outros agravamentos dos quais os vacinados estão protegidos. Vivam as vacinas!
Nenhuma reclamação. Tenho consciência da minha situação privilegiada. Aí dói na alma a dura constatação de que a maior das pandemias – a pobreza extrema – é de natureza política. O corona dói e mata mais os que estão em situação de vulnerabilidade social. A ciência avança, a riqueza cresce mas seus benefícios são desigualmente distribuídos.
Quando olho para Davos, fica a impressão de que, nos últimos dois anos, nada mudou, senão desigualdades: 263 milhões de pessoas em extrema pobreza em contraste com 573 novos bilionários cujos patrimônios tiveram alta de 42% – aumento real de US$ 3,78 trilhões.
No famoso cantão suíço de Davos, a saúde dos ilustres participantes foi objeto dos cuidados preventivos em relação aos riscos da contaminação pandêmica. Todos foram submetidos a um esquema diário de testes e exames. O bicho invisível ataca, também, os poderosos.
Fica a lição. A dinâmica devastadora dos desastres globais exige profunda reflexão sobre destino da humanidade. Enfrentar o incerto e o desconhecido requer virtuosa convergência tal como se coloca o médico diante de uma doença misteriosa: com a ciência, sabendo que não sabe; com a consciência de que o humano é, por natureza, frágil; com a virtude da paciência que enxerga, dia após dia, a melhor maneira de superar desafios e solucionar problemas.
Surpreso? Claro. Sempre fui classificado como um sujeito frouxo e, por isso, exagerado na luta contra a COVID. Tomei as quatro doses das vacinas; álcool gel do bolso para as mãos; máscara no rosto até para caminhar na Jaqueira, contrariando a função do ar livre que dispersa, segundo os cientistas, a formação da quadrilha virótica.
Medo? Sim, todos os medos, e uma questão de princípio: a paz, detesto brigar, imagine, brigar com quem não vejo, o bicho invisível chamado vírus. Fui confortado pela voz carinhosa de médicos, parentes e amigos. “Tranquilo, vacinado, sintomas leves – diziam os mais afoitos, fortes ou corajosos – já tive”. Tradução: amigo, disso você não morre. Mas seguirei “exagerado”.
Na melhor intenção, repasso a experiência: sintomas leves? Comparado a quê? Na média, uma garganta em chamas com saliva/sabor de gasolina e três noites em claro, acrescidas de severo congestionamento nasal, não é absolutamente nada, se comparado a problemas respiratórios, febre, e outros agravamentos dos quais os vacinados estão protegidos. Vivam as vacinas!
Nenhuma reclamação. Tenho consciência da minha situação privilegiada. Aí dói na alma a dura constatação de que a maior das pandemias – a pobreza extrema – é de natureza política. O corona dói e mata mais os que estão em situação de vulnerabilidade social. A ciência avança, a riqueza cresce mas seus benefícios são desigualmente distribuídos.
Quando olho para Davos, fica a impressão de que, nos últimos dois anos, nada mudou, senão desigualdades: 263 milhões de pessoas em extrema pobreza em contraste com 573 novos bilionários cujos patrimônios tiveram alta de 42% – aumento real de US$ 3,78 trilhões.
No famoso cantão suíço de Davos, a saúde dos ilustres participantes foi objeto dos cuidados preventivos em relação aos riscos da contaminação pandêmica. Todos foram submetidos a um esquema diário de testes e exames. O bicho invisível ataca, também, os poderosos.
Fica a lição. A dinâmica devastadora dos desastres globais exige profunda reflexão sobre destino da humanidade. Enfrentar o incerto e o desconhecido requer virtuosa convergência tal como se coloca o médico diante de uma doença misteriosa: com a ciência, sabendo que não sabe; com a consciência de que o humano é, por natureza, frágil; com a virtude da paciência que enxerga, dia após dia, a melhor maneira de superar desafios e solucionar problemas.
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