segunda-feira, 30 de maio de 2022

O bicho invisível

Recebi uma visita indesejável. Entrou na minha casa sem pedir licença. Esfregou na minha cara um lacônico teste laboratorial: Detectado. COVID – Detecção qualitativa de Coronavírus (2019-nCov).

Surpreso? Claro. Sempre fui classificado como um sujeito frouxo e, por isso, exagerado na luta contra a COVID. Tomei as quatro doses das vacinas; álcool gel do bolso para as mãos; máscara no rosto até para caminhar na Jaqueira, contrariando a função do ar livre que dispersa, segundo os cientistas, a formação da quadrilha virótica.

Medo? Sim, todos os medos, e uma questão de princípio: a paz, detesto brigar, imagine, brigar com quem não vejo, o bicho invisível chamado vírus. Fui confortado pela voz carinhosa de médicos, parentes e amigos. “Tranquilo, vacinado, sintomas leves – diziam os mais afoitos, fortes ou corajosos – já tive”. Tradução: amigo, disso você não morre. Mas seguirei “exagerado”.

Na melhor intenção, repasso a experiência: sintomas leves? Comparado a quê? Na média, uma garganta em chamas com saliva/sabor de gasolina e três noites em claro, acrescidas de severo congestionamento nasal, não é absolutamente nada, se comparado a problemas respiratórios, febre, e outros agravamentos dos quais os vacinados estão protegidos. Vivam as vacinas!

Nenhuma reclamação. Tenho consciência da minha situação privilegiada. Aí dói na alma a dura constatação de que a maior das pandemias – a pobreza extrema – é de natureza política. O corona dói e mata mais os que estão em situação de vulnerabilidade social. A ciência avança, a riqueza cresce mas seus benefícios são desigualmente distribuídos.

Quando olho para Davos, fica a impressão de que, nos últimos dois anos, nada mudou, senão desigualdades: 263 milhões de pessoas em extrema pobreza em contraste com 573 novos bilionários cujos patrimônios tiveram alta de 42% – aumento real de US$ 3,78 trilhões.

No famoso cantão suíço de Davos, a saúde dos ilustres participantes foi objeto dos cuidados preventivos em relação aos riscos da contaminação pandêmica. Todos foram submetidos a um esquema diário de testes e exames. O bicho invisível ataca, também, os poderosos.

Fica a lição. A dinâmica devastadora dos desastres globais exige profunda reflexão sobre destino da humanidade. Enfrentar o incerto e o desconhecido requer virtuosa convergência tal como se coloca o médico diante de uma doença misteriosa: com a ciência, sabendo que não sabe; com a consciência de que o humano é, por natureza, frágil; com a virtude da paciência que enxerga, dia após dia, a melhor maneira de superar desafios e solucionar problemas.

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