quarta-feira, 21 de agosto de 2019

Quando se comemora a morte

Brasileiro, homem do amanhã

Há em nosso povo duas constantes que nos induzem a sustentar que o Brasil é o único país brasileiro de todo o mundo. Brasileiro até demais. Constituindo as colunas da brasilidade, as duas constantes, como todos sabem, são: 1) a capacidade de dar um jeito; 2) a capacidade de adiar.

A primeira é ainda escassamente conhecida, e muito menos compreendida, no estrangeiro; a segunda, no entanto, já anda bastante divulgada no exterior, sem que o corpo diplomático contribua direta ou sistematicamente para isso.

Aquilo que Oscar Wilde e Mark Twain diziam apenas por humorismo (nunca se fazer amanhã aquilo que se pode fazer depois de amanhã) não é no Brasil propriamente uma deliberada norma de conduta, uma diretriz de base. Não, é mais, é bem mais forte do que um princípio voluntarioso: é um instinto inelutável, uma força espontânea da estranha e surpreendente raça brasileira.

Para o brasileiro, os atos fundamentais da existência são: nascimento, reprodução, procrastinação e morte (esta última, se possível, também adiada).

Adiamos em virtude de um verdadeiro e inevitável estímulo, se me permitem, psicossomático. Trata-se de um reflexo condicionado, pelo qual, proposto um problema a um brasileiro, ele reage instantaneamente com as palavras: daqui a pouco; logo à tarde; só à noite; amanhã; segunda-feira.

Adiamos tudo, o bem e o mal, o bom e o mau, que não se confundem, pelo contrário, que tantas vezes se desemparelham. Adiamos o trabalho, o encontro, o almoço, o telefonema, o dentista, a conversa séria, o pagamento do imposto de renda, as férias, a reforma agrária, o seguro de vida, o exame médico, a visita de pêsames, o conserto do automóvel, o túnel para Niterói, a festa de aniversário da criança, as relações com a China, o pagamento da prestação, adiamos até o amor. Só a morte e a promissória são mais ou menos pontuais entre nós. Mesmo assim, há remédio para a promissória: o adiamento trimestral da reforma, uma instituição sacrossanta no Brasil. Quanto à morte, é de se lembrar dois poemas típicos do romantismo: na "Canção do exílio", Gonçalves Dias roga a Deus não permitir que ele morra sem que volte para lá, isto é, para cá; já Álvares de Azevedo tem aquele poema famoso cujo refrão é sintomaticamente brasileiro: "Se eu morresse amanhã!". Nem os românticos queriam morrer hoje.

Sim, adiamos por força de um incoercível destino nacional, do mesmo modo que, por força do destino, o francês poupa dinheiro, o inglês confia no "Times", o português espera o retorno de Dom Sebastião, o alemão trabalha com um furor disciplinado, o espanhol se excita diante da morte, o japonês esconde o pensamento e o americano usa gravatas insuportáveis.

O brasileiro adia; logo existe.

Como já disse, o conhecimento da nossa capacidade autóctone para a incessante delonga transpõe as fronteiras e o Atlântico. A verdade é que já está nos manuais. Ainda há pouco, lendo um livro francês sobre o Brasil, incluído numa coleção quase didática de viagens, achei no fim do volume algumas informações essenciais sobre nós e a nossa terra. Entre endereços de embaixadas e consulados, estatísticas, informações culinárias, o autor intercalou o seguinte tópico:
DES MOTSHier: ontemAujourd hui: hojeDemain: amanhãLe seul important est le dernier
A única palavra importante é amanhã. Esse francês malicioso agarrou-nos pela perna. O resto eu adio para a semana que vem.
Paulo Mendes Campos

Como esfacelar um país

Jair Bolsonaro tem projeto de governo, sim: o desmonte de instituições e princípios sólidos que ameacem a ele e a sua família. Receita Federal, Policia Federal, Ibama, Ancine, Coaf, Direitos Humanos. E por ai vai …

Do seu alvo fazia parte Sergio Moro. Como escudo. O ex-juiz, de quem se conhece o método nada republicano de julgar petistas, especialmente o ex-presidente Lula da Silva, está virando suco.

Faz parte também do projeto Bolsonaro o iluminado (forte ironia aqui) Paulo Guedes, que aprovou a reforma da previdência, mas experimenta crise econômica sem precedentes. Há recessão global, ministro.
No Brasil, a saída de capital externo da Bolsa de Valores tem sido constante. Semana passada bateu recorde, foi a maior desde 1996, quando a Bolsa deu inicio à série que acompanha o fluxo de capitais externos. Superou, inclusive, a de 2008, ano de crise econômica mundial. Dólar sobe. Bolsa recua.



O desemprego continua como chaga sem cura, abatendo famílias, velhos, moços, e crianças. Dá imensa tristeza ver centenas de empresas demitindo, ou lojas fechando suas portas pelas ruas de todo o país.

Disso Bolsonaro não fala. Está preocupado em proteger os filhotes. Nessa segunda, declarou guerra à Receita e à PF. O segundo homem da Receita foi exonerado, em meio a insatisfação generalizada de auditores fiscais. Será substituído por um conhecido da família.

Não se deve esquecer que os ministros do STF Dias Toffolli e Alexandre de Moraes contribuíram com o estilo Bolsonaro de demolição. Um, proibiu a investigação de 133 contribuintes com base em dados da Receita, outro determinou suspensão de processos em que dados bancários são compartilhados por órgãos de controle, COAF, por exemplo, sem autorização do judiciário. O de Flavio Bolsonaro, inclusive.

Como Moro não manda nada, nem como juiz, nem como ministro, assim ficou imune à investigação o filho 01. Um relatório do Coaf apontou estranha movimentação financeira de ex-assessor de Flávio, na Assembleia Legislativa do Rio (Alerj). Queiroz, o assessor, sumiu. Flavio segue, forte o suficiente para indicar o novo Procurador Geral da Republica.

No projeto de Bolsonaro, de aniquilação das instituições publicas, está a Policia Federal. Já há por lá um certo clima de revolta em meio a possíveis mudanças de nomes, também próximos a família Bolsonaro. Moro também já não tem voz ativa por lá. Bolsonaro quer substituir Ricardo Saadi, descontente com certas investigações na Superintendência da PF no Rio de Janeiro. Seria Queiroz?

Das metas de Bolsonaro, entre dezenas de retrocessos, está o aumento do desmatamento em beneficio de ruralistas, e a volta da maldita censura. O capitão, no seu melhor estilo desmiolado, agrediu os governos da Alemanha e Noruega, para anunciar seu desprezo pela contribuição dos dois países para a preservação da amazônia.

Quanto à censura, Bolsonaro mostrou-se, como sempre, preocupado com a tradição, família e propriedade (outra ironia), e avisou: nenhum filme que trate de “sexualidade” terá recursos da Ancine. 

Onde isso vai acabar? Quando vai acabar? Como vai acabar? Impeachment? Renúncia? Quem souber, estará mentindo. A única certeza que se tem é que esse governo infernal não pode dar certo. Bolsonaro governa pelo retrovisor. Dono absoluto de seus podres poderes. Destruidor.

Excluídos

Num hospital militar, a mais de cento e cinquenta quilômetros de distância, os medicamentos gotejavam, penetrando nas veias de um senhor idoso. Ao seu redor, as pessoas se felicitam pelo sucesso do transplante. E, em Rio Lamacento, em outro hospital com muito mais pacientes e menos médicos e enfermeiras, a sra. G estava sentada e cochilava ao som do soro que ia sendo injetado no braço do marido. De vez em quando, acordava e fitava o rosto do professor, encovado e, de uma hora para outra, tão envelhecido que a mulher tinha dificuldade em reconhecê-lo
Yiyun Li, "Os excluídos"

Sem o SUS, é a barbárie

“Sem o SUS, é a barbárie.” A frase não é minha, mas traduz o que penso. Foi dita por Gonzalo Vecina, da Faculdade de Saúde Pública da USP, um dos sanitaristas mais respeitados entre nós, numa mesa redonda sobre os rumos do SUS, na Fundação Fernando Henrique Cardoso.

Estou totalmente de acordo com ela, pela simples razão de que pratiquei medicina por 20 anos antes da existência do SUS.

Talvez você não saiba que, naquela época, só os brasileiros com carteira assinada tinham direito à assistência médica, pelo antigo INPS. Os demais pagavam pelo atendimento ou faziam fila na porta de meia dúzia de hospitais públicos espalhados pelo país ou dependiam da caridade alheia, concentrada nas santas casas de misericórdia e em algumas instituições religiosas.

Eram enquadrados na indigência social os trabalhadores informais, os do campo, os desempregados e as mulheres sem maridos com direito ao INPS. As crianças não tinham acesso a pediatras e recebiam uma ou outra vacina em campanhas bissextas organizadas nos centros urbanos, de preferência em períodos eleitorais.

Então, 30 anos atrás, um grupo de visionários ligados à esquerda do espectro político defendeu a ideia de que seria possível criar um sistema que oferecesse saúde gratuita a todos os brasileiros. Parecia divagação de sonhadores.

Ao saber que se movimentavam nos corredores do Parlamento, para convencer deputados e senadores da viabilidade do projeto, achei que levaríamos décadas até dispor de recursos financeiros para a implantação de políticas públicas com tal alcance.

Menosprezei a determinação, o compromisso com a justiça social e a capacidade de convencimento desses precursores. Em 1988, escrevemos na Constituição: “Saúde é direito do cidadão e dever do Estado”.

Por incrível que pareça, poucos brasileiros sabem que o Brasil é o único país com mais de 100 milhões de habitantes que ousou levar assistência médica gratuita a toda a população.

Falamos com admiração dos sistemas de saúde da Suécia, da Noruega, da Alemanha, do Reino Unido, sem lembrar que são países pequenos, organizados, ricos, com tradição de serviços de saúde pública instalados desde o fim da Segunda Guerra Mundial.

Sem menosprezá-los, garantir assistência médica a todos em lugares com essas características é brincadeira de criança perto do desafio de fazê-lo num país continental, com 210 milhões de habitantes, baixo nível educacional, pobreza, miséria e desigualdades regionais e sociais das dimensões das nossas.

Para a maioria dos brasileiros, infelizmente, a imagem do SUS é a do pronto-socorro com macas no corredor, gente sentada no chão e fila de doentes na porta. Tamanha carga de impostos para isso, reclamam todos.

Esquecem-se de que o SUS oferece gratuitamente o maior programa de vacinações e de transplantes de órgãos do mundo. Nosso programa de distribuição de medicamentos contra a Aids revolucionou o tratamento da doença nos cinco continentes. Não percebem que o resgate chamado para socorrer o acidentado é do SUS, nem que a qualidade das transfusões de sangue nos hospitais de luxo é assegurada por ele.

Nossa Estratégia Saúde da Família, com agentes comunitários em equipes multiprofissionais que já atendem de casa em casa dois terços dos habitantes, é citada pelos técnicos da Organização Mundial da Saúde como um dos mais importantes do mundo.

Pouquíssimos têm consciência de que o SUS é, disparado, o maior e o mais democrático programa de distribuição de renda do país. Perto dele, o Bolsa Família não passa de pequena ajuda. Enquanto investimos no SUS cerca de R$ 270 bilhões anuais, o orçamento do Bolsa Família mal chega a 10% disso.

Os desafios são imensos. Ainda nem nos livramos das epidemias de doenças infecciosas e parasitárias e já enfrentamos os agravos que ameaçam a sobrevivência dos serviços de saúde pública dos países mais ricos: envelhecimento populacional, obesidade, hipertensão, diabetes, doenças cardiovasculares, câncer, degenerações neurológicas.

Ao SUS faltam recursos e gestão competente para investi-los de forma que não sejam desperdiçados, desviados pela corrupção ou para atender a interesses paroquiais e, sobretudo, continuidade administrativa. Nos últimos dez anos tivemos 13 ministros da Saúde.

Apesar das dificuldades, estamos numa situação incomparável à de 30 anos atrás. Devemos defender o SUS e nos orgulhar da existência dele.
Drauzio Varella

Paisagem brasileira

Mangueira, a outra face da turística Paraty (RJ)

Quando o presidente diz que te odeia

O presidente não apenas te odeia. Ele diz que te odeia. O ódio do presidente não é um ódio qualquer. É o ódio do presidente. O vilipêndio verbal possui pedigree eleitoral e um bando de apoiadores dispostos a realizar os íntimos desejos do capitão. É público, declarado e repetido. Move as máquinas do Estado e excita o Johnny Bravo da esquina (o bolsonarista da esquina com menos senso do ridículo e autoestima fora do lugar).

Poucas palavras são tão capazes de produzir efeitos de grande escala no mundo, para o bem ou para o mal, quanto a palavra de chefe de Estado. Compete, no máximo, com a palavra de um líder religioso. No Brasil, para teu azar, líderes religiosos que cultivam o ódio anticristão em nome de Cristo também deram as mãos ao presidente. Têm sido bem pagos para te odiar. O ódio está treinado, entrosado e ensaiado. Contra você.


Antes de sair de casa, você, mulher, negra, homossexual, nordestina, macumbeira, indígena, moradora do morro, da periferia ou da floresta, professora, estudante, cientista, jornalista, ou qualquer liberal mal comportada com ideias dissonantes, com expectativa de ser livre, viver numa sociedade plural e exercer oposição num jogo democrático, proteja-se. Quando a pronúncia cotidiana do ódio contra a tua pessoa se torna política de governo, melhor olhar bem o que vai vestir, o que vai dizer, como vai se portar, onde vai frequentar. Pensa bem no que vai postar. Toma cuidado com quem andas, disfarça teus trejeitos. A liberdade vai ficar para outro dia.

“A eleição acabou, porra! Vamos entender isso?” Precisamos mesmo entender. Bolsonaro interpreta o significado do voto que recebeu de 39% do eleitorado como uma licença bastante singular. Imagina se fosse 50% mais 1, e ele pudesse afirmar que fala pela “maioria”. Os manuais de história e de política dão nome para essa vocação, mas os manuais de etiqueta pública ainda optam pelo recato numa hora dessas.

Na Marcha para (desespero de) Jesus, gritou que gênero “é coisa do capeta”. Ao defender o direito de policial atirar sem limites legais, justificou que “os caras vão morrer na rua igual barata”. A “barata” inspira-se na retórica do genocídio ruandês. O “capeta” simboliza você sabe o quê.

A filósofa Lynne Tirrell, autora do artigo "Genocidal language games" ("Jogos de linguagem genocida", em tradução livre), relata como as políticas linguísticas pós-genocídio de Ruanda tentaram dar resposta às letais divisões provocadas pelo discurso antitútsi. Na Ruanda de 1994, dizer “ela é uma tútsi” expedia licença para matar. Hoje não se permite chamar tútsis de “barata”. Assumiram um “compromisso expressivo” fundamental: “Aqui não falamos mais assim”.

A relatora da ONU sobre intolerância, T. Achiume, mostra que palavras desse tipo são “chamados à ação” e tornam esses indivíduos “cúmplices da violência”. Levitsky e Ziblatt argumentam que “falas violentas, no mínimo, encorajam a violência do lobo solitário”. “O poder retórico manipula nossas atitudes”, explica Jason Stanley. Diante dos crimes de intolerância que seguem os discursos de Trump nos Estados Unidos, Leonhardt, no New York Times, constatou ser necessário “muito esforço para convencer a si mesmo de que seja só uma grande coincidência”. Feinberg, Branton e Martinez-Ebers usaram técnicas estatísticas para correlacionar o aumento de 226% dos crimes de intolerância nas cidades onde Trump realiza comícios. Não foi “uma grande coincidência”.

Em livro sobre a linguagem do Terceiro Reich, Victor Klemperer escreveu que “palavras podem ser como pequenas doses de arsênico: parecem não ter efeito, mas depois de um tempo vem a reação tóxica”. A filosofia da linguagem também mostra como as palavras ditas por certas autoridades (um presidente, um juiz etc.), para além do conteúdo que comunicam, têm “força ilocucionária”, ou seja, produzem outros efeitos materiais. Por isso que a tua quebra de decoro, para o Direito, é irrelevante, mas a de algumas autoridades é crime de responsabilidade.

Será a escatologia verbal de Bolsonaro uma “cortina de fumaça” para desviar a atenção de reformas econômicas impopulares? Ou serão Guedes e sua equipe um verniz grosseiro para disfarçar o núcleo da submediocridade ministerial formado por Weintraub, Damares e Araújo, ou Salles, Terra e Tereza Cristina, pagos para o serviço grotesco? Se você é branco, heterossexual, sudestino, morador de área nobre e temente a Deus, talvez esse dilema existencial não lhe desperte interesse, ainda que nos diga respeito. Não será mera coincidência.
Conrado Hübner Mendes

Shutdown à moda da casa

A expressão “shutdown”, já familiar nos Estados Unidos, começa a tirar o sono de integrantes do governo brasileiro. Trata-se da paralisação da administração pública, como resultado de travas no orçamento. Cercado de suspense, o shutdown abalou a gestão Obama, repetiu-se por duas vezes na era Trump e, como, nesses últimos tempos, tudo que acontece nos Estados Unidos acaba servindo de exemplo para o Brasil, já tem gente temendo que ele também chegue por aqui (atenção: contém ironia).


O próprio Bolsonaro admitiu, na sexta-feira, que a falta de dinheiro está deixando os ministros “apavorados” e o Exército será forçado a trabalhar em regime de meio expediente, além de dispensar um terço dos recrutas. Mas não é só o Exército que enfrenta sufoco financeiro. Faltam recursos para pesquisa e até para atividades básicas nas universidades. Embora a declaração oficial seja de um corte linear de gastos, persiste a desconfiança de que as decisões envolvam também critérios ideológicos. O ministro das Ciências e Tecnologia, Marcos Pontes, alertou para o risco de calote nas bolsas de pesquisa, já em setembro. A UFRJ ameaça suspender as aulas, por não conseguir cobrir os gastos com segurança, iluminação e até com limpeza. E providências semelhantes estão em discussão em várias das 63 universidades federais.

As queixas de falta de dinheiro espalham-se por toda a Esplanada dos ministérios e chegam ao Congresso, onde parlamentares cobram o cumprimento das promessas feitas pelo Planalto, quando foram convencidos a apoiar a reforma da Previdência, em troca da liberação de cargos e emendas – foram mais de R$ 4 bilhões em emendas desde o desembarque da proposta da nova Previdência na Câmara, em março. Numa verdadeira “volta do parafuso”, a solução encontrada para honrar esses compromissos com o Congresso foi pedir ao próprio Congresso um crédito suplementar de R$ 3 bilhões. Diante do quadro de penúria, parece até pouco significativa a suspensão da emissão de passaportes pela Polícia Federal, em meados de 2017, num episódio visto à época como prenúncio de um shutdown.

Fatos, obviamente, são sempre mais eloquentes do que números. Por mais que técnicos venham advertindo há tempos que o Brasil caminha para o colapso, se não encarar uma reestruturação das contas públicas para valer, começando com a reforma da Previdência. Fatos põem às claras o que manobras contábeis tendem a esconder. No Brasil dos últimos anos, o que se tem feito, em matéria de ajuste fiscal, é preferencialmente na linha de "cortar gasto aqui para cobrir ali o cheque especial ou o cartão de crédito". E, dessa forma, chegar ao fim do exercício dentro das metas fiscais.

Segundo a Instituição Fiscal Independente (IFI), órgão ligado ao Senado, as contas do Governo Central devem fechar 2019 com um déficit primário nas proximidades dos R$ 139 bilhões previamente fixados pelo governo. Nas projeções dos analistas de mercado reunidas no boletim Prisma Fiscal, o rombo pode ser ainda menor, de R$ 103 bilhões, mas tudo indica que esse desempenho leva em conta recursos do leilão dos excedentes da cessão onerosa do pré-sal – e não é garantida a entrada do dinheiro nos cofres da União ainda dentro do atual exercício.

Além disso, o governo vem recorrendo com intensidade ao contingenciamento de verbas para não perder a mão no Orçamento. Até agora, foram bloqueados R$ 34,2 bilhões, um quarto dos gastos não obrigatórios previstos para 2019 – e é esse aperto que acaba desembocando, no limite, em situações como a da falta de material de limpeza na UFRJ. Enquanto o presidente se “distrai” com no mínimo um embate por semana, das provocações aos governos da Alemanha e da Noruega, em razão das punições para os desmandos da política ambiental, às intervenções na Polícia Federal, a administração pública anda aos solavancos. Um shutdown à moda da casa, com interrupções de alguns serviços básicos, não está descartado. Assim, não há atividade econômica que resista.

Se soubessem...

Se soubessem o que poderia acontecer num país chamado Brasil, talvez não tivessem saído da caverna....
Josias de Souza

Brasil vive um clima de pré-nazismo enquanto a oposição emudece

O Brasil está vivendo, segundo analistas nacionais e internacionais, um clima político de pré-nazismo, enquanto a oposição progressista e democrática brasileira parece muda. Somente nos últimos 30 dias, de acordo com reportagem do jornal O Globo, o presidente Jair Bolsonaro proferiu 58 insultos dirigidos a 55 alvos diferentes da sociedade, dos políticos e partidos, das instituições, da imprensa e da cultura.

E à oposição ensimesmada, que pensa que o melhor é deixar que o presidente extremista se desgaste por si mesmo, ele acaba de lhes responder que “quem manda no Brasil” é ele e, mais do que se desfazer, cresce cada dia mais e nem os militares parecem capazes de parar seus desacatos às instituições.

Há quem acredite que o Brasil vive um clima de pré-fascismo, mas os historiadores dos movimentos autoritários preferem analisá-lo à luz do nazismo de Hitler. Lembram que o fascismo se apresentou no começo como um movimento para modernizar uma Itália empobrecida e fechada ao mundo. De modo que uma figura como Marinetti, autor do movimento futurista, acabou se transformando em um fervoroso seguidor de Mussolini que terminou por arrastar seu país à guerra.

O nazismo foi outra coisa. Foi um movimento de purga para tornar a Alemanha uma raça pura. Assim sobraram todos os diferentes, estrangeiros e indesejados, começando pelos judeus e os portadores de defeitos físicos que prejudicavam a raça. De modo que o nazismo se associa ao lúgubre vocábulo “deportação”, que evoca os trens do horror de homens, mulheres e crianças amontoados como animais a caminho dos campos de extermínio.

Talvez a lúgubre recordação de minha visita em junho de 1979 ao campo de concentração de Auschwitz com o papa João Paulo II tenha me feito ler com terror a palavra “deportação” usada em um decreto do ministro da Justiça de Bolsonaro, o ex-juiz Sérgio Moro, em que ele defenda que sejam “deportados” do Brasil os estrangeiros considerados perigosos.

Bolsonaro, em seus poucos meses de Governo, já deixou claro que em sua política de extrema direita, autoritária e com contornos nazistas, cabem somente os que se submetem às suas ordens. Todos os outros atrapalham. Para ele, por exemplo, todos os tachados de esquerda seriam os novos judeus que deveriam ser exterminados, começando por retirá-los dos postos que ocupam na administração pública. Seu guru intelectual, Olavo de Carvalho, chegou a dizer que durante a ditadura 30.000 comunistas deveriam ter sido mortos e o presidente não teve uma palavra de repulsa. Ele mesmo já disse durante a campanha eleitoral que com ele as pessoas de esquerda deveriam se exilar ou acabariam na cadeia.

Inimigo dos defensores dos direitos humanos, dos quais o governador do Rio, Witzel, no mais puro espírito bolsonarista, chegou a afirmar que são os culpados pelas mortes violentas nas favelas, Bolsonaro mal suporta os diferentes como os indígenas, os homossexuais, os pacíficos que ousam lhe criticar. Odeia todos aqueles que não pensam como ele e, ao estilo dos melhores ditadores, é inimigo declarado da imprensa e da informação livre.

Sem dúvida, o Presidente tem o direito de dizer que foi escolhido nas urnas com 53% dos votos, que significaram 57 milhões de eleitores. Nesse sentido o problema não é seu. Os que votaram nele sabiam o que pensava, ainda que talvez considerassem seus desatinos de campanha como inócuos e puramente eleitoreiros. O problema, agora que se sabe a que ele veio, e que se permite insultar impunemente gregos e troianos começando pelas instituições bases da democracia, mais do que seu, é da oposição.

Essa oposição, que está muda e parece impotente e distraída, demonstra esquecer a lição da história. Em todos os movimentos autoritários do passado moderno, os grandes sacerdotes da violência começaram sendo vistos como algo inócuo. Como simples fanfarrões que ficariam somente nas palavras. Não foi assim e diante da indiferença, quando não da cumplicidade da oposição, acabaram criando holocaustos e milhões de mortos, de uma e outra vertente ideológica.

Somente os valores democráticos, a liberdade de expressão, o respeito às minorias e aos diferentes, principalmente dos mais frágeis, sempre salvaram o mundo das novas barbáries. De modo que o silêncio dos que deveriam defender a democracia pode acabar deixando o caminho aberto aos autoritários, que se sentem ainda mais fortes diante de tais silêncios.

Nunca existiram democracias sólidas, capazes de fazer frente aos arroubos autoritários, sem uma oposição igualmente séria e forte, que detenha na raiz as tentações autoritárias. Há países nos quais assim que se cria um governo oficial, imediatamente a oposição cria um governo fictício paralelo, com os mesmos ministros, encarregados de vigiar e controlar que os novos governantes sejam fieis ao que prometeram em suas campanhas e, principalmente, que não se desviem dos valores democráticos. Sem oposição, até os melhores governos acabarão prevaricando. E o grande erro das oposições, como vimos outras vezes também no Brasil, foi esperar que um presidente que começa a prevaricar e se corromper se enfraqueça sozinho. Ocorrerá o contrário. Crescerá em seu autoritarismo e quando a oposição adormecida perceber, estará derrotada e encurralada.

Nunca em muitos anos a imagem do Brasil no mundo esteve tão deteriorada e causando tantas preocupações como com essa presidência de extrema direita que parece um vendaval que está levando pelos ares as melhores essências de um povo que sempre foi amado e respeitado fora de suas fronteiras. Hoje no exterior não existe somente apreensão sobre o destino desse continente brasileiro, há também um medo real de que possa entrar em um túnel antidemocrático e de caça às bruxas que pode condicionar gravemente seu futuro. E já se fala de possíveis sanções ao Brasil por parte da Europa, em relação ao anunciado ataque ao santuário da Amazônia.

O Brasil foi forjado e misturado com o sangue de meio mundo que o fizeram mais rico e livre. Querer ressuscitar das tumbas as essências de morte do nazismo e fascismo, com a vã tentativa da busca da essência e pureza da brasilidade é uma tarefa inútil. Seria a busca de uma pureza que jamais poderá existir em um país tão rico em sua multiplicidade étnica, cultural e religiosa. Seria, além de uma quimera, um crime.

Urge que a oposição democrática e progressista brasileira desperte para colocar um freio nessa loucura que estamos vivendo e que os psicanalistas confirmam que está criando tantas vítimas de depressão ao sentirem-se esmagadas por um clima de medo e de quebra de valores que a nova força política realiza impunemente. Que a oposição se enrole em suas pequenezas partidárias e lute para ver quem vai liderar a oposição em um momento tão grave, além de mesquinho e perigoso é pueril e provinciano.

Há momentos na história de um país em que se os que deveriam defender os princípios da liberdade e da igualdade cruzam os braços diante da chegada da tirania, incapazes até de denunciá-la, amanhã pode ser tarde demais. E então de nada servirá chorar diante dos túmulos dos inocentes.