sexta-feira, 4 de maio de 2018

Outro lado dos problemas

Há quase um ano, a população do Distrito Federal sofre racionamento de água potável. A inauguração de um novo reservatório passa agora a sensação de fornecimento abundante pelos próximos 30 anos. Mas as mudanças climáticas podem deixar o novo açude vazio por falta de chuva; a falta de saneamento pode contaminar a água; e o aumento do consumo per capita, aliado ao aumento da população, pode provocar escassez, mesmo com maior oferta. A perenidade na disponibilidade depende também da educação do consumidor, para que ele entenda a dimensão planetária da crise hídrica e pratique um padrão austero de consumo. O problema da água tem duas pontas: hídrica e educacional.

Todos os demais problemas e desafios do Brasil passam por duas pontas.

O emprego só será criado se, de um lado, a economia fizer investimentos; mas emprego de qualidade exige educação do candidato. O aumento da riqueza nacional depende da retomada do crescimento econômico, mas, sem educação, a produtividade não se eleva e a pobreza social continua; e, se a educação não for de qualidade para todos, o problema da concentração da renda continuará. Hoje, temos o oitavo PIB do mundo, mas por falta de educação a produtividade é baixa. Estamos no 81º lugar na renda per capita e temos a décima pior concentração de renda. Graças sobretudo à educação, a Coreia do Sul tem o 14º PIB, mas é o 30º em renda per capita e tem a décima melhor distribuição de renda entre 157 países. O desemprego, a pobreza, a concentração de renda são problemas com duas pontas; a educação é uma delas.


A violência precisa ser enfrentada com polícia, justiça e cadeia, mas isso não resolverá o problema. Há 30 anos Darcy Ribeiro dizia: “Ou fazemos escolas hoje, ou teremos de fazer cadeias amanhã”. Só por meio da educação para todos será possível oferecer as mesmas oportunidades a cada brasileiro, sem necessidade de artifícios de sobrevivência fora da lei. A corrupção, que é praticada por doutores instruídos, precisa ser combatida com o fim do foro privilegiado e da impunidade para os eleitos, mas o mundo mostra que a corrupção cai substancialmente nos países onde todos os eleitores têm acesso à boa educação.

Todo problema tem duas pontas, e uma delas é a educação. Nisso está a dificuldade: porque o problema da educação também tem duas pontas. A ponta dos educadores, como fazer a escola ideal; e a ponta educacionista, como fazer todas as escolas com a mesma qualidade. Para cuidarmos do problema da educação, os eleitores e eleitos precisam antes ser educados. Esse paradoxo – para educar o Brasil é preciso que o Brasil já esteja educado – só será resolvido quando for eleito um presidente-estadista, capaz de ser educador de todo o nosso povo, transmitindo convicentemente a mensagem de que a solução de cada problema passa pela educação; convencendo o povo a aceitar fazer, ao longo de décadas, o esforço nacional necessário para garantir educação de qualidade para todos os brasileiros.

O Carandiru é aqui

Mal ficou sabendo que Raquel Dodge, Procuradora-Geral da República, encaminhara ao Supremo Tribunal Federal uma nova denúncia de corrupção contra Lula, Gleisi Hoffmann, presidente do PT, os ex-ministros Antonio Palocci e Paulo Bernardo, e o empresário Marcelo Odebrecht, o PT apressou-se em defendê-los antes mesmo de conhecer seu conteúdo.

A defendê-los, não. A defender Lula e Gleisi. Esqueceu Paulo Bernardo. Nada falou sobre Palocci e Odebrecht. Aproveitou para malhar Dodge, acusando-a de produzir uma denúncia sem provas, e de tentar sabotar os festejos de 1º de Maio marcados para dar hoje em Curitiba um pouco de alento a Lula.

Para o PT, Palocci não passava de um inocente até que, depois de preso, começou a delatar. Odebrecht, um poderoso e nacionalista empresário, interessado somente no bem do país. Paulo Bernardo não mereceu uma só crítica do PT mesmo quando se descobriu que ele embolsara parte do salário de trabalhadores endividados com empréstimos consignados.

Dodge já representou uma esperança de salvação para o PT e os demais partidos que apoiaram sua escolha para Procuradora-Geral da República. Afinal, fora indicada para o cargo por gente como Renan Calheiros, José Sarney e Michel Temer. Teve até a benção do ministro Gilmar Mendes. E era adversária de Rodrigo Janot, a quem sucedeu.

A julgar pelo que dizem todos os suspeitos, acusados e condenador por corrupção, mas não só, este país é um imenso Carandiru. Ali, como observou certa vez o médico Dráuzio Varela, não havia um único culpado. Todos eram inocentes, simplesmente inocentes, manifestamente inocentes, vítimas de perseguição e da cegueira da Justiça.

Ricardo Noblat

Gente fora do mapa


Aquele momento fatal

Com a participação de todas as suas correntes internas na discussão dos programas do partido e na ocupação de cargos de governo, com suas assembleias intermináveis, o PT sempre se orgulhou de sua democracia interna, de ser um partido sem caciques — embora comandado por Lula e José Dirceu.

Lula sempre mandou no partido, nas executivas, nos diretórios, nas assembleias, em Dirceu, mas reinava principalmente nos comícios, insuperável com sua inteligência, seu histrionismo, sua malandragem política e suas bravatas que incendiavam a militância. Que partido não gostaria de ter um líder com o carisma e a personalidade de Lula?

O lado ruim de ter um líder carismático absoluto, cultuado e incontestável é depender de suas decisões pessoais, de acordo com as suas conveniências de momento.


Ao indicar no “dedaço” Dilma Rousseff para presidenta, enfrentando profundas e fundadas resistências no partido, afinal o DNA dela era brizolista, assumiu o seu maior risco — e conquistou a sua maior vitória. Depois, para eleger Fernando Haddad prefeito de São Paulo, chegou a fazer uma aliança e posar ao lado de Maluf, para estupor dos petistas de todas as correntes. E, cheio de orgulho e certeza, cunhou uma de suas grandes frases: “De poste em poste vamos iluminando o Brasil”.

Se houvesse democracia interna no PT, com convenções para escolher candidaturas, em 2014 Lula teria sido aclamado pelo partido para a sucessão de Dilma e massacraria Aécio Neves. Mas, assim como a havia escolhido imperialmente, Lula teria que discutir com a rainha, só com ela, a sua sucessão.

Aquela meia hora decisiva em que os dois se trancaram em uma sala, e Lula saiu abatido e Dilma candidata à reeleição, mudou o rumo do PT e a História do Brasil. No momento em que sua força, sua experiencia e sua inteligência foram mais necessários, Lula piscou. E Dilma ganhou no grito, rompendo o acordo de o poste devolver-lhe o trono depois de quatro anos.

O resto é história, com as consequências funestas que teve para o Brasil, para o PT e para Lula, porque um grande líder popular quase religioso e infalível falhou num momento fatal.

Grande problema, grande cidade

Passei uma semana no centro de São Paulo, antes da queda do prédio de 24 andares no Largo do Paiçandu. Meu foco era a Cracolândia, mas não deixei de registrar a grande presença de moradores de rua, cerca de 25 mil na cidade, e os prédios ocupados pelos movimentos de sem-teto.

Um deles me impressionou. Tinha 20 andares, a pintura encardida e cortinas rosa, vermelhas, verdes, algumas improvisadas com papelão. A imagem me levou a alguns minutos de contemplação.

Um funcionário da Secretaria de Habitação me informou que havia negociações em curso para comprá-lo e achar uma saída, antes que as coisas ficassem mais graves. Um prédio com as mesmas características pegou fogo e desabou. Havia negociações em curso.

Como entendo pouco do tema, procurei saber algo mais com os atores envolvidos. Supunha que divergências ideológicas estivessem travando soluções de consenso. Saí de São Paulo com uma sensação de que o problema é tão complexo que o ideal seria definir pontos de convergência e tentar algumas soluções, inclusive para a Cracolândia.



Não deixa de ser ingênuo desejar que as pessoas deixem a rigidez ideológica na porta e discutam de uma forma madura medidas pragmáticas. Os que se apoiam na ideologia e dependem do conflito para mobilizar precisam experimentar também pequenas realizações para descobrir que não se cresce só brigando, mas também fazendo acordos.

Existem setores que vão resistir. Na Cracolândia, por exemplo, o crime organizado está presente e quer manter as coisas como estão. Como explicar a invasão e o saque aos prédios populares que eram a vitrine do governo Alckmin naquela região?

Os moradores do prédio no Largo do Paiçandu pagavam entre R$ 200 e R$ 500 de aluguel. O movimento político que administrava a invasão tem interesses materiais no status quo. Pelo que pude observar, examinando propostas do governo e dos intelectuais de esquerda que fizeram o projeto de renovação dos Campos Elísios, algumas casas populares estavam nos planos de ambas as partes.

Apesar do grande desastre no Largo Paiçandu, o que senti nas ruas de São Paulo é que os moradores de rua estavam vivendo um momento favorável, se é possível dizer isso. Foram dias de sol e o verão abriu lugares menos hostis. Eu os vi na lateral da Prefeitura e do outro lado da rua. São muitas as ONGs e igrejas que procuram alimentá-los. No inverno as coisas ficam mais difíceis – 25 mil pessoas ao relento equivalem à população de muitas cidades do interior. Como agasalhá-los ou mesmo prevenir doenças e morte? A isso se soma o fato de que mais de 1 milhão de pessoas vivem em condições precárias de habitação.

Ao observar o que se passa na Cracolândia e no centro, outro ângulo me preocupou: a segurança biológica. Vivemos tempos difíceis e o próprio Bill Gates ao lado de um grupo de cientistas advertiu sobre o perigo das epidemias, que podem ser devastadoras. É preciso incluir essa dimensão no planejamento urbano, evitar a vulnerabilidade de parte da população porque, em tese, o destino de todos está em jogo.

Minha viagem a São Paulo foi uma introdução à gravidade do problema. Ele não acontece por acaso: milhares de pessoas deixam suas cidades em busca de uma chance na metrópole.

Mas São Paulo é maior que esse problema. Isso não significa que não se viva aqui um dos grandes dramas nacionais. O prédio desabado, por exemplo, era do governo federal.

Os candidatos a presidente poderiam fazer uma visita ao centro de São Paulo. Mesmo que isso não os motive, pelo menos conheceriam um importante aspecto do país que pretendem governar.

Mencionei a Cracolândia e o centro num artigo na semana passada, desejando aprender com as soluções e torcendo por elas. Concluí que se a sensação de urgência não prevalecer sobre a rigidez da visão ideológica, corremos o risco de tornar o Brasil ingovernável.

A queda de um edifício de 24 andares no centro da maior e mais rica cidade do Brasil é algo forte demais para ser um episódio perdido no tempo. Para mim, o lugar é uma espécie de marco zero. Não só o terror devasta, mas também anos de indecisão e descaminhos.

Soluções amplas para problemas dessa dimensão precisam de dinheiro. Se puder vir de todas as fontes, melhor. O governo federal tem uma secretaria de drogas. Não é possível que não tenha uma política para a Cracolândia, onde o drama se mostra sem máscara.

Uma renovação desse território é tão desafiadora que até o seu êxito pode criar novos problemas: uma política bem-sucedida com a população de rua, em tese, pode atrair mais gente para a metrópole.

Casas populares numa área economicamente forte podem originar o que os ingleses chamam de gentrificação. Elas se valorizam, os moradores as vendem para gente de mais poder aquisitivo. Mas é melhor tratar com eles do que com o fracasso. Na verdade, as coisas estão mudando na região, mas num ritmo ainda lento.

Um hospital será construído na Cracolândia, o Pérola Byington. A base policial montada no Largo Coração de Jesus é elogiada pelos moradores. Embora os soldados não cheguem até o chamado fluxo, a concentração de usuários de crack, eles garantem uma segurança no entorno.

Três postos do governo acolhem usuários e moradores de rua em espaços onde podem comer, tomar banho, dormir, obter documentos e até fazer terapia musical. Comparando imagens que fiz agora com as do passado, cheguei à conclusão de que houve uma redução, um progresso territorial que afastou de uma praça e alguns outros pontos a concentração de usuários.

Tomara que a queda do edifício ajude também a apressar os passos dados, desatar longas negociações. Por que tragédias num lugar que pode ser um dos mais atraentes da metrópole?

Pode invadir

Invadir prédios ou qualquer outra propriedade imobiliária, seja ela pública ou privada, é crime previsto no Código Penal; não há casos em que a invasão é permitida. Cobrar aluguel das pessoas que moram no imóvel invadido, com ameaças e uso da força, também é crime. Quando um prédio desses pega fogo e desaba em seguida, como acaba de acontecer no centro de São Paulo com um edifício federal de 24 andares, imagina-se que os crimes ficam mais graves ainda. Imagina-se, enfim, que os responsáveis pela invasão, que embolsam os aluguéis (no caso, de 250 a 500 reais por mês por “apartamento”) e controlam cada detalhe do funcionamento do prédio, devam ser processados e punidos pelos crimes que cometeram. Pode ser assim no resto do mundo, mas não no Brasil. No Brasil tudo isso é permitido, se os criminosos fazem parte da indústria de invasão de imóveis, descrita na mídia como “movimento social”, e se o seu chefe é um político “de esquerda” ─ se ele também for candidato à presidência da República, então, melhor ainda.


Hoje em dia o governo do estado, a prefeitura municipal, o Ministério Público e a Justiça de São Paulo (e de muitos outros lugares por este Brasil afora) autorizam quase que oficialmente as invasões de edifícios em desuso ou terrenos com problemas de escritura. No momento, para se ter uma ideia do tamanho do buraco, há na cidade mais de 200 imóveis invadidos. Muitas vezes, na verdade, o Ministério Público proíbe que se tome qualquer medida para expulsar os invasores ─ mesmo quando há sentença judicial ordenando a reintegração de posse, a polícia se vê impedida de agir, ou não recebe ordens do governo do estado para cumprir a decisão da Justiça. De qualquer forma, não há a menor hipótese de acontecer o que deveria ser a coisa mais normal deste mundo: indiciar em inquérito os organizadores da invasão e abrir uma ação penal contra eles. Podem botar na cadeia, condenado a doze anos, até um ex-presidente da República. Mas um líder dos “sem teto”? Nem pensar. O máximo que as autoridades permitem é que seja feita uma “negociação”. No caso do prédio que foi ao chão em São Paulo, a prefeitura e os chefes dos “movimentos sociais” já tinham feito seis reuniões.

Num país em que muita gente boa acredita que os jornalistas praticam um vigoroso “jornalismo investigativo” (a começar por eles próprios, os jornalistas) é realmente uma surpresa constatar que a mídia não faz nenhum esforço minimamente sério para investigar as gangues que exploram a invasão de imóveis nas grandes cidades brasileiras. É mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha, como na Bíblia, do que encontrar nos jornais, rádio e televisão uma única reportagem que aponte, por exemplo, a responsabilidade dos “movimentos sociais” (e do seu candidato presidencial) num caso como o do prédio que desabou em São Paulo. Cobranças iradas foram dirigidas pela mídia ao prefeito Bruno Covas, ao governo do estado, “ao Temer”, ao Corpo de Bombeiros, aos equipamentos anti-incêndio e até à “estrutura mista” de concreto e ferro do edifício. Mas mal se ouviu alguma referência ao MTST e grupos do mesmo ramo de negócio ─ e menos ainda a seu sócio-proprietário, entretido naquele momento em fazer barulho pela “libertação de Lula” em Curitiba. Ao contrário: ele só apareceu no papel de homem público indignado, cobrando das autoridades a “rigorosa apuração dos fatos”, etc., etc. Jornalismo investigativo é isso aí.

Imagem do Dia


Sem foro, políticos alvejam a regra sobre prisão

Ao limitar o foro privilegiado aos crimes cometidos por parlamentares durante o mandato e por fatos relacionados ao cargo, o Supremo deu uma contribuição para atenuar a impunidade no país. Muita gente não tem ideia da importância dessa decisão. Mas a Lava Jato ajuda a explicar. Nessa operação, os corruptos sem mandato estão em cana —inclusive Lula. Os réus com mandato, continuam impunes depois de quatro anos de investigação. O primeiro privilegiado a ser julgado, em sessão marcada para o próximo dia 15 de maio, será um deputado do baixíssimo clero: Nelson Meurer, do PP.

A decisão do Supremo, tomada por maioria de votos, depois de dois pedidos de vista que retardaram o veredicto por quase um ano, é uma vitória. Mas convém não baixar a guarda. O inimigo continua na trincheira. Nas próximas semanas, será necessário acompanhar o filtro que os ministros do Supremo adotarão para selecionar os processos que descem para a primeira instância e os que permanecem em Brasília.

Venceu-se mais uma batalha. Mas a guerra está longe de acabar. E os larápios que se escondem atrás de mandatos já esboçam uma reação. Vão elevar a pressão para que o Supremo volte atrás na regra que permitiu a prisão de condenados na segunda instância. Isso seria um prêmio para todos os políticos que terão seus processos enviados para a primeira instância. Os que recebessem punições duras poderiam continuar recorrendo em liberdade não apenas à segunda instância, mas até a terceira e a quarta instância. Os processos se arrastariam por anos a fio. E tudo morreria novamente no Supremo, com direito a prescrição e impunidade.

'Quadrilhão' supremo

O crime organizado da corrupção, que tem como instrumento os partidos políticos, construiu um arcabouço de leis em causa própria e de apropriação criminosa de recursos do Tesouro que assegura aos nossos atuais “representantes” – todos bandidos – a reeleição para os mesmos ou para outros cargos em 2018. 
 
O ‘quadrilhão do STF’ é o braço armado do crime organizado da corrupção, que, desafiando a sociedade, pretende continuar lutando pela restauração plena dos corruptos na direção do nosso país. Cabe aos ilustres e respeitados ministros decentes daquela Corte, em maioria, resistir às investidas cavernosas de seus colegas do quadrilhão, cada vez mais ousados na defesa, proteção e liberação dos bandidos da classe política e do empresariado
Modesto Carvalhosa

Está cada vez mais difícil saber o que é verdadeiro ou falso

No último ano da faculdade surgiram as primeiras máquinas de calcular portáteis. Foi uma revolução. A gente ainda usava réguas de cálculo, engenhosas, mas que nem sempre funcionavam com a precisão exigida nas provas. A novidade custava caro, principalmente para aquele bando de duros que frequentavam o Fundão. Os poucos privilegiados eram olhados com inveja, mal sabendo que, num intervalo histórico bem curto, qualquer camelô venderia a máquina por ninharia. As revoluções tecnológicas são assim mesmo. No início, o espanto. Em seguida, a popularização. Finalmente, a busca pela ultrapassagem, num ciclo interminável. Hoje em dia, cada uma dessas etapas envelhece com rapidez crescente.

Ontem, vi um anúncio de iPhone que alardeia velocidade de processamento dez vezes maior do que os modelos existentes no mercado. Quem precisa de tanta pressa? Aonde vai parar essa obsessão pelo novo? Que preço (ambiental, social, político) pagamos por isso?

Subprodutos das redes sociais, o ultramoderno que não filtra procedências e seriedade das fontes, as fake news renovam a cada dia a pergunta: o que é verdade? Em agosto de 1964, o governo americano simulou um ataque vietnamita a navios de guerra no golfo de Tonkin. Em tom indignado, o presidente Johnson foi à TV denunciar o “incidente” e garantir que não ia deixar barato. E não deixou mesmo. A agressão, cuja falsidade gravações e documentos comprovaram mais tarde, foi o pretexto para o início da escalada bélica no sudeste asiático. O imperialismo queria “jogar aqueles caras de volta à Idade da Pedra”.

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Os bombardeios maciços contra populações civis (mesmo quando se negociava um armistício em Paris, no início dos anos 70) e o uso intensivo de armas químicas (desfolhantes que dizimaram áreas verdes e mutilaram milhares de pessoas, e bombas de napalm, produto químico em forma de gel, que, inflamado, provoca ferimentos terríveis e mortes dantescas) não dão margem a dúvidas. Tudo baseado num acontecimento fabricado. O imperialismo é a demonstração prática da fábula do lobo e a ovelha.

Exemplo mais recente é o desempenho patético de Colin Powell na ONU, “provando” a existência de armas de destruição em massa no Iraque, sob o aplauso da claque da morte (Tony Blair et caterva). As armas nunca foram encontradas, ninguém se desculpou pela mentira e, no meio do caminho, um país inteiro praticamente deixou de existir. O ex-presidente do Federal Reserve, Allan Greenspan, confirmou que a verdadeira razão para invadir o Iraque foi a defesa das reservas de petróleo no Oriente Médio. Deve ter sido banido dos coquetéis na Casa Branca.

Nas redes sociais, a tecnologia da mentira se sofistica e é cada vez mais difícil se informar em sites e plataformas “confiáveis”. No final do ano passado, o Washington Post publicou matéria que transita entre o cômico e o aterrador. Um restaurante falso em Londres liderou o ranking de qualidade num site de viagens. O jornalista britânico Oobah Butler inventou um restaurante virtual, associou-o a uma página na web, combinou resenhas favoráveis com amigos e, surpreendentemente, começou a receber pedidos de reserva. Claro que ele as negava, alegando que o local estava lotado.

O site divulgava um menu baseado em “emoções” (parte da cultura gourmet, praga que vende “experiências”), conceito que, de acordo com o jornalista, é “bobo o bastante para enfurecer seu pai”. Ilustrava o cardápio com belas fotos… produzidas com produtos domésticos, como tabletes de cloro e creme de barbear.

A curiosidade gerada por uma casa tão “exclusiva” (ninguém conseguia lugar para comer lá) se espalhou e pedidos de reserva começaram a chegar do mundo todo ! O telefone não parava de tocar. O TripAdvisor elevou o restaurante ao primeiro lugar das indicações em Londres, quase 90 mil pessoas visitavam o site do restaurante fake todos os dias.

O que nos ensina este delírio coletivo, pendurado em nada? Bem, comparado com o que conto em seguida, Butler é um inocente brincalhão.

Supasorn Suwajanakorn (o nome é esse mesmo, nada fake), pesquisador do Google Brain, desenvolveu um software que permite produzir vídeos falsos com toques de realidade. Um exemplo. Numa palestra, projetou quatro versões diferentes de um mesmo discurso do ex-presidente Obama. Perguntou à plateia: qual delas era a versão falsa? A resposta: todas eram falsas. Em 14 horas, o programa manipulou fotos e vídeos pré-existentes de Obama, criando uma realidade paralela.

O software estará, em breve, disponível para uso através de navegadores da internet. Alguém consegue dimensionar o alcance disso? A tecnologia, que está dando os primeiros passos, será certamente aperfeiçoada. Chegará um momento, tenho certeza, em que não será mais possível diferenciar real de virtual. Não será mais possível acreditar em imagem alguma. Aí, então, os filósofos fritarão os miolos para definir a neoverdade, aquela cozinhada em algoritmos e modelos em 3D.

É, meninos, estamos próximos de protagonizar um episódio tardio do Twilight zone. Pena que Rod Serling está morto, a imaginação não está no poder e não existe garantia de happy end. Câmbio e desligo.