sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

Governo normal faz diferença

Mais que o tradicional “bom dia” nos grupos de WhatsApp das famílias, uma expressão se espalhou pelas redes sociais no Brasil em tempos de governo Bolsonaro: “Não se tem um dia de paz”.

A constatação ganhou especial significado durante a pandemia. Nos aproximamos de forma célere dos 250 mil mortos, a vacinação se dá em ritmo de tartaruga, o auxílio emergencial ainda é um esboço, mas o país parou na Quarta-Feira sem Cinzas para acompanhar a prisão de um deputado da linha de frente da base bolsonarista que não via outra prioridade diante deste quadro que não fosse pregar a volta do AI-5, agressões físicas a ministros do Supremo e a troca sumária de todos os integrantes da Corte.

O chilique do valentão se deu porque o ministro Edson Fachin fez o óbvio: protestar contra a interferência indevida que o general Villas Bôas confessou ter sido feita com aval do Alto-Comando das Forças Armadas na decisão que o STF teria de tomar sobre um recurso do ex-presidente Lula em 2018.

A prisão do deputado ainda mobiliza os três Poderes da República três dias depois. Os deputados, antes prontos a correr em socorro do colega, agora entenderam que ele foi longe demais e que salvar sua pele pode implicar comprometer a própria. Da mesma maneira, Bolsonaro, sempre tão boquirroto quanto Daniel Silveira, fez boca de siri quando o amigo foi em cana. Natural: sabe que tem seus próprios passivos, que incluem os do filho Flávio e os do ministro Eduardo Pazuello, com o Supremo e não vai se queimar por um deputado de 31 mil votos que se notabilizou por rasgar uma placa com o nome de Marielle Franco.

Ainda que o presidente tenha esse gesto isolado de comedimento (que pode ser quebrado a qualquer momento, numa live ou num aglomeração no cercadinho do Alvorada), a própria existência de um Daniel Silveira como deputado e a necessidade de que ele seja preso para parar de atentar contra a democracia mostram quão disfuncional é o governo Bolsonaro, e quanto o Brasil paga dia a dia por isso.

A diferença entre um governo tresloucado e um minimamente normal pode ser vista de forma didática nos Estados Unidos. A simples retirada de Donald Trump de cena e sua substituição pela equipe de Joe Biden fez com que fosse triplicado o ritmo de vacinação no país, a média diária de casos de Covid-19 despencasse de 195.064 para 77.665, e coisas simples como usar uma máscara deixassem de ser tabus ideológicos.

Por aqui, o presidente segue buscando milagres para enfrentar o vírus, enquanto seu ministro faz promessas sem nenhum amparo na realidade de centenas de milhões de doses de vacinas, sem estipular um cronograma seguro e claro de como elas serão fornecidas a estados e municípios.

O resultado dessa completa inépcia de Bolsonaro e Pazuello e do show de horrores da ala bizarro-ideológica do bolsonarismo é que também a economia é profundamente afetada. Em vez de se ocupar do desenho do projeto para a volta do auxílio emergencial e das medidas adicionais necessárias para garantir que ele não estoure as já depauperadas contas públicas, o comando da Câmara passou os últimos dias quebrando a cabeça para tentar livrar a barra do troglodita sem afrontar o STF. Mas ficou claro que, desta vez, os ministros não deixariam barato nenhuma atitude corporativista que fragilizasse o Judiciário.

A votação unânime dos 11 ministros delimita uma risca no chão. O Congresso parece ter entendido isso. O silêncio de Bolsonaro mostra que ele também sentiu o golpe. Que os eleitores também entendam que só elegendo políticos comprometidos com a democracia, o que esses de turno não são, o país poderá sair da anormalidade absoluta para o mínimo de paz que todos pedem em vão nos seus posts no Twitter.

O capitão vence no jogo da morte

Recentemente, um grupo de cientistas publicou na revista The Lancet um estudo calculando que 40% das mortes por covid-19 nos EUA poderiam ter sido evitadas se não fosse a desastrada política de Donald Trump. Um estudo semelhante colocaria Jair Bolsonaro em situação mais difícil.

Bolsonaro é mais negacionista que Trump e na questão das vacinas se afasta radicalmente de seu ídolo americano. Afinal, Trump financiou a produção de vacinas e Bolsonaro é o único chefe de Estado do mundo que expressou uma visão negativa sobre elas.

A Confederação Nacional de Municípios lançou um documento em que registra as hesitações e os erros do governo no campo da vacinação em massa e pede a saída do ministro da Saúde, general Pazuello. Os prefeitos estão cobertos de razão. Nunca chegaremos a vacinar adequadamente os brasileiros com Pazuello à frente do processo. Ele prometeu que vacinaria metade das pessoas até junho, uma promessa tão absurda que não sei como senadores acreditam nela.

Bolsonaro negou a pandemia. No seu processo de negação, como todo populista, precisava de uma saída fácil para o problema. Optou pela hidroxicloroquina. Sempre afirmou que acreditava mais em remédios do que em vacinas, ao contrário da maioria dos governantes do mundo.


Com essa falsa premissa começou a fazer bobagens, todas elas retardando a nossa possibilidade de ter as vacinas necessárias para imunizar rapidamente e sair da crise. Outros países tiveram mais êxito. Israel, mais da metade de sua população imunizada. A Inglaterra já alcançou 15 milhões de pessoas vacinadas. Israel tem pouca gente, a Inglaterra, por sua vez, dispõe de um sistema de saúde.

Não importam tanto as características de cada um. Para ter êxito nesse processo é preciso ter vacinas. E Bolsonaro nunca pensou seriamente em comprá-las no prazo e na quantidade adequados.

Basta juntar duas declarações dele. Numa delas afirma que o Brasil, com seus mais de 200 milhões de habitantes, é um mercado superatraente para os produtores de vacinas. Passado algum tempo, ele diz: “Tenho R$ 20 bilhões para comprar vacinas, mas não consigo”. Não consegue mesmo é estabelecer relação entre as duas frases, não percebe que se enganou.

A sabotagem de Bolsonaro às vacinas teve duas vertentes distintas. A primeira talvez seja produzida pelo obscurantismo científico. A vacina da Pfizer utiliza a técnica de RNA mensageiro, expressa uma tendência da medicina genética que vai ser usada na cura de outras doenças. Mas seus aliados diziam nas redes sociais que esse tipo de vacina altera nosso código genético. Daí surgiram o medo de virar jacaré e alguns obstáculos contratuais que afastaram a Pfizer.

O obscurantismo político esteve na base das reservas quanto à Coronavac. De origem chinesa, comprada por um adversário político, João Doria, Bolsonaro lançaria inúmeros torpedos contra ela até que, reduzido a uma só alternativa, a Oxford/AstraZeneca, capitulou.

Mas suas reservas quanto à origem da vacina o cegaram também para outra possibilidade chinesa, a da Sinopharm, mais amplamente usada por lá e que acaba de fechar negócio com o Peru.

A própria Sputnik V, que despertou o interesse do Paraná e é muito parecida com a Oxford, nunca chegou a interessar ao governo, até o momento em que foi adotada por um lobby de deputados do Centrão. E com isso perdeu um pouco de sua credibilidade, apesar da eficácia reconhecida em artigos científicos.

Outra oportunidade perdida foram as vacinas do consórcio da Organização Mundial da Saúde, a Covax, que iria garantir vacinas para países que não a produzem. O Brasil poderia ter uma cota maior, correspondente a 50% da nossa população. Optou pela cota mínima, 10%.

Com uma sucessão tão robusta de erros, o governo de Jair Bolsonaro certamente iria fracassar no projeto de vacinação em massa. Isso não significa que no futuro não haja maior disponibilidade de vacinas. A tendência é do aumento da produção.

No entanto, o conceito de fracasso é associado a dois fatores: o número de contaminações evitadas num determinado período e a capacidade de repor a economia em funcionamento o mais rapidamente possível.

Na medida em que as vacinas evitam também evoluções graves e letais da doença, quanto mais tempo se perde, mais vidas são levadas pelo vírus. Por essa razão uma pesquisa de cientistas sobre o peso da política negacionista no número de mortes encontraria um resultado diferente do constatado nos Estados Unidos.

Os 40% de mortes atribuídas à política de Trump nos Estados Unidos seriam, aqui, acrescidos das mortes produzidas pelos erros na política de vacinação. Sem contar o fato de que Trump percebeu com alguma rapidez que a hidroxicloroquina era uma canoa furada e despachou os estoques para seu admirador tropical.

Nessa corrida para o troféu de mais mortes por estupidez política, Bolsonaro deverá suplantar Trump. O americano já se foi e aqui a sinistra batalha continua: faltam vacinas e uma nova variante se espalha pelo País, graças também à opção do governo de ignorá-la.

Gentileza, é preciso


Entre nós, não vamos deixar isso (o ódio) nos contaminar. A pior coisa que pode acontecer é esse incentivo à morte, à maldade, ao ódio, nos contaminar. Começarmos todos a nos odiar por mixaria, a brigar com o vizinho, no trânsito. Neste momento em que a gente não pode brigar, vamos nos tratar muito bem, estamos precisando disso. Liberdade, luta e gentileza
Maria Rita Kehl

A falta de idealismo sufoca o país

O que você pode imaginar já existe na realidade. O Brasil vive de aposta, dominado pelo caráter dos que fazem o jogo total. A autoridade se sente dona do Estado, em uma inversão da vida normal.

É o povo, que mesmo sem renegar a importância do poder, mora sozinho num cômodo separado. O hóspede mais honrado é o esquecido. O corporativismo do inquilino despejou o dono da casa.

A identidade do insulto está se purificando. O excesso é o itinerário para o abatedouro de sonhos que é o modelo político e econômico brasileiro. Derrotar o modelo é decidir viver sem adoecer, o melhor ponto de fuga para os bons não ficarem moralmente abatidos.

É impossível passar a limpo o que está nos acontecendo como povo. Falamos e aceitamos ouvir uma língua grossa, medíocre, como se não fôssemos indivíduos com valores para viver em sociedade. A grosseria oficial apagou por completo o élan do brasileiro civilizado em todas as classes.


Os donos do Estado não conseguem justificar sua existência e vestem farrapos de lordes. Mesmo quando conseguem defender algo relevante do ataque de roedores rudes dão a impressão que demoram tanto a acordar para o desatino despótico em curso por que precisam antes proteger a indignidade estética de maus colegas.

As instituições estão sob ataque interno também, uma conspiração dos maus contra os bons. No contexto atual há uma exigência impossível de evitar: é preciso expulsar do Estado a autoridade que desconhece a língua e a etiqueta pública.

A política se desequilibra em desfavor do idealismo quando os líderes não possuem um sistema claro de pensamento e algum mecanismo psicológico de arrependimento. Só não há traição em sistemas políticos que praticam a fidelidade total à morte da coerência.

Quem apoia falsidade e desumanidade não é nem fiel a si mesmo e nem se preocupa com o que deve ser para além de servir a uma conjuntura especifica e passageira.

Há épocas em que todo o mal se parece com uma só pessoa. Só que essa pessoa atualmente é coletiva e permite um sistema linear de observação na saúde, economia, relações internacionais, educação, segurança pública, justiça, etc. Não é uma ficção individual.

O mal sempre se oferece nas eleições, cada vez com uma vestimenta própria e erros gramaticais correspondentes. E justifica sua existência dizendo para os miúdos que vai se erguer sobre os graúdos. A fúria demagógica tem um endereço certo: é contra a lei de ferro da oligarquia dos estáveis da velhíssima república de burocratas estatais poderosos.

Ou muda isso ou os erros do setor público continuarão a ser os melhores aliados de hipócritas algozes. Que gente! Nossa improbidade é mais profunda e se erigiu dentro do Estado, o subúrbio de entediados sem idealismo.

Não é possível dizer para onde aponta a mira da política brasileira atual, quais são os meios que pretende utilizar para atingir seus fins, o que acha conveniente apoiar, o que rejeita. O estado mental da política é o da mais medíocre ambiguidade já vista na nossa história.

Uma geração pedestre, de raciocínio simplório e ingênuo, utilitarista, sem nada saber ou temer do mundo antigo que nos formou e do futuro que está se formando sem nenhuma participação deles.

Qualquer pessoa influente ou culta só consegue desenvolver completamente seu papel se for minimamente informada e tiver princípios éticos. E se decidir ser funcionário público, uma pequena vocação sacerdotal não fanática é benvinda.

Pode até ser preguiçosa aqui e ali, mas não pode nunca ser distraída ao ponto de resistir moralmente a ser integro. Já é hora de a política parar de achar que há inteligência na maldade, na burrice, no porte de armas e no jogo de azar sem vacina que está matando em massa os brasileiros.

Já passou da hora de o Ministério Público, o Judiciário e as Forças Armadas pararem com o jogo de faz de conta que é achar possível continuarem a praticar essa bondade imperfeita de protegerem seus membros que renunciaram aos valores de servir ao povo como funcionários exemplares do Estado. Inaceitável complacência e servilismo de ficarem protegendo seus medíocres, certos de que o homem comum é tonto e não tem consciência de nada.

A ação das quatro instituições públicas – políticos, procuradores, juízes e militares – tem sido muito desagradável. E se torna uma tragédia geracional quando se soma a uma quinta, coluna de acadêmicos parados nos anos de formação juvenil que não se elevam, só se agacham diante de fórmulas liberais extintas pelo tempo. Penso nas complicadas criaturas sem humildade e sabedoria que vão levar ao derretimento a economia do país. 

Talvez os cinco cavalheiros do nosso apocalipse, e seu mandarinato de altos funcionários com a visão teatral que possuem dos problemas brasileiros, não estejam se dando conta da estupidez que é o poder sem inteligência e bondade. Ou, por estarem contaminados pelo princípio da imitação por cálculo, continuem em dúvida se o êxito se alcança melhor se misturando ou se distinguindo de mais este governo transitório.

O funcionário estável parou de evoluir, como se a civilização acabasse e ele continuasse se comportando sem vontade e representação.

O Brasil está sufocado pela má argúcia do poder, a barbárie do simplório. E quem tem o poder de mandar sem ver a complexidade das coisas costuma considerar normal a desinformação e a crueldade da burrice. Entre os simples com poder, a confusão e a desinformação têm muito sucesso.

Nós estamos vivendo uma desordem. Um desconforto que cresce como um destino pouco promissor. Mesmo sabendo que o povo sempre sobrevive ao Estado e seus manda chuvas ocasionais é preocupante ver a elite do país tão conformada diante de uma situação tão dramática.

Brasil apocalíptico

 


Sem vacina e sem economia

Sobram máquinas e equipamentos parados, enquanto a economia rasteja, e há mão de obra ociosa em todo o País, por causa do desemprego, mas falta vacina para conter a covid-19 e abrir espaço a uma recuperação mais ampla. Vacina é hoje um insumo essencial para uma firme retomada econômica na maior parte do mundo, como têm dito e repetido dirigentes do Fundo Monetário Internacional, do Banco Mundial e de outras instituições multilaterais. Vacinação foi um dos primeiros assuntos mencionados pela economista Ngozi Okonjo-Iweala logo depois de anunciada, na segunda-feira, sua escolha para dirigir a Organização Mundial do Comércio (OMC). O presidente Jair Bolsonaro mostra-se incapaz, até hoje, de entender essa verdade simples.

“O aumento do número de casos de covid-19 representa um risco do processo de recuperação econômica”, segundo o Boletim Macro, edição de janeiro, da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Essa incerteza, somada a outros fatores, como a suspensão do auxílio emergencial, levou a uma redução das expectativas em relação ao ritmo da atividade neste início do ano. Economia fraca no primeiro semestre e crescimento a partir do segundo compõem o cenário apresentado no boletim.

Risco de recessão, com recuo do Produto Interno Bruto (PIB) no primeiro e no segundo trimestres, é apontado por vários analistas mencionados nesta segunda-feira em reportagem do <b>Estado</b>. Outras equipes, pouco mais otimistas, projetam retração no período de janeiro a março e baixo crescimento nos três meses seguintes.


A melhora do quadro, em todos os casos, é associada a um possível ganho de impulso da vacinação, depois de um começo muito lento e muito mal preparado pelas autoridades federais. Sinais de escassez de vacinas em vários municípios, incluídas grandes capitais, comprovam a escandalosa inépcia do ministro da Saúde, estrito cumpridor de ordens do presidente da República.

O ano terminou com um Natal fraco, queda de 6,1% nas vendas do varejo, setor de serviços ainda estagnado e a indústria avançando mais devagar que nos meses anteriores. Nada sugere maior atividade no início de ano nem melhora significativa no mercado de emprego (14 milhões de desocupados, 14,1% da força de trabalho, no período setembro-novembro, segundo os últimos dados). A disposição de empresários e consumidores, no começo de ano, reflete esse desempenho medíocre, ou abaixo disso, da economia brasileira.

Em janeiro, o Índice de Confiança do Consumidor medido pela FGV caiu pela quarta vez seguida e atingiu o menor nível desde junho, quando se recuperava da queda recente. O Índice de Confiança do Empresário caiu, igualmente, em relação ao nível de dezembro.

Também a Confederação Nacional da Indústria detectou menor disposição do empresariado. O Índice de Confiança do Empresário Industrial caiu 1,4 ponto entre janeiro e fevereiro, na segunda queda consecutiva, e chegou a 59,5 pontos. Manteve-se na área positiva, acima de 50 pontos, mas a piora de humor desde o início do ano se agravou.

Medíocre talvez seja uma palavra suave para qualificar o desempenho econômico previsto, nas instituições financeiras e nas principais consultorias, para 2021. A mediana das últimas projeções ficou em 3,43%. Para isso, no entanto, bastará a economia manter a atividade alcançada no trimestre final de 2020, 3,14% superior à do período de julho a setembro, segundo o índice estimado pelo Banco Central.

Sem o auxílio emergencial, mais de 17 milhões de pessoas caem de novo no estado de pobreza, ampliando para cerca de 62 milhões o contingente de indivíduos com renda diária inferior a US$ 5,50. Passada a Quarta-feira de Cinzas, o governo ainda espera do Congresso medidas para restabelecer, em condições mais limitadas, o socorro financeiro abandonado, por falta de previsão e de planejamento, na virada do ano. Quanto às demais condições necessárias à sustentação da economia, continuam obscuras. Quando se trata de previsão e de planejamento, estão empatados, ou quase, os Ministérios da Economia e da Saúde.

Bolsonaro desafiou o ‘mercado’

Ganha uma fritada de morcego quem souber o que é o “mercado”. Bolsonaro corre atrás do novo auxílio emergencial que ampara sua popularidade, e pipocam ansiedades desse ectoplasma. Outro dia ele ironizou: “Qualquer negocinho, qualquer boato na imprensa, tá aí esse mercado nosso, irritadinho, né?”.

“Pessoal, vocês sabem o que é passar fome?” No dia seguinte foi a vez do vice-presidente Hamilton Mourão: “Minha gente, a gente não pode ser escravo do mercado. Nós temos aí uns 40 milhões de brasileiros que estão numa situação difícil”.

Toda vez que o capitão usa diminutivos (“gripezinha” no “finzinho”), algo de ruim pode acontecer e, ao mencionar a neurastenia do ectoplasma, ele pode estar indicando uma nova forma de demagogia. Para quem tem um pé no irracionalismo da cloroquina e na eleição americana fraudada, é um prato cheio a ideia de um descontrole fiscal em nome dos problemas sociais.

Lula cavalgou racionalmente sua plataforma social e teve em Bolsonaro um crítico. Isso para não falar no general Mourão, reclamando da existência do 13º salário. Opondo-se ao nervosismo da turma do papelório, Bolsonaro escolhe um adversário fácil para fazer não se sabe o quê.


Paul Volcker, o grande presidente do Banco Central americano, em suas memórias grafou “mercado” entre aspas. Conhecendo a espécie, sabia que nem nos Estados Unidos o ectoplasma deveria ser levado a sério. No Brasil, a figura é risível. Em geral, vocaliza as opiniões de consultores ou figuras do segundo escalão da banca ou da indústria. Na hora do vamos ver, as guildas do andar de cima gostam mesmo é de ir ao Planalto para bajular o poder. (Quando não se metem em lances de privataria das vacinas.)

Em tese, o “mercado” quer o equilíbrio das contas públicas. Na prática, seus personagens carimbados querem crédito oficial subsidiado e desconto nos impostos. Em tese, Bolsonaro e Paulo Guedes tinham um projeto liberal. Era uma mistura de mamão com jararaca, mas vá lá que lhe dessem esse nome. Com a pandemia e as dificuldades econômicas, o governo está sem rumo. A “gripezinha” mostrou-se um “meteoro” (figura usada por Paulo Guedes), e a única coisa que deu certo em dois anos foi a pronta distribuição do auxílio emergencial. 

As falas de Bolsonaro e Mourão indicam uma nova forma de demagogia. O vice-presidente disse que o governo não pode ser escravo do mercado. A frase não quer dizer nada, mas o pelotão palaciano, o general da Saúde e o almirante da Anvisa resolveram peitar os fabricantes de vacinas. Bolsonaro reescreveu a lei da oferta e da procura quando achou que seu governo tinha um braço forte para negociar com os fabricantes. Deu no que deu, faltam imunizantes, e sobra cloroquina.

Quando Bolsonaro pergunta se “vocês sabem o que é passar fome?”, esquece que seu governo tentou tungar o Benefício de Prestação Continuada, um alívio financeiro para os miseráveis que passavam fome antes mesmo da pandemia.

Muitas coisas do governo de Bolsonaro nunca antes tinham sido vistas. Por exemplo: encrencar com os três maiores parceiros comerciais do Brasil (Estados Unidos, China e Argentina) sem motivo. Criar um Robin Hood sem propósito seria um novo capítulo de um mau espetáculo.
Elio Gaspari

'Bolsonaro presidente', projeto militar

O projeto Bolsonaro presidente foi uma construção de generais da ativa e reserva que se efetivou a partir de 2014 e teve o aval de todos que passaram pelo Alto Comando desde então. Não é que antes eles não tivessem projeto de poder, pelo contrário. Apenas não tinham batido o martelo que ia ser assim. Fazer campanha dentro de uma Academia Militar, além de ilegal, só pode ser obra de um consenso

Spray israelense para a covid-19 que Bolsonaro quer aprovar com urgência ainda não nasceu

O presidente Jair Bolsonaro anunciou que pediria à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) que aprove com urgência um spray israelense para tratar os sintomas respiratórios da covid-19 “com quase 100% de eficácia”. Na verdade, o aerossol EXO-CD24 ainda não nasceu nos laboratórios do hospital Ichilov de Tel Aviv, onde apenas deu passos preliminares, ainda que promissores. Na primeira das três fases do estudo, 29 dos 30 pacientes analisados se recuperaram de sintomas “moderados e graves” em um prazo de três a cinco dias. A imprensa israelense anunciou imediatamente a boa nova, mas nenhuma das grandes revistas científicas, que aplicam uma revisão exaustiva feita por especialistas, publicou o estudo até agora. O primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, não hesitou em chamá-lo de “medicamento milagroso”.

No vibrante ecossistema de inovação científica e tecnológica de Israel as descobertas são precoces e propagandeadas aos quatro ventos, mesmo que depois não sejam concludentes. Assim avança a pesquisa —com grande financiamento público e privado— sem medo ao fracasso por resultados efêmeros. E graças também a previsões otimistas, como as de Netanyahu, que persegue a reeleição no mês que vem pela quarta vez em dois anos. “Se (o EXO-CD24) funcionar, será algo enorme, simplesmente enorme, em escala global. Desejo que tenha sucesso”, prognosticou o médico Nadir Arber, diretor da pesquisa que o desenvolve. “Essa coisinha (o spray) pode mudar o destino da humanidade. É algo impressionante”, frisou no dia 8 de fevereiro.

Poucas horas depois, em um pronunciamento conjunto com o primeiro-ministro grego, Kyriakos Mitsotakis, Netanyahu segurou uma amostra do spray, que chamou de “medicamento milagroso”. “Se você está infectado pelo coronavírus, gravemente doente e com problemas pulmonares, pegue isso, inale e começará a sentir-se melhor”, recomendou o chefe do Governo de Atenas.


Três dias depois, Bolsonaro, tachado de negacionista da pandemia, anunciou nas redes sociais que iria ligar para Netanyahu para eventualmente importar o spray ao Brasil. “Você está em estado grave? Toma, poxa. Ou vai esperar ser intubado? Quem fica somente com as vacinas é um idiota, porque é preciso ter várias opções”, enfatizou o presidente durante uma live na última quinta-feira. Antes já havia promovido o uso de outros medicamentos, como a cloroquina, cuja eficácia contra a covid- não foi comprovada.

A ligação foi feita na sexta-feira. “Falamos do medicamento israelense que, até agora, está obtendo grande sucesso no tratamento de casos graves”, disse o presidente. Na segunda, Bolsonaro adiantou que, após conversar com seu “bom amigo” Netanyahu, “enviará uma solicitação de análise à Anvisa” para avaliar uma possível aprovação de uso emergencial do EXO-CD24. O Brasil é um dos países mais afetados pela pandemia, com mais de 240.000 mortes (o que o coloca atrás somente dos Estados Unidos) e quase 10 milhões de contágios.

O EXO-CD24 serve para moderar a espiral inflamatória produzida pelo próprio sistema imunológico dos doentes e para prevenir a chamada tempestade de citocinas, potencialmente letal. “O medicamento é inalado uma vez por dia durante alguns minutos, por cinco dias, e é dirigido diretamente aos pulmões”, declarou o doutor Nadir Arber ao portal digital Times of Israel. “Os resultados da primeira fase são excelentes”, afirmou por sua vez Roni Gamzu, diretor do hospital Ichilov e ex-coordenador nacional da pandemia em Israel.

A informação disponível sobre o spray “milagroso”, entretanto, continua sendo incompleta. O laboratório do hospital de Tel Aviv ainda não publicou resultados oficiais de sua pesquisa e se ignora, por exemplo, se foi administrado um placebo a um grupo de controle durante o teste.

Há aproximadamente um ano, a imprensa israelense publicou a iminente obtenção de uma vacina contra o coronavírus desenvolvida pelo Instituto de Pesquisa Biológica. O centro, ligado ao Ministério da Defesa e ao Gabinete do primeiro-ministro, ainda continua trabalhando em sua busca. O primeiro voluntário do teste em andamento foi inoculado neste mês com um placebo.