sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

Bolsonaro desafiou o ‘mercado’

Ganha uma fritada de morcego quem souber o que é o “mercado”. Bolsonaro corre atrás do novo auxílio emergencial que ampara sua popularidade, e pipocam ansiedades desse ectoplasma. Outro dia ele ironizou: “Qualquer negocinho, qualquer boato na imprensa, tá aí esse mercado nosso, irritadinho, né?”.

“Pessoal, vocês sabem o que é passar fome?” No dia seguinte foi a vez do vice-presidente Hamilton Mourão: “Minha gente, a gente não pode ser escravo do mercado. Nós temos aí uns 40 milhões de brasileiros que estão numa situação difícil”.

Toda vez que o capitão usa diminutivos (“gripezinha” no “finzinho”), algo de ruim pode acontecer e, ao mencionar a neurastenia do ectoplasma, ele pode estar indicando uma nova forma de demagogia. Para quem tem um pé no irracionalismo da cloroquina e na eleição americana fraudada, é um prato cheio a ideia de um descontrole fiscal em nome dos problemas sociais.

Lula cavalgou racionalmente sua plataforma social e teve em Bolsonaro um crítico. Isso para não falar no general Mourão, reclamando da existência do 13º salário. Opondo-se ao nervosismo da turma do papelório, Bolsonaro escolhe um adversário fácil para fazer não se sabe o quê.


Paul Volcker, o grande presidente do Banco Central americano, em suas memórias grafou “mercado” entre aspas. Conhecendo a espécie, sabia que nem nos Estados Unidos o ectoplasma deveria ser levado a sério. No Brasil, a figura é risível. Em geral, vocaliza as opiniões de consultores ou figuras do segundo escalão da banca ou da indústria. Na hora do vamos ver, as guildas do andar de cima gostam mesmo é de ir ao Planalto para bajular o poder. (Quando não se metem em lances de privataria das vacinas.)

Em tese, o “mercado” quer o equilíbrio das contas públicas. Na prática, seus personagens carimbados querem crédito oficial subsidiado e desconto nos impostos. Em tese, Bolsonaro e Paulo Guedes tinham um projeto liberal. Era uma mistura de mamão com jararaca, mas vá lá que lhe dessem esse nome. Com a pandemia e as dificuldades econômicas, o governo está sem rumo. A “gripezinha” mostrou-se um “meteoro” (figura usada por Paulo Guedes), e a única coisa que deu certo em dois anos foi a pronta distribuição do auxílio emergencial. 

As falas de Bolsonaro e Mourão indicam uma nova forma de demagogia. O vice-presidente disse que o governo não pode ser escravo do mercado. A frase não quer dizer nada, mas o pelotão palaciano, o general da Saúde e o almirante da Anvisa resolveram peitar os fabricantes de vacinas. Bolsonaro reescreveu a lei da oferta e da procura quando achou que seu governo tinha um braço forte para negociar com os fabricantes. Deu no que deu, faltam imunizantes, e sobra cloroquina.

Quando Bolsonaro pergunta se “vocês sabem o que é passar fome?”, esquece que seu governo tentou tungar o Benefício de Prestação Continuada, um alívio financeiro para os miseráveis que passavam fome antes mesmo da pandemia.

Muitas coisas do governo de Bolsonaro nunca antes tinham sido vistas. Por exemplo: encrencar com os três maiores parceiros comerciais do Brasil (Estados Unidos, China e Argentina) sem motivo. Criar um Robin Hood sem propósito seria um novo capítulo de um mau espetáculo.
Elio Gaspari

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