segunda-feira, 3 de abril de 2023

Dinheiro à disposição gera crise

A crise da democracia se deve aos enormes poderes do dinheiro terem levado a casos de corrupção em todo lugar. O vazio do pensamento, somado a essa corrupção, leva a uma perda de confiança na democracia, e isso favoreceu os regimes neoautoritários, como vimos na Turquia, Rússia, Hungria e como vemos agora na crise da democracia no Peru e no Brasil.

A regressão histórica começou muito fortemente com os anos Thatcher e Reagan, que no fim do século passado impuseram a regra do liberalismo econômico absoluto, como se as leis da concorrência pudessem regrar e melhorar todos os problemas sociais, mas isso só favoreceu a especulação e a força do dinheiro, que controla a política.

A crise da democracia é o controle do poder político pelo poder financeiro, que é cego, que vê só os interesses imediatos, não tem consciência do destino da humanidade. A prova é a degradação da biosfera, que é evidente, e que vemos na degradação da Amazônia ou na poluição das cidades, por exemplo, mas que é ignorada em detrimento de um benefício imediato. Assim, damo-nos conta de que vivemos em uma época de cegueira e de sonambulismo. Isso participa na crise da democracia.

Eu vivi —sou muito velho, como sabe— nos anos 1930 e 1940, um período da ascensão da guerra, vínhamos de uma época em que acreditávamos estar em paz, mas numa crise econômica enorme que provocou a chegada de Hitler ao poder por vias democráticas.

Vivemos esse período como sonâmbulos, sem saber que íamos em direção ao desastre. Continuamos como sonâmbulos e estamos indo rumo ao desastre, em condições diferentes. O que é certo é o desastre ecológico, e o desastre dos fanatismos.

A menos que as pessoas tomem consciência da comunidade de destino dos humanos sobre a Terra, as pessoas se fecharão em suas identidades religiosas, étnicas etc. Vivemos um período obscuro da história, a única consolação é que esses períodos obscuros não são eternos. 
Edgar Morin

Simplificar ou complicar

A guerra não é entre esquerda e direita, ou entre progressistas e conservadores, ou citadinos e rurais, ou mulheres e homens. Parece ser, mas não é. A verdadeira guerra é entre simplificadores e complicadores. E os simplificadores estão a ganhar.

Nos EUA, em jornais e revistas tradicionalmente dados a complicar as coisas, já se aceita a simplificação de BIPOC e brancos, em que BIPOC é a sigla de “black, indigenous, and people of color“.

Claro que muitos ativistas, negros e brancos, protestam contra a aglutinação: são complicadores, condenados pelos simplificadores.

Para poder complicar as coisas, é preciso perceber os simplificadores: não se pode ser um complicador sem tentar fazer isso.

Para os simplificadores, o que interessa é ir direito ao assunto. O que importa é concentrarmo-nos no que é importante. Até porque a complicação é usada como uma arma contra o ativismo.


A grande diferença nos EUA é, de facto, entre brancos e não brancos. Estar a dizer que há brancos com menos oportunidades do que certos não brancos é um exemplo de uma complicação artificial.

A simplificação leva a uma conclusão e a conclusão leva à acção. Já a complicação atrasa tudo e leva à reflexão. Estou a simplificar, claro.

Mas cada vez que há uma discussão, merecedora de ser chamada discussão, aquilo que se vê não é tanto um debate entre revolucionários e reacionários, como um debate entre maneiras de olhar para as coisas.

Os complicadores também não ajudam. Adoram pormenores, paradoxos e reviravoltas. Cultivam o absurdo e a contradição. E, sobretudo, gostam infinitamente de discutir tudo e mais alguma coisa.

A próxima vez que assistir a uma mesa-redonda com intervenientes muito identificados com posições predeterminadas, faça a experiência de identificar os simplificadores e os complicadores, e verá que a discussão se simplificará muito a partir daí.

Se depois quiser complicar as coisas, isso já é consigo.

Nosso umbigo

Na semana passada apoiadores do diário britânico The Guardian encontraram um comunicado incomum em suas caixas postais eletrônicas. Assinado pela editora-chefe Katharine Viner, o anúncio informava o resultado de uma investigação de dois anos encomendada a um plantel de eminentes acadêmicos do país. No relatório final, intitulado “Legado e escravização”, o grupo independente concluíra que, sim, o Manchester Guardian (nome original do jornal até 1951) dependera de trabalho escravo em seu nascedouro.

Para o jornal bicentenário, zeloso de sua independência editorial e financeira, foi uma questão de coerência moral ir até o fundo de suas raízes.

Como se sabe, o Guardian não é um matutino qualquer. Ocupa lugar bastante solitário entre as grandes mídias tradicionais de países democráticos. É regido há quase nove décadas por um truste sem fim lucrativo, criado em testamento pelo visionário C.P. Scott, seu mais longevo proprietário e editor. Cabe ao Scott Trust, formado por um conselho de oito integrantes (jornalistas, executivos e representantes externos), financiar o jornal — basicamente por meio dos dividendos gerados por seus investimentos. A ideia central do arranjo está em proteger o jornal de interferências políticas e comerciais. Apesar de sofrer prejuízos marcantes, como boa parte da mídia no mundo todo, o Guardian procura honrar esse compromisso. Isso envolve não só cobrir o presente e olhar para o futuro, como fuçar o próprio passado.


O relatório divulgado na semana passada revelou que a fortuna do fundador do jornal, John Edward Taylor, em 1821, assim como a de nove dos seus 11 financiadores, derivou em boa parte da indústria algodoeira de Manchester, cuja matéria-prima vinha de plantações do outro lado do Atlântico, nas Américas. Justamente onde trabalhavam os milhões de negros traficados da África. Um dos financiadores do jornal não apenas comerciava o algodão cru d’além-mar, como era dono de uma plantação de açúcar na Jamaica com 122 negros escravizados. Seria, portanto, difícil não concluir que esses interesses tenham influído na política editorial do matutino, à época. Em episódio de 1833, para citar um só exemplo, quando os donos desses escravizados exigiram uma indenização polpuda para abrir mão de sua “propriedade humana”, o editorial do Guardian posicionou-se a favor do pleito.

— O preço da carne humana do Mississipi era regulado pelo preço do algodão em Manchester — já constatara o grande abolicionista americano Frederick Douglass, que testou como poucos a base constitucional da escravidão nos Estados Unidos.

Por que então o jornal investiu em escavação tão funda de sua história? Porque o Guardian é o Guardian. O fato de aqueles tempos serem outros não pode servir de desculpa para um crime contra a humanidade, explica a editora-chefe de hoje.

Foi justamente um pedido de desculpas formal que a fundação do Guardian divulgou com o relatório, acompanhado do anúncio de ações de justiça reparadora. Serão mais de £ 10 milhões (perto de R$ 62,5 milhões) em programas na Jamaica e alhures. Dado o papel crucial da escravidão para a persistência do racismo e das desigualdades sociais de hoje, o Guardian se compromete a encarar esse abismo.

— Acredito que diversidade é um imperativo tanto moral quanto prático para uma organização de mídia — escreveu Katharine Viner. Ela se socorreu também em James Baldwin:

— Nem tudo o que encaramos pode ser mudado, mas nada pode ser mudado até que seja encarado. No Reino Unido, negros representam apenas 0,2% dos jornalistas em atividade, enquanto somam 3% da população do país.

E no país que recebeu o maior fluxo escravagista de negros da África? Nas redações deste Brasil em que 56% da população se declara negra ou parda, a mesma representatividade despenca para tímidos 20% entre os profissionais de jornalismo. Como conciliar tamanho distanciamento social com um jornalismo que precisa injetar confiança e confiabilidade em seus leitores?

Esse contrato não escrito com a sociedade, por parte de uma imprensa madura, exige determinação para exumar o passado, clareza para analisar o presente e imaginação para apontar o amanhã. O Guardian está tentando. O momento atual parece excelente para também aqui o jornalismo profissional se repensar de ponta-cabeça. Começando pelo próprio umbigo. O Brasil é tão maior, mais rico, mais diverso, mais esperançoso e mais adulto do que nós, jornalistas da assim chamada “grande imprensa”, conseguimos ver! Melhor abrir o olho.

Nunca aos domingos

Sempre desconfiei de que nada de muito importante aconteceu no Brasil aos domingos —importante no sentido de mudar a história. Fui checar, usando uma tabela de conversão num antigo Almanaque Capivarol, e vi que estava certo. Só em duas ocasiões tivemos fatos decisivos num domingo.

A execução de Tiradentes, em 21 de abril de 1792, não foi um deles —caiu num sábado. Nem o Dia do Fico, 9 de janeiro de 1822, uma quarta-feira. Nem o da Independência, 7 de setembro, um sábado. A Guerra do Paraguai começou numa sexta, 13 de dezembro de 1864; em outra, 15 de novembro de 1889, proclamou-se a República; e em ainda outra, 3 de outubro de 1930, caiu a Primeira República.


As mulheres ganharam o direito de voto numa quarta-feira, 24 de fevereiro de 1932. Também numa quarta, 10 de novembro de 1937, Getulio Vargas decretou o Estado Novo. Em 22 de agosto de 1942, um sábado, o Brasil declarou guerra ao Eixo nazifascista e, em 9 de agosto de 1943, uma segunda, criou a Força Expedicionária Brasileira, a FEB. Getulio se matou numa terça, 24 de agosto de 1954. Brasília tornou-se capital numa quinta, 21 de abril de 1960. E Jânio Quadros renunciou à presidência numa sexta, 25 de agosto de 1961.

O golpe de 1º de abril de 1964 foi numa quarta. A imposição do AI-5, numa sexta, 13 de dezembro de 1968 —e, por coincidência, também sua extinção, em 13 de outubro de 1978. Tancredo Neves foi eleito presidente numa terça, 15 de janeiro de 1985. Em 1º de julho de 1994, outra sexta, nasceu o Plano Real. Em 4 de junho de 1997, uma quarta, o Senado, bem pago, aprovou a emenda da reeleição. E por aí vai, nunca aos domingos.

Mas duas datas capitais da nossa história caíram num domingo. Em 22 de abril de 1500, o Descobrimento do Brasil. E, em 8 de janeiro de 2023, o quebra-quebra dos bolsonaristas em Brasília —o fato mais vergonhoso desses 523 anos. Por enquanto.

Vou processar o ChatGPT

É a pergunta fundamental, aquela que não calará nem se responderá jamais. Sábado passado, a vida apresentando suas esquinas mais taciturnas, seus tobogãs mais saltimbancos, eu – já que não podia ir até a Sé de Praga – pedi ajuda à inteligência artificial:

“Quem sou eu?”, perguntei ao seu representante mais próximo, o ChatGPT. “O que fiz, por onde andei, que livros produzi, até chegar a este ponto de interrogação?”, reforcei ao mágico de Oz da civilização cibernética, o Seu Sete da Lira da religião digital.

Por mais orgulhoso leonino que me seja o horóscopo, eu não chegaria ao ponto de um Gilberto Gil, o sábio baiano que, décadas atrás, no meio da letra de “Aquele abraço”, grifou com ênfase o verso “Quem sabe de mim sou eu/ é claro”. Gil lacrou sobre si próprio.

Osval (Cuba)

A psicanálise ajuda muito na investigação, uma cigana formada em física quântica também andou me levando a vidas passadas. Mas eu não repetiria a meu respeito a afirmação peremptória de Gil. O “quem sou eu?” me permanece poeticamente interrogativo – e com mistérios cada vez mais a pintar por aqui.

Eu acabei de ver “Tudo em todo lugar ao mesmo tempo”. O filme se passa nos multiversos das milhares de vidas que vão se criando a cada opção que a gente toma. Por que não?

Já se riu outrora da multidão de heterônimos do Fernando Pessoa, também do Mário de Andrade versejando ser 300, 350, e eles queriam dizer a mesma coisa do filme moderninho. Poetas coisa nenhuma. Eles sabiam de tudo em todo lugar e ao mesmo tempo – o que não é caso do ChatGPT.

Segundo a resposta da inteligência artificial, eu sou autor de “Chão de pequenos” (“o diário da cantora Núbia Lafayette”), “Seu azul” (“homenagem à cidade de Belo Horizonte, onde o autor nasceu”), “O tempo passa como um leopardo” (“coletânea de crônicas sobre as mudanças na sociedade”), entre outras obras que são desconhecidas não só por mim, mas também por todo o resto da internet, vide que esses títulos não existem nem com outros autores.

A desinformação dói. São evidentes os danos à saúde e à felicidade de quem, já fragilizado pela existência dura dos dias, vai até o novo oráculo digital em busca de luz e no lugar encontra apenas mais dúvidas disruptivas sobre sua identidade. Terei mesmo escrito, e um dos tropeções nas pedrinhas portuguesas de Ipanema me apagou da memória, uma coleção de crônicas sobre o Rio de Janeiro com o título de “Em busca do Rio Vermelho”? Fui roteirista de “A grande família”?!

Nelson Rodrigues dizia que o videoteipe é burro, pela incapacidade de registrar a complexidade das emoções humanas. A inteligência artificial tem QI superior, mas ainda deixa a desejar. Arrogante, nem sempre sabe com quem, nem de quem, está falando, e vai em frente, envergonhada de tartamudear a elegância sábia de um “bem, isso eu não sei”.

Qualquer dia desses o ChatGPT receberá nas barras dos tribunais o devido processo legal deste que assina acima. Será réu do delito de ter aumentado a confusão identitária no coração de quem nela já estava. Um grave caso de erro de pessoa – a não ser que eu tenha escrito “O palácio dos urubus” (“sátira política sobre o governo brasileiro”) num de meus milhares de multiversos.

Pensamento do dia

 

Monireh Ahmadi (Irã)