segunda-feira, 3 de abril de 2023

Nosso umbigo

Na semana passada apoiadores do diário britânico The Guardian encontraram um comunicado incomum em suas caixas postais eletrônicas. Assinado pela editora-chefe Katharine Viner, o anúncio informava o resultado de uma investigação de dois anos encomendada a um plantel de eminentes acadêmicos do país. No relatório final, intitulado “Legado e escravização”, o grupo independente concluíra que, sim, o Manchester Guardian (nome original do jornal até 1951) dependera de trabalho escravo em seu nascedouro.

Para o jornal bicentenário, zeloso de sua independência editorial e financeira, foi uma questão de coerência moral ir até o fundo de suas raízes.

Como se sabe, o Guardian não é um matutino qualquer. Ocupa lugar bastante solitário entre as grandes mídias tradicionais de países democráticos. É regido há quase nove décadas por um truste sem fim lucrativo, criado em testamento pelo visionário C.P. Scott, seu mais longevo proprietário e editor. Cabe ao Scott Trust, formado por um conselho de oito integrantes (jornalistas, executivos e representantes externos), financiar o jornal — basicamente por meio dos dividendos gerados por seus investimentos. A ideia central do arranjo está em proteger o jornal de interferências políticas e comerciais. Apesar de sofrer prejuízos marcantes, como boa parte da mídia no mundo todo, o Guardian procura honrar esse compromisso. Isso envolve não só cobrir o presente e olhar para o futuro, como fuçar o próprio passado.


O relatório divulgado na semana passada revelou que a fortuna do fundador do jornal, John Edward Taylor, em 1821, assim como a de nove dos seus 11 financiadores, derivou em boa parte da indústria algodoeira de Manchester, cuja matéria-prima vinha de plantações do outro lado do Atlântico, nas Américas. Justamente onde trabalhavam os milhões de negros traficados da África. Um dos financiadores do jornal não apenas comerciava o algodão cru d’além-mar, como era dono de uma plantação de açúcar na Jamaica com 122 negros escravizados. Seria, portanto, difícil não concluir que esses interesses tenham influído na política editorial do matutino, à época. Em episódio de 1833, para citar um só exemplo, quando os donos desses escravizados exigiram uma indenização polpuda para abrir mão de sua “propriedade humana”, o editorial do Guardian posicionou-se a favor do pleito.

— O preço da carne humana do Mississipi era regulado pelo preço do algodão em Manchester — já constatara o grande abolicionista americano Frederick Douglass, que testou como poucos a base constitucional da escravidão nos Estados Unidos.

Por que então o jornal investiu em escavação tão funda de sua história? Porque o Guardian é o Guardian. O fato de aqueles tempos serem outros não pode servir de desculpa para um crime contra a humanidade, explica a editora-chefe de hoje.

Foi justamente um pedido de desculpas formal que a fundação do Guardian divulgou com o relatório, acompanhado do anúncio de ações de justiça reparadora. Serão mais de £ 10 milhões (perto de R$ 62,5 milhões) em programas na Jamaica e alhures. Dado o papel crucial da escravidão para a persistência do racismo e das desigualdades sociais de hoje, o Guardian se compromete a encarar esse abismo.

— Acredito que diversidade é um imperativo tanto moral quanto prático para uma organização de mídia — escreveu Katharine Viner. Ela se socorreu também em James Baldwin:

— Nem tudo o que encaramos pode ser mudado, mas nada pode ser mudado até que seja encarado. No Reino Unido, negros representam apenas 0,2% dos jornalistas em atividade, enquanto somam 3% da população do país.

E no país que recebeu o maior fluxo escravagista de negros da África? Nas redações deste Brasil em que 56% da população se declara negra ou parda, a mesma representatividade despenca para tímidos 20% entre os profissionais de jornalismo. Como conciliar tamanho distanciamento social com um jornalismo que precisa injetar confiança e confiabilidade em seus leitores?

Esse contrato não escrito com a sociedade, por parte de uma imprensa madura, exige determinação para exumar o passado, clareza para analisar o presente e imaginação para apontar o amanhã. O Guardian está tentando. O momento atual parece excelente para também aqui o jornalismo profissional se repensar de ponta-cabeça. Começando pelo próprio umbigo. O Brasil é tão maior, mais rico, mais diverso, mais esperançoso e mais adulto do que nós, jornalistas da assim chamada “grande imprensa”, conseguimos ver! Melhor abrir o olho.

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