segunda-feira, 3 de abril de 2023

Vou processar o ChatGPT

É a pergunta fundamental, aquela que não calará nem se responderá jamais. Sábado passado, a vida apresentando suas esquinas mais taciturnas, seus tobogãs mais saltimbancos, eu – já que não podia ir até a Sé de Praga – pedi ajuda à inteligência artificial:

“Quem sou eu?”, perguntei ao seu representante mais próximo, o ChatGPT. “O que fiz, por onde andei, que livros produzi, até chegar a este ponto de interrogação?”, reforcei ao mágico de Oz da civilização cibernética, o Seu Sete da Lira da religião digital.

Por mais orgulhoso leonino que me seja o horóscopo, eu não chegaria ao ponto de um Gilberto Gil, o sábio baiano que, décadas atrás, no meio da letra de “Aquele abraço”, grifou com ênfase o verso “Quem sabe de mim sou eu/ é claro”. Gil lacrou sobre si próprio.

Osval (Cuba)

A psicanálise ajuda muito na investigação, uma cigana formada em física quântica também andou me levando a vidas passadas. Mas eu não repetiria a meu respeito a afirmação peremptória de Gil. O “quem sou eu?” me permanece poeticamente interrogativo – e com mistérios cada vez mais a pintar por aqui.

Eu acabei de ver “Tudo em todo lugar ao mesmo tempo”. O filme se passa nos multiversos das milhares de vidas que vão se criando a cada opção que a gente toma. Por que não?

Já se riu outrora da multidão de heterônimos do Fernando Pessoa, também do Mário de Andrade versejando ser 300, 350, e eles queriam dizer a mesma coisa do filme moderninho. Poetas coisa nenhuma. Eles sabiam de tudo em todo lugar e ao mesmo tempo – o que não é caso do ChatGPT.

Segundo a resposta da inteligência artificial, eu sou autor de “Chão de pequenos” (“o diário da cantora Núbia Lafayette”), “Seu azul” (“homenagem à cidade de Belo Horizonte, onde o autor nasceu”), “O tempo passa como um leopardo” (“coletânea de crônicas sobre as mudanças na sociedade”), entre outras obras que são desconhecidas não só por mim, mas também por todo o resto da internet, vide que esses títulos não existem nem com outros autores.

A desinformação dói. São evidentes os danos à saúde e à felicidade de quem, já fragilizado pela existência dura dos dias, vai até o novo oráculo digital em busca de luz e no lugar encontra apenas mais dúvidas disruptivas sobre sua identidade. Terei mesmo escrito, e um dos tropeções nas pedrinhas portuguesas de Ipanema me apagou da memória, uma coleção de crônicas sobre o Rio de Janeiro com o título de “Em busca do Rio Vermelho”? Fui roteirista de “A grande família”?!

Nelson Rodrigues dizia que o videoteipe é burro, pela incapacidade de registrar a complexidade das emoções humanas. A inteligência artificial tem QI superior, mas ainda deixa a desejar. Arrogante, nem sempre sabe com quem, nem de quem, está falando, e vai em frente, envergonhada de tartamudear a elegância sábia de um “bem, isso eu não sei”.

Qualquer dia desses o ChatGPT receberá nas barras dos tribunais o devido processo legal deste que assina acima. Será réu do delito de ter aumentado a confusão identitária no coração de quem nela já estava. Um grave caso de erro de pessoa – a não ser que eu tenha escrito “O palácio dos urubus” (“sátira política sobre o governo brasileiro”) num de meus milhares de multiversos.

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