Um amigo meu, dono de um condomínio horizontal, disse que não dorme desde as eleições porque tem certeza de que o condomínio dele será invadido e seus lotes serão tomados para o assentamento dos menos favorecidos. Transtornado, ele acredita piamente nisto. No Paraná, um grupo entoa o hino nacional para um pneu, de caminhão. No Pernambuco, um manifestante se agarra na frente de um caminhão para tentar impedir o seu percurso. Em Santa Catarina, infantes estendem os braços em uma alusão nazista na esperança sabe-se lá do quê. No Rio Grande do Sul, manifestantes apontam seus celulares para os céus com mensagens de SOS, no anseio de que luzes não identificadas em Porto Alegre sejam Ovnis que venham salvar o país sabe-se lá do quê. Na frente dos quarteis, grupos se aglomeram pedindo intervenção militar, inócua atitude, posto ser o Exército, em sua maioria, legalista. Alguns assassinatos de cunho político se vão, vidas que se vão pelo nada do amanhã. Que país é esse? Este é o Brasil?
Em Pesquisas Mundiais da Sensus, o Brasil é avaliado positivamente por 74% como um país bom para se viver, alegre e hospitaleiro para 89% da população mundial. O que aconteceu por aqui?
Qual legado Bolsonaro deixou? Na economia, o PIB caiu de US$ 1,9 trilhões para US$ 1,6 trilhões. Somente 25% acham que seu governo estava no rumo. Mais de 60% da população desaprova a política que foi conduzida na saúde, educação, meio ambiente, relações internacionais. Não muito deixou.
Bolsonaro tem por base as classes medias iliteratas, base social do fascismo, tão bem descrito nos trabalhos de Hannah Arendt. Este grupo, antes sem voz na sociedade, se soltou das amarras tradicionais para a violência, pautados que são pelo mal exemplo de seu líder. Acham que podem fazer o que quiserem, na ofensa e agressão contínua a cidadãos e personalidades nas ruas, restaurantes, hotéis, estádios, aeroportos. Enquanto isto, seus líderes urgem para compor com o novo governo, na tentativa do resguardo de suas pessoas físicas e quem sabe a manutenção de seus privilégios.
Ainda, mais bizarro que possa parecer, parte dos bolsonaristas torcem hoje contra a seleção brasileira, sabe-se lá por quê. Como cita Roberto Damatta em” O que faz do brasil, Brasil!”, o primeiro Brasil com b minúsculo da questão social, e o segundo com B maiúsculo do nosso ufanismo, no Brasil a música, o futebol e o carnaval são símbolos de nossa cultura, que nos igualam e nos unem em uma amalgama social. Torcer contra a seleção brasileira é agredir os nossos valores. Na Mitologia Grega, não se deve abrir a Caixa de Pandora, onde estão contidos todos os males que afligem a humanidade. Bolsonaro deteriorou a economia e atacou a cultura ao mesmo tempo, o que foi fatal para os seus propósitos políticos. Bolsonaro liberta a violência e o ódio, verdadeiro legado de sua existência.
Tempos estranhos.
"Entre o Exército e o militarismo, vai um despenhadeiro. O militarismo é a canceração do Exército. Está para o Exército como o clericalismo para a religião, o demagogismo para o governo popular, o egoísmo para o eu. O militarismo pode trazer vantagens a militares esquecidos do voto profissional. Mas, para o Exército, é o descrédito, a ruína, o ódio público. Ora, a política no Exército leva fatalmente ao militarismo. Entre o Exército e a política se deve, portanto, levantar a mais alta muralha."
Quem disse isso? Um solerte esquerdista? Não —Rui Barbosa, em 21 de junho de 1893, no Jornal do Brasil. Se vivesse em nosso tempo, o baiano ficaria estarrecido ao ver como o Exército brasileiro entregou-se a um presidente que militarizou a política e politizou as Forças Armadas a grau jamais concebido. E, mais incrível, como esse presidente foi um elemento que, entre o final dos anos 1980 e o início dos 1990, era persona non gratissima na corporação —militar expulso por terrorismo e, já como político, proibido por ela de entrar nos quartéis.
O longo caminho de Jair Bolsonaro para reverter tamanho opróbrio e tornar-se chefe supremo dessas mesmas Forças Armadas, com poder para acoelhar generais, tratá-los como recrutas e insuflá-los ao golpismo, está no livro "Poder Camuflado", de Fabio Victor, de que falei aqui na quinta-feira. Os detalhes de como isso se deu não cabem neste espaço. É ler para crer como um sujeito aparentemente tão tosco pôs a seus pés homens que se pretendem estudiosos, responsáveis e justos.
Talvez Bolsonaro não fosse tão tosco. Talvez tenha aprendido a ler a cabeça dos militares que, no passado, estabanadamente desafiara. Talvez os tenha convencido de que, no poder, botaria em prática as ideias deles. Talvez por isso os militares passassem a ver nele o messias cuja volta esperavam.
Não tem como errar. Todas as opções acima estão corretas.
O homem foi programado por Deus para resolver problemas. Mas começou a criá-los em vez de resolvê-los. A máquina foi programada pelo homem para resolver os problemas que ele criou. Mas ela, a máquina, está começando também a criar problemas que desorientam e engolem o homem. A máquina continua crescendo. Está enorme. A ponto de que talvez o homem deixe de ser uma organização humana. E como perfeição de ser criado, só existirá a máquina. Deus criou um problema para si próprio. Ele terminará destruindo a máquina e recomeçando pela ignorância do homem diante da maçã. Ou o homem será um triste antepassado da máquina; melhor o mistério do paraíso.Clarice Lispector, "Todas as crônicas"
Sou da imprensa anterior ao copy desk. Tinha treze anos quando me iniciei no jornal, como repórter de polícia. Na redação não havia nada da aridez atual e pelo contrário: — era uma cova de delícias. O sujeito ganhava mal ou simplesmente não ganhava. Para comer, dependia de um vale utópico de cinco ou dez mil-réis. Mas tinha a compensação da glória. Quem redigia um atropelamento julgava-se um estilista. E a própria vaidade o remunerava. Cada qual era um pavão enfático. Escrevia na véspera e no dia seguinte viase impresso, sem o retoque de uma vírgula. Havia uma volúpia autoral inenarrável. E nenhum estilo era profanado por uma emenda, jamais.
Durante várias gerações foi assim e sempre assim. De repente, explodiu o copy desk. Houve um impacto medonho. Qualquer um na redação, seja repórter de setor ou editorialista, tem uma sagrada vaidade estilística. E o copy desk não respeitava ninguém. Se lá aparecesse um Proust, seria reescrito do mesmo jeito. Sim, o copy desk instalou-se como a figura demoníaca da redação.
Falei no demônio e pode parecer que foi o Príncipe das Trevas que criou a nova moda. Não, o abominável Pai da Mentira não é o autor do copy desk. Quem o lançou e promoveu foi Pompeu de Sousa. Era ainda o Diário Carioca, do Senador, do Danton. Não quero ser injusto, mesmo porque o Pompeu é meu amigo. Ele teve um pretexto, digamos assim, histórico, para tentar a inovação.
Havia na imprensa uma massa de analfabetos. Saíam as coisas mais incríveis. Lembro-me de que alguém, num crime passional, terminou assim a matéria: — “E nem um goivinho ornava a cova dela”. Dirão vocês que esse fecho de ouro é puramente folclórico. Não sei e talvez. Mas saía coisa parecida. E o Pompeu trouxe para cá o que se fazia nos Estados Unidos — o copy desk.
Começava a nova imprensa. Primeiro, foi só o Diário Carioca; pouco depois, os outros, por imitação, o acompanharam.
Rapidamente, os nossos jornais foram atacados de uma doença grave: — a objetividade. Daí para o “idiota da objetividade” seria um passo. Certa vez, encontrei-me com o Moacir Werneck de Castro. Gosto muito dele e o saudei com a mais larga e cálida efusão. E o Moacir, com seu perfil de lord By ron, disse para mim, risonhamente: — “Eu sou um idiota da objetividade”.
Também Roberto Campos, mais tarde, em discurso, diria: — “Eu sou um idiota da objetividade”. Na verdade, tanto Roberto como Moacir são dois líricos. Eis o que eu queria dizer: — o idiota da objetividade inunda as mesas de redação e seu autor foi, mais uma vez, Pompeu de Sousa. Aliás, devo dizer que o copy desk e o idiota da objetividade são gêmeos e um explica o outro.
E toda a imprensa passou a usar a palavra “objetividade” como um simples brinquedo auditivo. A crônica esportiva via times e jogadores “objetivos”. Equipes e jogadores eram condenados por falta de objetividade. Um exemplo da nova linguagem foi o atentado de Toneleros. Toda a nação tremeu. Era óbvio que o crime trazia, em seu ventre, uma tragédia nacional. Podia ser até a guerra civil. Em menos de 24 horas o Brasil se preparou para matar ou para morrer. E como noticiou o Diário Carioca o acontecimento? Era uma catástrofe. O jornal deu-lhe esse tom de catástrofe? Não e nunca. O Diário Carioca nada concedeu à emoção nem ao espanto. Podia ter posto na manchete, e ao menos na manchete, um ponto de exclamação. Foi de uma casta, exemplar objetividade. Tom estrita e secamente informativo. Tratou o drama histórico como se fosse o atropelamento do Zezinho, ali da esquina.
Era, repito, a implacável objetividade. E, depois, Getúlio deu um tiro no peito. Ali estava o Brasil, novamente, cara a cara com a guerra civil. E que fez o Diário Carioca? A aragem da tragédia soprou nas suas páginas? Jamais. No princípio do século, mataram o rei e o príncipe herdeiro de Portugal. (Segundo me diz o luso Álvaro Nascimento, o rei tinha o olho perdidamente azul). Aqui, o nosso Correio da Manhã abria cinco manchetes. Os tipos enormes eram um soco visual. E rezava a quinta manchete: “HORRÍVEL EMOÇÃO!”. Vejam vocês: — “HORRÍVEL EMOÇÃO!”.
O Diário Carioca não pingou uma lágrima sobre o corpo de Getúlio. Era a monstruosa e alienada objetividade. As duas coisas pareciam não ter nenhuma conexão: — o fato e a sua cobertura.
Estava um povo inteiro a se desgrenhar, a chorar lágrimas de pedra. E a reportagem, sem entranhas, ignorava a pavorosa emoção popular. Outro exemplo seria ainda o assassinato de Kennedy.
Na velha imprensa as manchetes choravam com o leitor. A partir do copy desk, sumiu a emoção dos títulos e subtítulos. E que pobre cadáver foi Kennedy na primeira página, por exemplo, do Jornal do Brasil. A manchete humilhava a catástrofe. O mesmo e impessoal tom informativo. Estava lá o cadáver ainda quente. Uma bala arrancara o seu queixo forte, plástico, vital. Nenhum espanto da manchete. Havia um abismo entre o Jornal do Brasil e a tragédia, entre o Jornal do Brasil e a cara mutilada. Pode-se falar na desumanização da manchete.
O Jornal do Brasil, sob o reinado do copy desk, lembrame aquela página célebre de ficção. Era uma lavadeira que se viu, de repente, no meio de uma baderna horrorosa. Tiro e bordoada em quantidade. A lavadeira veio espiar a briga. Lá adiante, numa colina, viu um baixinho olhando por um binóculo. Ali estava Napoleão e ali estava Waterloo. Mas a santa mulher ignorou um e outro; e veio para dentro ensaboar a sua roupa suja. Eis o que eu queria dizer: — a primeira página do Jornal do Brasil tem a mesma alienação da lavadeira diante dos napoleões e das batalhas.
E o pior é que, pouco a pouco, o copy desk vem fazendo do leitor um outro idiota da objetividade. A aridez de um se transmite ao outro. Eu me pergunto se, um dia, não seremos nós 80 milhões de copy desks? Oitenta milhões de impotentes do sentimento. Ontem, falava eu do pânico de um médico famoso. Segundo o clínico, a juventude está desinteressada do amor ou por outra: — esquece antes de amar, sente tédio antes do desejo. Juventude copy desk, talvez.
Dirá alguém que o jovem é capaz de um sentimento forte. Tem vida ideológica, ódio político. Não sei se contei que vi, um dia, um rapaz dizer que dava um tiro no Roberto Campos. Mas o ódio político não é um sentimento, uma paixão, nem mesmo ódio. É uma pura, vil, obtusa palavra de ordem.Nelson Rodrigues
Tzu-chang perguntou a Confúcio: “Como um cavalheiro deve ser para que digam que ele conseguiu distinguir-se?”. O Mestre disse: “Que diabos você quer dizer com ‘distinguir-se’?”.
Tzu-chang respondeu: “O que tenho em mente é um homem que tem certeza de ser conhecido, sirva ele em um reino ou em uma família nobre”. O Mestre disse: “Isso é ser conhecido, não se distinguir. O termo ‘distinguir-se’ descreve um homem que é correto por natureza e que gosta do que é certo, sensível às palavras das outras pessoas e observador da expressão nos rostos delas e que sempre se preocupa em ser modesto. Por outro lado, o termo ‘ser conhecido’ descreve um homem que não tem dúvidas de que é benevolente, quando tudo o que ele está fazendo é mostrar uma fachada de benevolência que não condiz com suas ações”.
Ao palmilhar os caminhos de Confúcio, o norte-americano Michael J. Sandel, em seu livro “A Tirania do Mérito”, vai cuidar dos valores que inspiram a meritocracia. O autor contrapõe delicadamente a virtude e o vício no mesmo movimento de constituição dos comportamentos dos indivíduos nas sociedades contemporâneas. “Se meu sucesso é obra minha, algo que ganhei por meio do talento e trabalho duro, posso me orgulhar disso, confiante de que mereço as recompensas que minhas conquistas trazem. Uma sociedade meritocrática, então, é duplamente inspiradora: afirma uma poderosa noção de liberdade e dá às pessoas o que ganharam para si mesmas e, portanto, merecem. Embora seja inspirador, o princípio do mérito pode tomar um rumo tirânico, não apenas quando as sociedades não permitem que seja cumprido, mas também - especialmente - quando o fazem. O lado negro do ideal meritocrático está embutido em sua promessa mais sedutora, a promessa de autorrealização pessoal. Essa promessa vem com um fardo difícil de suportar. O ideal meritocrático coloca grande peso na noção de responsabilidade pessoal”.
Ao escolher essa forma de tratamento da meritocracia, Sandel evita os caminhos dos pensadores binários que separam o vício da virtude, o bem do mal. Ele mergulha esses dois conceitos nas profundezas do espírito que anima a vida concreta dos indivíduos-habitantes das sociedades contemporâneas, sempre enredadas na maldição de negar o que afirmam e de afirmar o que negam.
A busca pelo enriquecimento, pela diferenciação do consumo e dos estilos de vida é a marca registrada da concorrência na sociedade de massa. Os impulsos para acompanhar os hábitos, gostos e gozos dos bem aquinhoados esboroam-se nas angústias da desigualdade. A maioria não consegue realizar seus desígnios.
Sandel reconhece que, em sua configuração atual, as sociedades escancaram a incapacidade de entregar o que prometem aos cidadãos. A celebração do sucesso colide com a exclusão social promovida pela transformação tecnológica e pela migração dos empregos para as regiões de baixos salários.
A pressão competitiva-aquisitiva desencadeia transtornos psíquicos nos indivíduos-utilitaristas consumidores. Os trabalhos de destruição da subjetividade são realizados por uma sociedade que precisa exaltar o sucesso econômico e abolir o conflito. Nesse ambiente competitivo, algozes e vítimas das promessas irrealizadas de felicidade e segurança assestam seus ressentimentos contra os “inimigos” imaginários, produtores do seu desencanto. Os inimigos são os outros: os imigrantes, os pobres preguiçosos que preferem o Bolsa Família e recusam a vara de pescar, comunistas imaginários etc.
Aqui caberia recorrer a Freud para tratar do narcisismo dos ressentidos. Sigmund observa: “O narcisista parece ter realmente retirado sua libido das pessoas e das coisas no mundo exterior, sem tê-las substituído por outras em sua fantasia. Qual é o destino da libido retirada dos objetos na esquizofrenia? A megalomania, característica desses estados, indica a resposta... A libido subtraída do mundo exterior foi trazida para dentro do eu, emergindo assim um estado ao qual podemos dar o nome de narcisismo”.
Minhas deambulações curiosas me levaram à leitura do artigo dos psicanalistas Camila de Araujo Reinert e Matias Strass burger: “Um, Nenhum, Cem Mil” - Uma breve compreensão do narcisismo em Green através de um personagem literário de Pirandello e de um caso clínico”. Green é o psicanalista André Green, considerado um dos mais criativos herdeiros de Sigmund Freud. O artigo traz uma epígrafe copiada do Livro III das metamorfoses de Ovídio, o grande poeta romano.
“O adolescente (Narciso), cansado pelo esforço da caça e pelo calor, estendeu-se no chão, atraído pelo aspecto do lugar e pela fonte. Mas, logo que procura saciar a sede, uma outra sede surge dentro dele. Enquanto bebe, arrebatado pela imagem de sua beleza que vê, apaixona-se por um reflexo sem substância, toma por corpo o que não passa de uma sombra. Fica extático diante de si mesmo, imóvel, o rosto parado, como se fosse uma estátua de mármore de Paros. Deitado no chão, contempla dois astros, seus olhos, os cabelos dignos de Baco e de Apolo, o rosto imberbe, o pescoço ebúrneo, a linda boca e o rubor que cobre a cútis branca como a neve. Admira tudo, pelo que é admirado ele próprio. Deseja a si mesmo, em sua ignorância, e, louvando, é a si mesmo que louva. Inspira a paixão que sente, e, ao mesmo tempo, acende e arde. Quantas vezes beijou em vão a água enganosa! Quantas vezes, para abraçar o pescoço que via, mergulhou os braços na água, sem conseguir abraçar-se”.
Na aurora do século XXI, Elisabeth Roudinesco ausculta os rumores narcísicos cochichados nos bastidores da sociedade contemporânea. Diz ela que estamos sempre nos indagando o que preferimos: as figuras mais puras, as maiores, as mais medíocres, os maiores charlatães, as mais criminosas?
O sexo não é experimentado como o companheiro do desejo, mas como um desempenho, uma ginástica, como a higiene para os órgãos, o que só pode levar à confusão afetiva. “Qual é o tamanho ideal da vagina, o comprimento correto do pênis? Com que frequência? Quantos parceiros em uma vida, em uma semana, em um único dia, minuto a minuto?”. O avanço exasperado da “quantidade” encolhe o espaço de fruição da experiência amorosa. Não por acaso, estamos assistindo a um aumento nas queixas de todos os tipos.
Cada vez mais o mundo gira em uníssono. Tudo acaba sendo universal, a começar pela política. Vemos, por exemplo, o ressurgimento da nova extrema-direita com as suas várias matizes, não excluindo as de matiz nazi e fascista. Começou como algo isolado e até antiquado, mas logo tomou forma e incendiou o planeta. E já está chegando a todos os cantos.
Pensar que esse novo fenômeno que preocupa a todos pode se limitar a alguns países é pura utopia. Veio para ficar e se multiplicar como um vírus. Aqui no Brasil, essa nova direita dominou tudo com graves consequências, não só políticas, mas também econômicas, que levaram 30 milhões a passar fome.
Lula, o novo presidente que em semanas tomará posse como chefe de Estado, entendeu isso de imediato com a acuidade política que o caracteriza. Ele reconheceu que em seu terceiro mandato as coisas vão ser diferentes do que no passado, já que a extrema-direita de Bolsonaro continuará não se conformando com a derrota e fará de tudo para impedi-lo de governar. Desta vez, não se trata de uma simples mudança de poder, mas de ter que enfrentar aqueles que negam os valores da democracia, demonizam as liberdades e perseguem os valores democráticos.
A questão que os analistas políticos dos continentes onde esta nova extrema direita está se enraizando começam a enfrentar é como lidar com ela, já que ela se apresenta como uma nova bactéria resistente a todos os seus antídotos. Talvez estejamos diante de algo novo e ainda não decifrado. De nada adiantaria enfrentá-lo com força e até agradaria seus anfitriões e seguidores , amantes da violência e do olho por olho. Para essa nova ultradireita, o discurso do diálogo soa obsoleto. Ela prefere o confronto e até a violência. A coisa do diálogo soa como algo de outros tempos desprezíveis.
Em meio à preocupação com esta ascensão repentina da extrema direita mundial – com seus líderes medíocres sob todos os pontos de vista, mas corajosos e que acreditam firmemente na violência-, os analistas políticos começam a estudar qual poderia ser o melhor antídoto contra esta nova praga política que está a envenenar a própria essência da democracia, que é o diálogo, a liberdade e o pluralismo de ideias.
Alguns dizem que ainda não existe, como em outros momentos da história, um verdadeiro profeta capaz de entender o novo fenômeno político e analisá-lo em sua própria essência, pois nada, nem mesmo na natureza, nasce por acaso.
É verdade que a obra How Democracies Die , de Steven Lewitsky e Daniel Zibblatt, aborda com inteligência a questão das democracias ameaçadas pelo novo populismo. No entanto, desde então as coisas mudaram rapidamente e a nova ultradireita escapou aos cânones do passado. Estamos diante de um fenômeno novo que só conseguiremos entender e enfrentar se aceitarmos que é uma forma inédita de atacar as próprias raízes dos valores da liberdade.
O caso do bolsonarismo no Brasil, talvez mais do que o do trumpismo nos Estados Unidos, poderia servir para tentar entender a possível “novidade” dessa nova direita radical e extrema, violenta e alérgica a todas as liberdades e inovações oferecidas pelos tempos modernos, e isso supõe a antipolítica em estado puro.
Dito isto, o que ainda não foi abordado com seriedade é por que esse fenômeno nasceu agora e com tanta força que parece um incêndio difícil de apagar. Sem dúvida, muito disso está diretamente relacionado à crise, também global, dos valores da democracia e da política como tal que, para dizer em palavras simples, que todos entendem, empobreceu e deixou de ser uma maneira de organizar de forma justa e plural o modo de convivência e organização da sociedade e dos povos, para se tornar aos olhos de todos um negócio econômico e de privilégios pessoais. Entra-se na política, ou assim parece, para ganho pessoal, um jogo feito à luz do sol e que já não embaraça quem se vale dele.
Essa mercantilização da política e o abuso dela para ganho pessoal não é mais escondido, é visível para todos e é feito até no nível do Congresso Nacional, como acaba de acontecer aqui no Brasil com o vergonhoso e descarado “orçamento secreto”, graças ao qual os deputados recebem milhões de um fundo para aplicar em obras com fins claramente eleitorais. E é secreto porque ninguém deve saber quem recebe e quanto. O STF está tentando anular esse orçamento e até Lula já admitiu que se continuasse em vigor teria que contar com ele se quisesse governar.
Essa situação de degeneração da democracia que permanece como uma noz vazia de seu verdadeiro significado inicial poderia explicar por que existem milhões de pessoas, hoje, em todos os países que votam na nova extrema direita não porque sejam fascistas, inimigos da liberdade, violentos por natureza ou desconhecem as novidades que a ciência está preparando. Muitos o fazem, como já aconteceu aqui no Brasil, não porque sejam naturalmente contrários às liberdades. É algo mais.
Analisando o resultado das últimas eleições brasileiras que levaram à vitória de Lula , o que espanta é que houve milhões de pessoas que, mesmo sabendo das violentas aberrações de Bolsonaro e da desolação que ele criou no país, votaram nele novamente .
O que começa a ficar claro é que há milhões de pessoas no mundo, talvez desinformadas, que se sentem envergonhadas e indignadas com os usos e abusos cometidos por políticos ditos democráticos, não raras vezes com a conivência da própria justiça que participa da mesma festa. Isso leva as pessoas mais simples a dizerem com desdém que “todos são iguais”.
Não o são, mas é verdade que o crescimento da nova extrema-direita começa a surgir como resposta ao descrédito universal em que caíram os verdadeiros valores da democracia e das liberdades individuais e coletivas. Essas pessoas, desanimadas, manifestam seus piores instintos de violência.
São aqueles instintos que todos carregamos conosco desde o surgimento do Homo sapiens e diante dos quais somente os valores da cultura, do diálogo e da solidariedade universal podem servir de dique seguro contra a onda de violência, de todos os matizes, que ameaça nosso pequeno planeta invisível e acaba envenenando nossa convivência.