quarta-feira, 31 de maio de 2023

Húbris, engodos e crenças: 5 erros fatais na política

Benjamin Franklin não se importaria se eu pegasse na frase dele e lhe acrescentasse que nada é mais certo neste mundo do que a morte, os impostos e os políticos a fazerem asneiras, mais ou menos percetíveis da opinião pública. Errar é humano, e a política não oferece exceção, muito pelo contrário. Aqui fica uma listagem de alguns erros fatais na política. E, sim, qualquer semelhança com a atualidade política não será coincidência.

1. Deixar-se toldar pela húbris. Vem de longe, pelo menos desde a Antiguidade, a ideia de que o poder vicia e corrompe até a mais bem-intencionada das almas. Já os romanos o sabiam com clareza, quando estipularam que, durante os desfiles de triunfo perante o povo, após uma batalha, os generais vitoriosos deviam ter um escravo ao lado para lhes sussurrar ao ouvido as palavras “memento mori”. Este “lembra-te de que és mortal”, repetido por várias vezes numa caminhada de glória, deveria fazê-los descer à terra e desinsuflar a sensação de superioridade e a arrogância que vem com ela. Não funcionou com Júlio César, mas a ideia era boa.


Foram os gregos que inventaram o conceito de húbris, que representa a insolência dos poderosos e que, segundo a mitologia, afrontava os deuses e acabava sempre em tragédia. Seriam precisos vários séculos até que a húbris fosse cunhada de síndrome, um transtorno de personalidade associado aos cargos de poder. São traços desta síndrome de que padecem muitos políticos que se prolongam no poder, a autoconfiança excessiva que se confunde com uma sensação de omnipotência, a perda de contacto com a realidade e a incompetência, que se traduz em desfechos negativos desvalorizados e causados por este distanciamento.

Se a política precisa de carisma e de autoconfiança, a húbris é fatal. Mais tarde ou mais cedo, o poder que sobe à cabeça traz péssimos resultados.

2. Tomar os eleitores por parvos. Eis um erro comum de muitos responsáveis políticos: desvalorizar a capacidade de compreensão e de análise dos eleitores, acreditando na ideia de que estes não percecionam o que está a correr mal, porque se concentram nas suas “pequenas” vidas. A economia importa, é um facto, e no topo das preocupações dos cidadãos está sempre a sua situação financeira. Já Maquiavel dizia que “os homens esquecem mais rapidamente a morte do pai do que a perda do património”. Mas, se uma situação pessoal pior se arrasta ou se agrava, é preciso encontrar um “culpado” – e a culpa recai facilmente em quem está no poder. Não há tolerância com o erro que sempre dure, sobretudo se as pessoas andarem infelizes e os bolsos estiverem mais vazios.

3. Relacionado com este erro está outro: manter uma relação difícil com a verdade. Há quem diga que a política é a arte de mentir de propósito. Não pode ser. Só há uma verdade, não várias. Só existe uma história rigorosa, não uma amálgama de versões moldáveis a bel-prazer. Os eleitores, lá está, não são parvos e gostam pouco de ser claramente enganados. Uma mentira continua a ser fatal para a credibilidade de um político.

4. Acreditar piamente nas sondagens. Eis um erro de palmatória, como se viu, aliás, nas eleições legislativas passadas. As sondagens, cujo tratamento jornalístico é muitas vezes enganador e superficial, não são profecias que se autoalimentam. Muita coisa pode influenciar negativamente a captação da perceção e das intenções de voto dos eleitores. Desde logo, as sondagens podem ser malfeitas, tendenciosas nas questões e subjetivas no tratamento. Por outro lado, elas têm efeitos dinâmicos sobre a realidade e acabam, muitas vezes, por condicionar desfechos diferentes dos que previam. Quanto maior o número de indecisos, mais perigoso é fazer previsões, até porque o eleitor puramente racional é um mito.

5. Pensar que não há alternativa. Eis um dos erros mais comuns em lugares de poder, seja na política seja nas empresas: achar-se insubstituível. Acredita-se na inércia das pessoas, na sua humana aversão ao risco, e desvaloriza-se assim o adversário ou o concorrente. Só que, perante a necessidade, as alternativas constroem-se. Em democracia, há sempre saídas e soluções. Estas podem, é um facto, ser piores do que as que existem, mas isso os eleitores só descobrem quando o mal está feito.

Pensamento do Dia

 


Mais Carros, Minha Vida

Se a nova política industrial brasileira — a neoindustrialização — for avançar nesta picada, melhor nem começar. Não se aprende com a História. Subsídio à indústria automotiva? Já foi. Já houve. Várias vezes. Não deu certo. Iniciativa fracassada, cuja volta só se explica sob a forma de carinho a empresário não competitivo.

Justo será apor o “mais” à questão. Mais subsídio à indústria automotiva? Em 2023? Sim. Neoindustrialização. Velhos recursos pela nova industrialização. A equação não fecha. Novos recursos para adiar a falência da indústria velha. Os termos adequados.

O governo acarinha; nós pagamos a conta — que ficará maior, acrescido o custo do improviso: programa ruim, de ineficiência comprovada e divulgado sem cálculos elementares; a Fazenda que rebole para que o esqueleto (o arcabouço) tenha caixa. Assim o presidente se engaja em campanha para minimizar prejuízo setorial.


Mais subsídio para a indústria automotiva, incentivo ora dedicado à figura do carro popular. É criativo. Desonera-se em nome de bem que não existe faz tempo — o carro popular. Sejamos criativos também. O pacote — a campanha — não será produto de trama muito diferente desta que fantasio. O industrial pátrio encontra Lula e chora miséria. A blitz do chororô. Padrão. A culpa é do mundo. Pede socorro. O presidente se compromete a ajudar. Mas, adverte, tem de ser para benefício do povo. Com impacto no preço do carro popular. Que — repita-se — não existe mais. Detalhe.

A intenção é boa. Né? Romântica. Avante! Na base do dá-teu-jeito-aí, Lula manda Geraldo Alckmin levantar o troço. Surge o “Mais Carros, Minha Vida”. Surge, no ritmo do chutão, sem qualquer estudo. No abafa. E não tardaria até que tivéssemos o presidente da República abrindo evento — suposta apresentação do pacote — para então anunciar que o anúncio, razão de ser do convescote, não ocorreria. O programa não estava pronto. Faltara a etapa matemática. Precisaria de mais 15 dias.

Na exposição de motivos para o projeto, que só chegaria ao jurídico à véspera do evento, a equipe de Alckmin, também vice-presidente, esteve à vontade para simular quanto a União deixaria de arrecadar com a medida rebatendo (abatendo) o impacto via projeção de aumento de receitas em decorrência das vendas de automóveis geradas pelo programa. Que tal? A esse nível de profissionalismo chegamos.

A Lei de Responsabilidade Fiscal — convém lembrar — continua vigente. Ainda. E veda essa modalidade de comércio de terrenos na Lua. Novos gastos, incluídos os tributários, precisam ser compensados, sob apontamento objetivo, ou com cortes de despesas — isso, nem pensar — ou novas receitas. Aumento de impostos, por exemplo. (Questão de tempo.) Nunca com a perspectiva de arrecadação sonhada sob projeto que pode dar errado. Dará.

Beabá. E frustração. O empresário queria a cousa para já. Fez beiço. Será que o governo poderia ao menos anunciar os parâmetros, os critérios? Sim. Não há cálculos, nem os simples. Nada que impedisse o informe de que serão contemplados os consumos de carros até R$ 120 mil, o mais barato entre nós a cerca de R$ 65 mil, sob descontos com teto de quase 11%. Programa temporário, que Fernando Haddad quer que dure entre três e quatro meses — a maneira que encontrou para expressar ser contrário ao bicho.

Programa de quatro meses é programa inexistente — deseja Haddad. Terá sorte se ficar em um ano. Esses impulsos sempre nascem provisórios. Acabam ficando. Fato é que nem o prazo — o prometido — sabe-se ao certo. Ao certo se sabe que, a — pechinchando — R$ 60 mil, um automóvel talvez seja acessível para a classe média. Talvez. Certamente não será popular. Nem para a classe média.

Isso, a fachada, não importa. A vida do “Mais Carros, Minha Vida” é a do industrial automotivo brasileiro. O programa é (popular) para ele. Para que ao menos mantenha os empregos. Não é o que se diz? Não é mais para abrir postos. É para manter. No mundo real, nem isso se pode garantir. Todo mundo sabe. Leva o subsídio; e não será cobrado quando demitir. Demitirá.

Desoneração, mais uma, setorial. Atraso. Que, destaque-se, afronta a lógica existencial do recém-aprovado arcabouço fiscal — que não parará de pé sem aumento de receitas. O que faz o governo? Abre mão de receitas. Ninguém fez a conta, mas é renúncia bilionária. O Planalto pendurando mais incentivo ineficaz. Carregando a copa da árvore que a reforma tributária terá de podar com rigor. Teria.

Você acredita? Um governo que não corta despesas promete entregar superávits. Promete entregar superávits o governo que engorda os gastos. Um governo gastador que, prometendo rever desonerações setoriais para entregar superávit, oferta (mais) desoneração para fabricante de automóvel a combustível fóssil. Em 2023. Acredita?

No churrasco da firma a carne servida é a sua

Faz algum tempo que a palavra família circula no mundo corporativo como se fosse a coisa mais natural do mundo. A analogia traz algumas contradições interessantes. É difícil imaginar uma família na qual todo mundo trabalha suado pelo luxo extremo de poucos. Geralmente acontece o contrário: os pais se esfalfam para dar conta da renca de filhos e idosos sob seus cuidados. Isso significa que os mais frágeis, em condições de maior dependência, são os mais assistidos. Nada mais inapropriado para pensar as empresas e sua lógica cumulativa de distribuição ultra desigual.

Laços familiares seriam baseados em amor e abnegação, mas, sejamos honestos, quantos colegas te doariam um rim? A competição e a cooperação são próprias das relações entre parentes, principalmente irmãos, mas as rasteiras que ocorrem nas empresas só são comparáveis ao que se passa em famílias notáveis pela disfuncionalidade. Se empresa fosse família, seria aquela na qual era melhor não ter nascido, como em “Succession“, “The Crown” e outras encenações da família-empresa. Aquela na qual você vende a alma para permanecer no jogo e não consegue mais sair por não ter alma para se sustentar fora dele.


Chefes abusivos, injustos ou sacanas e empresas com objetivo de extorquir a força de trabalho em troca de um contrato mal remunerado e sem garantias são a regra. Mas essa não é a única fonte de sofrimento. Um dos maiores ataques à saúde mental é o não reconhecimento da experiência, o desmentido que nos faz duvidar de nós mesmos. Nesse caso, muitas vezes o sujeito só consegue responder com o sintoma. A negação da exploração —embutida na ideologia da empresa-família— é tão preocupante quanto às más condições de trabalho.

Adoecer pode ser uma saída honrosa para uma situação indigna de trabalho. Inclusive o glamourizado: como posso estar sofrendo quando trabalho numa empresa que tem mesa de pingue-pongue, sala com pufes, horários flexíveis e uma decoração de parque de diversões? Não é o que todo mundo queria?

Para muitos resta a saída pelo diagnóstico de depressão e ansiedade. Ele surge como misteriosas condições trazidas pela falha dos neurotransmissores. Se está tudo bem e eu estou mal, devo estar fazendo algo errado. Faltou yoga, sal do Himalaia, meditação, psicanálise, triatlon! Poucos se perguntam se faz algum sentido trabalhar num esquema no qual se é totalmente descartável ao mesmo tempo em que se vende a ideia de alegria, trabalho coletivo e meritocracia.

Quando as pessoas se queixam de que a geração Z é menos propensa ao mercado de trabalho atual e à aquisição de patrimônio, esquecem de se perguntar a que esse comportamento responde. São jovens que viram os mais velhos se dedicarem ao trabalho de forma insana para chegarem na velhice com poucas perspectivas de uma aposentadoria decente. O tempo de aproveitar a vida, esse que se projeta para depois da árdua jornada em busca de estabilidade, se mostra pouco promissor para essa geração.

Outra questão é que o acúmulo de bens, tão valorizado entre nós, não se organiza mais no eixo carros-imóveis-previdência. Os jovens já não se imaginam lutando anos pela aquisição cada vez mais improvável desse patrimônio. Sendo geração que entendeu que o fim do mundo está sempre à espreita, só lhes resta viver o agora.

Por fim, se empresa fosse família, funcionários herdariam algo no final. Mas no mundo da uberização, nem indenização se pode esperar.

Ambientes saudáveis se fazem com justiça, lealdade e transparência. O resto vale tanto quanto o copo de plástico no churrasco da firma, na qual a carne servida é sempre a do funcionário.

O grande impasse

A análise dos cinco primeiros meses de gestão federal mostram impasses políticos e administrativos de um governo sem unidade e sem coalizão, com um parlamento mais preocupado com compromissos paroquiais e eleitoreiros imediatos do que com interesses da República e do povo no médio e longo prazo. A formulação e aprovação do arcabouço fiscal parecem exceção, graças ao ministro Fernando Haddad em sua competência técnica e habilidade política. Mas o grande impasse do governo é sinal de um tempo em que o crescimento econômico no curto prazo não satisfaz e a vontade por um desenvolvimento sustentável no longo prazo ainda não é suficiente para apoiar sacrifícios no presente em nome do futuro distante promissor.

A crise no governo envolvendo a exploração de petróleo no litoral amazônico é a ponta de um iceberg: que tipo de desenvolvimento desejamos? Queremos aumentar o Produto Interno Bruto (PIB), com subsídios a carros chamados ironicamente de populares, ou melhorar a qualidade de vida, com transporte público decente? Queremos oferecer royalties, com destino incerto ou levar a Petrobras a investir em fontes alternativas de energia? Aumentar a renda nacional ou proteger povos primitivos e bens culturais? Obter resultados no presente ou construir um futuro sustentável?


Este é o grande impasse. O presidente Lula não é culpado de seu governo ocorrer no momento da história em que um modelo de desenvolvimento termina antes de um novo surgir com apoio político. Mas será culpa dele se agir apenas pelo instinto eleitoral imediato, ignorando o instinto histórico de dar sustentabilidade. Ao mesmo tempo, mantendo a base parlamentar e o apoio popular necessários para evitar a volta do atraso radical nas eleições de 2026.

Para caminhar através do grande impasse, o presidente precisa convencer o parlamento, mas também usar o grupo selecionado tão cuidadosamente para compor o chamado Conselhão, usar as universidades e entidades sindicais de trabalhadores e de empresários, as organizações não governamentais para buscar respostas de como enfrentar o grande impasse. Pode provocar o pensamento à questão concreta sobre optar por Ibama ou Petrobras, símbolos conjunturais de um impasse histórico. Não se trata de substituir a política, nem que assessores votem para escolher o rumo, apenas que respondam a algumas perguntas.

O embate entre Petrobras e Ibama é apenas um ponto no debate entre crescimento econômico versus desenvolvimento sustentável, e entre aumento imediato de renda e proteção do meio ambiente. Esse debate poderá dar opinião sobre questões polêmicas:

1. A Petrobras explora petróleo no território da Amazônia há 50 anos, sem um único vazamento, mas também sem impacto social positivo na região, como estão prometendo agora ao povo do Amapá. A renda gerada foi para acionistas distantes e salários de profissionais de fora, o Índice de Desenvolvimento IDH continua o mesmo, ainda que cheguem alguns recursos por royalties. O Rio de Janeiro é um bom exemplo da falta de conexão entre exploração de petróleo e população próxima aos poços.

2. Ainda que o investimento seja feito pela Petrobras, são recursos que em grande parte poderiam ser destinados aos dividendos para o acionista governo federal, que poderia destiná-los a outros propósitos com impactos sociais muito maiores para a população local. A própria empresa poderia investir esses recursos no desenvolvimento de fontes alternativas de energia que substituam o petróleo.

3. Quando, há 50 anos, foram tomadas decisões de exploração na Amazônia, a crise ambiental ainda não era uma questão decisiva para a humanidade. A Amazônia não era uma preocupação internacional e o Brasil não era um pária no cenário internacional pelo descuido com florestas e rios da Amazônia. Além disso, o petróleo não era ainda vilão do equilíbrio ecológico.

4. Não havia a perspectiva atual de repúdio ao uso de petróleo como combustível, nem à política de redução de seu consumo e em consequência a queda das rendas que ele gera. Por isso, parece um equívoco aos interesses nacionais, econômicos, sociais, ecológicos e nas relações internacionais a possibilidade de exploração de petróleo no litoral amazônico.

5. Depois de anos visto como "grande destruidor de florestas e da Amazônia", o Brasil pagará alto preço no cenário internacional se depois de gritarmos "o Brasil voltou", agirmos como no tempo da "boiada passando".

Esse é o grande impasse: "passamos a boiada" para o Brasil crescer rápido ou controlamos a economia para dar sustentabilidade, mesmo reduzindo o tipo e a taxa de crescimento.

Se não está ficando gagá, Lula sofre um apagão de inteligência

Errar é humano. Diz-se que somos o único animal capaz de aprender com os próprios erros. Duvido, dados os erros que cometemos e repetimos. Qualquer ratinho de laboratório, depois de algumas tentativas, aprende a não fazer o que só o prejudica.

Lula fez muito bem em restabelecer as relações entre o Brasil e a Venezuela rompidas nos últimos quatro anos por seu antecessor pouco inteligente e candidato a governar o país da mesma maneira autoritária como Nicolás Maduro governa o dele.

Isolar uma ditadura, como a da Venezuela, na maioria das vezes só contribui para sua estratificação. Os Estados Unidos isolaram Cuba desde que Fidel Castro desceu de Sierra Maestra em 1959. Castro morreu e, no entanto, Cuba permanece como ele a deixou.


Na véspera, ao cortejar Maduro, Lula apresentou-o como um democrata. E aconselhou-o publicamente, como antes o fizera em particular, a construir uma narrativa para convencer o mundo que a democracia está viva na Venezuela. É tudo o que não está.

A oposição vive amordaçada. O simulacro de democracia que existe na Venezuela permitiu que Maduro se reelegesse depois de excluir do páreo seus dois principais adversários. São 7 milhões de refugiados, e todos compartilham a mesma narrativa de horror.

Os abusos do regime Maduro caem à vista de todos como frutas podres. Estão quase todos documentados pela Organização das Nações Unidas (ONU) e são investigados pelo Tribunal Penal Internacional, que apura crimes contra a Humanidade.

Lula, contudo, finge desconhecê-los. Disse:

“O preconceito contra a Venezuela é muito grande. […] Nossos adversários vão ter que pedir desculpas pelo estrago que eles fizeram na Venezuela”.

Nossos adversários, quem, cara pálida? Adversários de ditaduras de esquerda ou de direita são meus amigos; aliados, meus inimigos. Ontem, ao invés de corrigir-se, Lula admitiu não poder avaliar a situação da Venezuela porque não a visita há 10 anos.

Ler não dói. Se não sabia disso, Lula aprendeu nos 580 dias que passou preso em Curitiba, lendo. Relatório do Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos fala em “detenções arbitrárias, maus-tratos e tortura” na Venezuela de Maduro.

Os Estados Unidos são culpados por ditaduras que instalaram ou ajudaram a instalar, mas a venezuelana não é obra deles. Lula sofre de um apagão de inteligência, na melhor das hipóteses. Ou o peso da idade e a falta de atualização o estão deixando gagá.

terça-feira, 30 de maio de 2023

Pensamento do Dia

 


Estou farto e cansado

Estou cansado e triste quando vejo os militantes dos partidos abdicarem de dizer o que pensam.

Sim, estou farto de quase tudo o que ouço e vejo à minha volta.

Mas também estou cansado de ouvir e ler sempre os mesmos a dizerem as mesmas coisas, como se conhecessem as soluções para todos os problemas, mas que nunca nos apresentaram uma única ideia ou proposta para a solução dos problemas com que o país se confronta.

Sim, estou farto de ver os políticos a criar conflitos inúteis, como estou farto de ver as televisões a massacrar os telespectadores com programas de futebol intermináveis e em que para entreter se criam conflitos sobre penalties, expulsões e foras-de-jogo.

Estou cansado de ler as notícias da corrupção que corrói a democracia e alimenta os populismos.


Estou cansado de ver os moderados sem voz e sem presença nos media.

Estou cansado e triste por ver pessoas “queimadas” na praça pública com notícias falsas ou com acusações infundadas.

Estou farto de ver títulos de jornais que não correspondem à notícia a que se referem.

Estou farto de conferências, colóquios e seminários em que os que falam e os que ouvem são sempre os mesmos.

Estou farto dos debates em que nós todos já sabemos o que cada um vai dizer.

Estou cansado e triste quando vejo os militantes dos partidos abdicarem de dizer o que pensam.

Estou farto de ver gente em lugares de responsabilidade comportarem-se como membros de uma associação de estudantes do ensino secundário.

Estou cansado e triste por ver deitados para o lixo trabalhos que foram feitos por organizações credíveis que só querem contribuir para melhores soluções para os problemas do país.

Estou farto da arrogância de alguns que querem impor as agendas das minorias.

Como também estou cansado dos excessos em torno da cultura de gênero.

Estou cansado das notícias que justificam que os processos judiciais se tornem intermináveis.

Estou farto dos que lucram com todo este emaranhado jurídico dos processos lançados pelo Ministério Público.

Estou também indignado com os processos lançados contra pessoas que, quando julgadas, provaram nada terem feito de mal.

Estou farto de ver incompetentes a exercer cargos para os quais não têm qualquer qualificação.

Estou cansado e farto de ver nas televisões o rigor substituído pelo espetáculo.

Estou farto de ver muita gente mais interessada em estar do lado do problema do que do lado das soluções.

E também estou cansado de ver que em certos casos são eles mesmos o problema.

Como também estou cansado dos que gostam mais de destruir do que construir.

Estou cansado de ver tanta inveja e tanta vontade de deitar abaixo os que fazem qualquer coisa que se veja.

Confesso igualmente que estou cansado das notícias sensacionais que duram menos de 24 horas, porque foram forjadas com objetivos inconfessáveis.

Estou cansado de não ver enaltecido o que de muito bom se faz em Portugal, seja nas empresas, nas universidades, nas escolas ou nos hospitais.

Como estou farto de ver aqueles que, como portugueses, gostam de se autoflagelar.

Estou cansado de ver televisão e até de ler jornais.

Sim, estou cansado de viver num país que adoro, mas que me traz grandes frustrações quase todos os dias.

Tanta frustração deve talvez ser da idade e da falta de paciência que tenho para aturar tantos disparates.

Nota final: estou triste, cansado e farto de muitas coisas, mas não sou um desistente.

Estarei sempre disponível para lutar contra os populismos e contra os inimigos da democracia, procurando que não nos toquem na liberdade e que, sem complexos ideológicos, se encontrem, com moderação, equilíbrio e bom senso, as soluções para os problemas que enfrentamos.
Eduardo Marçal Grilo

Cupinzada nacional

 


No silêncio da noite
não me deixa dormir
a nênia dos cupins.
Abbas Kiarostami, "Nuvens de algodão"

O berço do futuro

A proposta de exploração do petróleo na foz do rio Amazonas pode ser um desastre político ou a nascente para um novo conceito de desenvolvimento. Mesmo que os resultados econômicos sejam incertos e poucos benefícios fiquem na região, optar pelo Ibama, a ecologia e o futuro, descontentará aos eleitores da região. A opção pela Petrobras contra a recomendação do Ibama abalará o prestígio da ministra Marina Silva e do presidente Lula no cenário mundial como zeladores da Amazônia, comprometidos com o desenvolvimento sustentável. Não faltarão aqueles que façam a comparação com ministro anterior que defendia “deixar passar a boiada” por cima dos órgãos técnicos relacionados ao meio ambiente.

Esta indecisão ideológica mostra que o governo Lula não está preparado politicamente para enfrentar o dilema entre necessidades presentes e sustentabilidade futura, até porque não há conhecimento científico para saber exatamente o que acontecerá social e ecologicamente, nem conhecimento técnico para evitar os riscos decorrentes. Neste cenário, a decisão deve ser adiada para evitar riscos e aprofundar o debate relacionado à relação entre crescimento, meio ambiente e pobreza.

Nenhum outro país tem, ao mesmo tempo: o desafio de explorar petróleo em um santuário natural, governo comprometido com o respeito à Amazônia e uma massa crítica intelectual para aprofundar este debate que aflige a humanidade: como compatibilizar as necessidades sociais e econômicas do momento com as limitações e os riscos do futuro. Responder perguntas como: justifica deixar a riqueza do petróleo debaixo da terra, com milhões de pessoas pobres caminhando sobre ela? a exploração de petróleo já em marcha no território amazônico reduziu a pobreza da população local? deixou benefícios sociais marcantes para os habitantes das cidades com royalties no litoral carioca? investir centenas de bilhões de reais na exploração do petróleo é a melhor forma de atender às necessidades sociais dos pobres locais? o petróleo será fonte de renda por quantas décadas ainda, antes de seu uso ficar obsoleto, devido às mudanças climáticas e outras fontes de energia? quais as consequências econômicas se o Brasil voltar a ser pária mundial por executar este projeto, sobretudo se ocorrer possível vazamento no oceano?

Estas dúvidas são maiores do que a avaliação do projeto específico na foz do Amazonas. Para o Brasil, a questão é escolher entre o desenvolvimento apenas para o presente ou sustentável no futuro; para o Presidente e a Ministra, saber se desejam os votos locais ou serem os líderes políticos mundiais de um novo rumo para o desenvolvimento. Outros dilemas surgirão como buscar ouro ou construir estradas em terras indígenas; proteger patrimônios culturais ou investir na produção.

Com o adiamento da decisão e a promoção do debate, o atual governo estaria transformando a crise da Foz do Amazonas na Nascente de um novo rumo do desenvolvimento.

Foi uma pena que antes mesmo de promover este debate, políticos locais preferiram vender ilusões para o presente, olhando a próxima eleição. Eles teriam ajudado na reflexão sobre o futuro e no apoio para termos a ministra Marina Silva e o presidente Lula como líderes mundiais de um novo desenvolvimento econômico sustentável e com responsabilidade social: um berço do futuro.

Tiro no pé ambiental

O Congresso pressionou, e o governo cedeu justamente nas áreas —climática e ambiental— que fazem este país ser relevante aos olhos do mundo. Ao desidratar parte das pastas do Meio Ambiente e dos Povos Originários, a nova estrutura ministerial atira nos pés do próprio país, apequenando a política que Lula passa horas e horas em voos internacionais defendendo como prioritária.

No chão da realpolitik, o Congresso está disposto a vender o protagonismo climático do país a preço de banana (cargos), deveras barato perto do que ser líder mundial nos traria, inclusive economicamente.


Faltou ao governo, ademais, cacifar a agenda climática como inegociável, porque (queiram ou não) é central ao sucesso do Lula 3, como o próprio presidente bem sabe.

No espaço de uma semana, o governo titubeou e tardou para arbitrar disputas internas quanto a petróleo na foz do Amazonas, viu seu ministro da Agricultura falar a favor do marco legal na TV e testemunhou o Congresso atropelar as pastas do Meio Ambiente e dos Povos Indígenas, enquanto Marina Silva, com a altivez que lhe é peculiar, era sabatinada duramente por parlamentares.

Custo a acreditar na tese da inevitabilidade da desidratação das pastas de Marina e Sonia Guajajara: de um lado, o Congresso não impôs à Casa Civil o mesmo destino e, de outro, ou o governo estaria sem nenhuma carta na manga para ceder em outras áreas (o que denotaria sua fraqueza) ou o centrão estaria com tanta fome que seria mais vantajoso ao primeiro-ministro, Arthur Lira, agradar à bancada ruralista do que ao governo (o que denotaria desarticulação). Ou um ou outro, o sinal não é positivo.

Enquanto mulheres pretas e indígenas no poder são vistas como "ideológicas", cabe perguntar a qual ideologia os homens brancos, ditos técnicos, servem senão a si mesmos.

Ou Lula coloca a casa em ordem, alinhando articulação ao discurso ambiental, ou vai ter que justificar por que a boiada continua a passar sob sua guarda.

domingo, 28 de maio de 2023

Lavagem do Brasil

 


Espécie animal

A parte mais sensível do corpo de um urso é seu focinho. A informação, inútil para a maioria da população global, nunca foi mero fait divers para as seculares etnias de ciganos da Bulgária. Naquele pedaço dos Bálcãs, o controle de ursos pelo focinho era essencial para garantir a milenar forma de ganha-pão e entretenimento do povo roma: capturar, domesticar e treinar esses mamíferos de grande porte até que se tornassem servidores dóceis e atração ambulante. Com as narinas perfuradas por argolas de metal, os animais se sujeitavam a toda sorte de comandos inglórios, como dançar sobre patas traseiras ou ingerir bebidas alcoólicas.

Essa forma de entretenimento para humanos durou até o final do século XX. Foi somente com a implosão do bloco soviético, a que a Bulgária estava atrelada, que os ursos domesticados puderam empreender, também eles, a difícil transição do cativeiro para a liberdade. Não foi fácil. Quem melhor a descreveu foi o jornalista polonês Witold Szablowski, com “Dancing bears — True stories of people nostalgic for life under tyranny”, publicado cinco anos atrás, traduzido para uma dezena de línguas e já citado neste mesmo espaço. Retoma-se aqui o ângulo central da obra, mas para virá-la do avesso. O episódio de racismo escancarado contra o jogador brasileiro Vinícius Jr. , testemunhado pelo mundo na semana passada, serve de gancho para a releitura.


O livro de Szablowski, cujo estilo é equivocadamente comparado ao de seu portentoso conterrâneo Ryszard Kapuscinski, se divide em duas partes simétricas. Cada uma tem nove capítulos de títulos iguais, e eles se espelham. A primeira narra a história dos ursos, cujo cativeiro foi afrouxado por ONGs bem-intencionadas. A segunda trata da também complexa transição de sociedades comunistas para o capitalismo. Para os animais, a primeira etapa iniciou-se por liberdade vigiada (ou cativeiro mais civilizado) — eles precisaram ser ensinados a hibernar, foram castrados e, portanto, não conseguem se reproduzir, não sabiam sequer copular. Para horror dos ativistas encarregados de devolvê-los à natureza, alguns ursos, mesmo libertos de suas argolas, continuavam a erguer o corpanzil sobre duas patas para dançar como foram ensinados.

Outros, desnorteados, procuravam insistentemente com as patas dianteiras as argolas que não lhes aprisionavam mais as narinas. Um zoólogo ouvido pelo autor relatou que as equipes passavam horas observando os ursos para aferir o grau de liberdade de agressão instintiva que os animais conquistavam aos poucos.

— Eles passaram a viver numa espécie de laboratório de liberdade, onde os humanos lhes ensinavam a ser livres — explicou o autor em entrevista à National Public Radio dos Estados Unidos — A liberdade é complicada. Ela pode, até, ser muito penosa.

Assim como os ursos cativos não sabiam hibernar, não se alimentavam o suficiente no outono, por isso viravam osso no inverno, também as sociedades fechadas estavam mal preparadas para transitar por regimes mais democráticos, sempre sujeitos às turbulências do contraditório. Szablowski, inicialmente, colocara o atual czar russo Vladimir Putin na categoria dos adestradores, “o cara que sempre teve ursos, os usava e nunca soube fazer outra coisa na vida”. Mais recentemente, começou a se indagar se Putin e outros autocratas semelhantes não seriam, também, ursos amestrados, por não conhecerem outra vida. Cresceram não confiando em ninguém, desconhecem o funcionamento de instituições democráticas, são também prisioneiros do sistema por eles mantido.

É aqui que entra uma pergunta incômoda para o racismo secular que nesta semana mostrou seu focinho no estádio na Espanha. E se os aprisionados neste mundo desigual não forem os ursos, e sim seus amestradores — a civilização branca, incapaz de se libertar de sua própria desumanidade? O supremacismo branco grita por medo de perder a razão de ser. Não suporta a realidade de pertencermos todos à mesma espécie animal. Quanto mais náufrago, maior a violência do negacionista. Toda sociedade alicerçada no racismo tem medo de extirpá-lo, pois ele lhe aufere privilégios. O Brasil é o primeiro da lista a precisar se olhar no espelho para ter vergonha do que vê. A dor de ser negro, preto ou pardo, no Brasil é de uma infâmia superlativa. Somos todos coniventes.

Racismo nosso de cada dia


O Brasil tem que enfiar a carapuça. Ele também não é, assim, um país tão maravilhoso nessa matéria. Ao contrário. Aqui tem muitos incidentes desse tipo. E nós também temos muito o que aprender.
Rubens Ricupero, ex-subsecretário-geral da ONU

O racismo e uma cidade no estado mais negro do Brasil

Nas ruas de Cachoeira, cada passante é parente socioestético de Vini Jr. Conhecida como "cidade heroica" no Recôncavo Baiano, dos seus 33 mil habitantes, 84% autodeclarados negros. Dali partiram as tropas de lavradores, comerciantes, escravos e forros que lutaram pela independência da Bahia em 1823.

Ativo centro cultural, é citada como cidade-monumento, pelo casario barroco, igrejas, irmandades e comunidades afrolitúrgicas.

Eleita pelo Republicanos, a atual prefeita é lavradora de profissão, curso médio completo. Sempre acompanhada por dois seguranças, mora em Salvador, capital, porque sobre ela pesam ameaças de morte. O motivo é único e claro como a cor da pele de onde procedem: ela é negra, a primeira a ocupar o cargo na cidade multicentenária.


Vale frisar que essa aberração não é sulista, isto é, não é coisa de nenhum desses estados onde neofascismo brota como pinhão nas árvores ou bergamota à beira dos cercados. Muito menos da Espanha, onde despertaram zumbis franquistas. Ocorre na matriz mais afro da federação. Planta daninha transgênica, racismo não escolhe terreno para medrar.

A questão volta à cena com as massivas agressões espanholas a Vini Jr., mas também com críticas ponderáveis ao identitarismo. Argumenta-se que a adesão das esquerdas ao movimento identitário (gênero, antirracismo etc.) empurra o povo para a extrema direita. De fato, a esquerda clássica deslocou-se ideologicamente da metafísica revolucionária, caucionada pelo operariado como classe histórica, para a trama da dominação constituída por patriarcado e colonialidade.

O novo eco libertário fragmenta-se na dispersão das minorias. A comunicação progressista não se apoia, como na ideologia obreira, numa unidade comparável ao mito do trabalho feito "essência perdurável do homem" (Marx). Simplesmente afrouxar a camisa de força das hierarquias raciais, sexuais e coloniais periga ressuscitar o pior. Reacionário não discute: é só aparelho de ódio.

Mas perder discurso não é perder razão. É um aviso de que a justa argumentação não consegue transitar na pluralidade dos canais de diálogo, por estreiteza conceitual frente ao patriarcalismo, "poder habitado por um espírito-cão, um espírito-porco e um espírito-canalha" (Achile Mbembe). É o poder colonial de esvaziar o outro de seu conteúdo histórico. Contra isso é fraco o progressismo embalado pelos belos, mas abstratos, metadiscursos explicativos do mundo.

Assim o impasse identitário. Por um lado, atrai o ódio visceral de extremos, desde elites malévolas a neofascistas em flor. Por outro, mobiliza estratos até agora silenciados. A prefeita e seus eleitores são bom exemplo: convite à nação brasileira e à Espanha a tomar um banho de Cachoeira.

A vitória de Flaubert

Ainda me lembro das férias de verão em que fiquei enfurnado, numa casa de pescador, lendo uma velha edição de Madame Bovary. Fui abduzido por aquele percurso em direção ao abismo, mas ao contrário do que aconteceu com Vargas Llosa, numa experiência parecida (só que mais chique, em Paris), não me apaixonei por Emma Bovary. Senti pena. Não exatamente dela, mas da miséria que ela conta sobre todos nós. E confesso que o que realmente me fascinou foi ler sobre o processo sofrido por Flaubert, pelos pecados de Emma e de toda aquela história. Seu algoz foi o procurador Ernest Pinard, um tipo mordaz, que faria carreira na França bonapartista. A questão fascinante naquilo tudo era: Flaubert seria culpado pela perversão de seus personagens? Pinard não tinha dúvidas. Não era besta de cair na conversa malandra sobre separar ficção e realidade. A ideia de que “a arte devia ser livre”, que não devia ser moralizada, que o escritor era uma coisa, e outra sua criação.

Flaubert escapou por pouco, mas Pinard não desistiu. Estava decidido a ser o grande moralizador da França, e meses depois voltou à carga, dessa vez contra Baudelaire e seu As Flores do Mal. Sua lógica seguiu intacta. Aquele livro era obviamente pecaminoso. Cita os versos mais ofensivos, faz drama, tenta chocar a audiência, e de certo modo consegue. Ele até admite que o autor possa estar sendo irônico, que ele apenas “retrata o mal e seus arrebatamentos”, como disse o próprio Baudelaire, e que tudo aquilo não reflete suas crenças pessoais. Mas como confiar nisso? Como garantir que as pessoas saberiam julgar? A verdade é que era preciso proteger a sociedade, e que por isso caberia ao Ministério Público impor os “limites que não podem ser ultrapassados”.


Na virada para o século XX, a arte foi se emancipando dessa carcaça moral. Um momento óbvio desse caminho sinuoso foi a suprema provocação de Duchamp colocando seu urinol naquela exposição nova-iorquina de 1917. A partir dali ganhou um quê de ridículo perguntar sobre a “função” ou o “sentido” de um objeto artístico. Há muita coisa misturada quando Duchamp diz que “a arte é o que eu disser que é”. Uma hipótese é dizer que minha arte pode ser fake, como de certo modo era não só o urinol, mas a assinatura que ele levava. Outra pode ser que há um espaço próprio para a arte, o museu, o teatro ou o vídeo no YouTube, e que este lugar define o objeto estético. E há ainda a ideia sedutora de que há ali uma performance. Ele vai ali na Quinta Avenida, compra o urinol, assina um nome que lhe der na telha e põe na exposição. O que a partir daí está perfeitamente desobrigado de qualquer narrativa externa ao próprio gesto, à performance, ao objeto. A decisão, em última instância, será do mercado. Se aquilo fará sentido para as pessoas, se elas ficarão irritadas, fascinadas ou quem sabe darão apenas uma sonora gargalhada. De qualquer maneira, a arte se converte no oposto da pregação por Pinard, e o artista é liberto da condição de sentinela moral de alguma coisa. Tudo perfeito. Não haveria mais procuradores investigando peças, versos ou imagens, nem fiscais em teatros e exposições, à procura de algum pecado. Pinard perdeu. Se tornou um tipo arcaico e virtualmente esquecido, na memória triste do século XIX.

Os ventos agora parecem estar mudando. Por curioso que possa parecer, o espírito do velho procurador parece voltar a nos assombrar. Ele vem, por óbvio, de roupa nova, ajustado à moralidade da nossa época, mas seu sentido é o mesmo: enquadrar a cultura em uma régua moral. Não é difícil perceber essas coisas quando se observa com um pouco mais de calma o debate em torno da censura ao humor no Brasil atual. A história todos conhecem, e diz respeito ao banimento do humorista Léo Lins, obrigado a apagar seus vídeos e proibido de sair de São Paulo por mais de dez dias, sem autorização judicial. Na primeira vez que li aquilo, achei que fosse uma pegadinha, mas me enganei. E o mais interessante: a juíza que determinou a censura agiu perfeitamente amparada pela lei. O Congresso de fato aprovou uma lei agravando as penas para “discriminações” feitas “em contexto de descontração, diversão ou recreação”. E fez mais: deu ao juiz amplo poder para decidir o que define uma minoria, e qual o significado de expressões como “vergonha, medo ou exposição indevida”. A juíza cumpriu seu papel. Fez sua lista de minorias e atendeu a uma justificativa que anima todo o processo: aquelas piadas reproduzem “discursos que hoje são repudiados”. Foi aí que me caiu os butiás dos bolsos, como se diz lá na Campanha. É a mesma lógica das leis limitando a liberdade de expressão na França do século XIX, e que levaram àqueles processos. A proteção da “moral pública”. Os costumes da época, chancelados pela maioria cultural. Ou ao menos o que o Ministério Público da época imaginava ser a maioria cultural.

O interessante foi a rapidez da mudança. Ainda me lembro dos Trapalhões sendo homenageados no Carnaval. Nem eles, com seu humor tosco, nem o Casseta & Planeta e sua arte bem mais crescidinha teriam muita chance no atual Brasil puritano. Já fomos um país capaz de rir de si mesmo, mas agora o tempo fechou. Ainda me lembro de ter defendido a tese da “liberdade da arte” em um debate em Porto Alegre, à época de uma exposição tida como imoral, em um centro cultural da cidade. Disse o que me parecia óbvio, que a arte era frequentemente insuportável, e que quem se sentisse ofendido deveria passar longe da exposição e quem sabe escrever uma crítica pesada no jornal. Não colou, e o detalhe é que eram os “conservadores” que me contestavam na plateia. Agora são os “progressistas” que andam de dedo em riste, correndo atrás dos tribunais para censurar. Ao menos nisso, são perfeitamente iguais. Ambos desejam regular a cultura, ajustar a arte, a linguagem, os costumes a sua visão muito particular de mundo. E suspeito que eles são maioria. É só observar a fúria das redes, os xingamentos ao Fabio Porchat e ao Antonio Tabet, por estes dias, pela defesa de alguns valores que há poucos anos teriam parecido perfeitamente evidentes. O fato é que nosso Zeit­geist, o sentido do pêndulo, de nossa época, se move na direção do controle, não da liberdade. Decidimos novamente moralizar a arte e a cultura. Um Pinard politicamente correto ganharia fácil de um Flaubert ou de um Baudelaire, nos tribunais ou no manicômio digital, nestes tempos ácidos.

De minha parte, prefiro andar na contramão. Na verdade, é um certo olhar liberal que termina sempre meio marginal nesse debate. Mas um dia as pessoas cansam, o mundo vai se tornando sem graça, a quantidade de gente banida vai ficando constrangedora, e o pêndulo muda de novo de direção. É assim que tem sido, ao menos desde a revolução iluminista. Pode demorar, mas a derrota, como aconteceu naquele processo perdido no tempo, será sempre de Pinard e sua virtude. E a vitória de Flaubert, com todos os seus pecados.

sábado, 27 de maio de 2023

Um país viciado no smartphone

Os brasileiros se acostumaram a receber constantemente novos estímulos e atenção pelo celular. Passam o equivalente a seis dias por mês olhando para o aparelho. O problema é particularmente grave entre os jovens.

De duas a três vezes por semana, vou de bicicleta até um mirante popular no Rio de Janeiro. Fica abaixo do Corcovado, e de lá se tem uma vista fantástica do Rio. O lugar é movimentado especialmente nos feriados e fins de semana. Não só cariocas, mas centenas de visitantes de todas as regiões do Brasil vão até lá: famílias, casais, grupos organizados. Duas coisas me impressionaram nos últimos anos: primeiro, quantos brasileiros estão acima do peso ou até obesos, incluindo um número alarmante de crianças. Em segundo lugar, vi confirmada a piada de que o brasileiro nasce com dois braços, duas pernas e um smartphone nas mãos.

Poucos chegam ao mirante para apreciar a vista do mar, da baía, das montanhas, da cidade ou da Floresta da Tijuca, para se deixar encantar pelo local e sua atmosfera sublime. Muitos chegam já com o smartphone na mão, filmando, e não veem mais o local com os próprios olhos, mas pela tela do celular.

Quem não está filmando, começa imediatamente a tirar fotos. O que é fotografado não é a paisagem, mas sim as próprias pessoas. Posam, colocam um sorriso artificial, procuram o melhor lugar para tirar centenas de selfies. Mulheres e homens jovens dão rédea solta à sua vaidade. Logo depois, eles vão embora – sem ter visto nada. Ainda no caminho para baixo, alimentarão suas redes sociais com fotos com filtro, esperando conseguir o máximo possível de corações, curtidas e comentários positivos, que vão checar minuto a minuto.

Quem recebe atenção, incentivo e confirmação – mesmo que apenas virtual – produz dopamina. A substância é responsável por estados de excitação e também é incorretamente chamada de "hormônio da felicidade". Acostumar-se com uma dose alta de dopamina é como se acostumar com uma dose alta de açúcar ou álcool. Sem ela, a pessoa tem a sensação de que está faltando alguma coisa e faz de tudo para consegui-la.

Milhões de pessoas se acostumaram a receber constantemente novos estímulos em intervalos cada vez mais curtos. É por isso que estão constantemente olhando para seus telefones e que não conseguem mais se concentrar em tarefas mais longas e complexas, textos, conversas e discussões. Ou numa bela paisagem, vista apenas pelo celular.

O problema existe em todo o mundo. Mas no Brasil ele é particularmente virulento. Enquanto o alemão médio passa duas horas e meia todos os dias olhando para o celular, o brasileiro olha para o aparelho quase cinco horas e meia por dia, quer dizer, mais que o dobro do tempo. Ao lado da Indonésia, esse é o maior volume de utilização de celulares do mundo, de acordo com um estudo baseado em dados da iOS App Store, Google Play e outras lojas online.

Isso significa que os brasileiros passam cerca de seis dias por mês olhando para o celular. Esse tempo é, na maioria das vezes, perdido, pois não serve para crescimento pessoal ou profissional, mas para a busca por dopamina. O problema é maior entre os jovens. Das cerca de 28 mil pessoas entre 15 e 29 anos entrevistadas numa pesquisa, 27% disseram que poderiam ficar sem celular por no máximo 24 horas. Já 11% disseram que conseguiriam por no máximo 6 horas, enquanto 3% disseram que se sentiram desconfortáveis após 30 minutos sem o celular. Basicamente, esses jovens precisam de ajuda, porque seus cérebros estão se desenvolvendo de maneira totalmente errada.

Felicidade é ter passado o dia inteiro com os amigos, se divertir, ser criativo, descobrir coisas novas, sair de casa e cair na cama à noite exausto e cheio de impressões. Quem passa o dia todo na frente do celular, rolando a tela e buscando autoafirmação, vai dormir estressado, insatisfeito e vazio porque não viveu nada verdadeiro, mas seguramente viu muita ninharia, horror, besteira, publicidade, fake news e muito mais que provavelmente esqueceu imediatamente.

No Brasil, está crescendo uma juventude que acredita que atenção é sucesso e que esse sucesso pode ser conquistado sem esforço e apenas com aparências. O problema é particularmente evidente entre os jovens sem oportunidades educacionais e perspectivas no mercado de trabalho. Frequentemente, eles tentam chamar a atenção com sua aparência e seus corpos, coisa para a qual diversas plataformas lhes dão ampla oportunidade.

Quando desenvolvedores de empresas de tecnologia americanas ou asiáticas criam novos aplicativos, eles conversam com psicólogos e neurologistas. Por quê? Porque o objetivo deles é tornar os usuários de um aplicativo emocionalmente dependentes. Não é sem razão que o governo da China introduziu um limite para o aplicativo Douyin, a versão do TikTok utilizada na China. O uso do aplicativo por crianças menores de 14 anos é limitado a 40 minutos por dia.

Quando deixei de seguir uma amiga brasileira no Instagram porque não estava interessado em suas selfies de biquíni, ela imediatamente me escreveu indignada, perguntando por que não a seguia mais. Existe um aplicativo que mostra quem deixou de seguir você no Instagram!

Jovens acostumados a receber atenção e aprovação constantemente têm baixa tolerância a críticas e não são mais capazes de argumentar. Eles imediatamente se sentem atacados e ofendidos. Basta que não chamem atenção por um momento para que seu mundo desmorone.

Fala-se atualmente sobre o perigo de uma juventude digitalmente negligenciada. Isso está longe de ser um problema brasileiro, mas é particularmente grande por aqui. Carl Sagan, o astrofísico profético, previu algumas décadas atrás que os desenvolvimentos tecnológicos aconteceriam mais rápidos do que o desenvolvimento de nossos cérebros. Não somos mais capazes de diferenciar entre o que parece bom e o que é bom e verdadeiro.

sexta-feira, 26 de maio de 2023

Atraso do Brasil dá tristeza

O que pensa o governo Lula? A pergunta é importante. Qual sua ideia de Brasil? Em grande parte, o presidente foi eleito por suas credenciais democráticas. Fez durante a campanha um discurso vago, sem grandes compromissos, na essência prometendo que não seria Jair Bolsonaro. A esta altura de maio, alguns sinais deveriam preocupar. Tudo indica que ele não acredita na ideia de economia verde, o caminho mais fácil para a inserção do país no século XXI. Também há sinais de que ele não percebe como fomentar uma indústria digital. O noticiário desta semana deixa tudo isso alarmantemente claro.

Na edição de quinta-feira do Estadão, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou um artigo com seu vice, Geraldo Alckmin, afirmando o compromisso com a reindustrialização. O cheiro que deixa é, embora nunca dito, de que ainda procura empregos bons para operários. Eles não existem mais. Insinua o sonho de exportar motores a combustão de etanol para a África. É sonhar pequeno. Aposta na indústria de semicondutores — aí é sonhar grande. Será que deseja competir com Taiwan, algo que Estados Unidos e China batalham para conseguir? No rastro, deixa um mísero parágrafo no pé para educação. E fala só de educação de base.

Os exemplos de China e Coreia do Sul mexem, realmente, com os sonhos de boa parte dos economistas desenvolvimentistas no Brasil. Lá houve dirigismo estatal, pesados investimentos, e criou-se num par de décadas uma indústria digital moderna e sofisticada, capaz de competir de igual para igual com qualquer potência.

Dois fatores raramente são comentados. O primeiro é que esses países têm poupanças internas formidáveis. Nós não temos. A Coreia é uma democracia, porém não oferece um Estado de Bem-Estar Social. É cada um por si, sem férias pagas ou aposentadoria garantida. A China, bem, a China é uma ditadura barra-pesada. O segundo ponto nunca mencionado é outra característica que ambos os países têm de estupendo: educação. Criança pequena aprende as quatro operações, e engenheiros são formados em vastas quantidades ano após ano.

O Brasil não terá indústria de semicondutores, não desenvolverá software em quantidade, não será digital enquanto tivermos dificuldade de ensinar as quatro operações. Uma indústria do século XXI não precisa só de dinheiro, seja privado ou estatal. É movida a cérebros. Se a conversa sobre reindustrialização é séria, deveria começar pelo MEC. Nas duas pontas: ensino de base e superior.

À jornalista Mônica Bergamo, um ministro palaciano explicou que a negociação com Arthur Lira, na Câmara dos Deputados, vem sendo difícil. E que, por isso, o governo precisou abrir mão de “pautas simbólicas, como o Ministério do Meio Ambiente”, para produzir crescimento econômico.

Pautas simbólicas.

Ficou nítida, para quem quis ver, a irritação de Lula e do Planalto com a teimosia do Ibama em encarar tecnicamente o problema da exploração de petróleo próximo à foz do Amazonas. Pois é. “O petróleo é nosso”, o fetiche que não morre. A indústria verde, créditos de carbono, exploração científica da biodiversidade, as patentes que podem surgir. Ao que parece, “indústria verde”, no Planalto, é um termo de marketing. Não enxergam. Manter intacto o ministério de Marina Silva não é prioritário.

Prioritário é conseguir vender carro zero a menos de R$ 60 mil para uma classe média endividada. Mas quem quer comprar carro em 2023? Será possível que, no Brasil, a gente ainda se move com base na imaginação criada entre Getúlio e JK? Grande oportunidade é vender motor a combustão para países africanos...

O discurso de campanha, falando de transição energética, de o BNDES investir em startups, de particular atenção para a causa indígena, na prática está se desmontando. Nos momentos em que o Planalto precisa fazer escolhas perante um Congresso reacionário com sede pelo Orçamento, as prioridades reais se apresentam. Investir numa indústria automobilística velha, cavar poços de petróleo. Ninguém teve a ideia de circular o mundo pintando as possibilidades de um Brasil potência verde. Mas se propondo a encabeçar uma negociação de paz entre Rússia e Ucrânia, aí sim. Isso teve. Enquanto isso, o MEC só apareceu quando houve uma ofensiva contra a reforma do ensino médio. Uma ofensiva para deixar tudo como está.

Em que o Brasil do século XXI será diferente do Brasil do século XX? Que visão temos de possibilidades? Como pode ser tão pequena a imaginação de nossos políticos? Nem com criança que sabe fazer conta, parece, podemos sonhar.

Cobrar dos pobres para beneficiar os ricos

Não, não defendo que se deva taxar os pobres em benefício dos ricos. Pelo contrário procuro, mais uma vez, mostrar que é assim que funciona a estrutura tributária de muitos países, em especial a do Brasil. Tomo o exemplo dos aviões particulares.

Essa maneira caríssima e extremamente poluente de viajar é ruim para o planeta e para 99,999% da população; no entanto, recebe subsídios governamentais de diversas maneiras. Estima-se que os jatos privados emitam 10 vezes mais poluentes por passageiro que a já extremamente poluente aviação comercial. Estima-se, também, que o patrimônio líquido médio dos proprietários de jatos privados supere os US$100 milhões! No planeta, há cerca de 70 mil pessoas com patrimônio tão grande, o que faz com que os proprietários de jatos particulares representem 0,0008% da população global. Esses pouquíssimos exercem mais poder e influenciam mais as políticas públicas – inclusive a tributária! – que 99,99% da população, o que é razão suficiente para indagar se “democracia” teria se tornado uma fake word!

No Canadá existe, desde 2018, um imposto de 10% sobre o valor de jatos privados novos. Lá, assim como nos EUA, há a obrigação de a empresa proprietária justificar seu uso, para evitar que sirvam, com frequência, para o lazer de seus dirigentes e para fazer lobby. No Brasil inexiste exigência similar; assim, o lazer e o lobby desses ricaços reduzem o lucro tributável da empresa proprietária, diminuindo o imposto a pagar; ou seja, os custos são divididos pelo conjunto da população!


Em nosso país não se cobra o IPVA sobre jatinhos, mas sim sobre um carro barato e bem usado, assim como sobre o caminhão e o ônibus, mais uma vez onerando a população pobre em benefício dos muito ricos! Triste Brasil onde, apesar desses fatos, falar em elevar a tributação sobre os muito ricos tornou-se anátema!

Na União Europeia, e mesmo nos EUA, a estrutura tributária é progressiva – apesar de muitos “furos” que permitem esconder grana, inclusive em paraísos fiscais – enquanto, aqui, ela é regressiva. Dizer que taxar os muito ricos fará com que eles abandonem o país é balela: eles até poderão levar seus jatos, mas como levar os bois, as fazendas e as fábricas?

A “proibição” do debate sobre taxar os muito ricos se tornou tão forte que até o atual governo parece temer mencionar tal possibilidade de forma clara! Deve-se, porém, lembrar que a maioria dos congressistas brasileiros integra ou representa o grupo dos muito ricos; assim, falar em elevar impostos sobre essa pequeníssima faixa da população pode, sim, criar mais dificuldades no relacionamento entre Executivo e Legislativo! Sutilezas da democracia, que resguarda interesses dominantes de diversas e pouco claras maneiras!

No Brasil, a aviação privada – dita “aviação geral” embora seja tão exclusiva! – realizou, em 2020, 280 mil pousos e decolagens, contra 466 mil das companhias aéreas. No entanto, os aeroportos são construídos e mantidos, principalmente, pelo Estado, o que configura outro tipo de subsídio aos mais ricos, pagos pelos mais pobres.

Com o atual Congresso é difícil inverter a pirâmide tributária, mas essa inversão é essencial para o bem-estar da maioria dos brasileiros! Considerando que a frota brasileira de jatos privados é tida como a terceira maior do mundo, a questão é relevante e poderia contribuir para o equilíbrio das contas públicas, além de tornar o país menos desigual!

Pensamento do Dia

 

Musa GUMUS

Antigamente era

Antigamente era o eu-proscrito
Antigamente era a pele escura-noite do mundo
Antigamente era o canto rindo lamentos
Antigamente era o espírito simples e bom

Outrora tudo era tristeza
Antigamente era tudo sonho de criança

A pele o espírito o canto o choro
eram como a papaia refrescante
para aquele viajante
cujo nome vem nos livros para meninos

Mas dei um passo
ergui os olhos e soltei um grito
que foi ecoar nas mais distantes terras do mundo

Harlem
Pekim
Barcelona
Paris
Nas florestas escondidas do Novo Mundo

E a pele
o espírito
o canto
o choro
brilham como gumes prateados

Crescem
belos e irresistíveis
como o mais belo sol do mais belo dia da Vida.

Agostinho Neto

O berço do futuro

A proposta de exploração do petróleo na foz do rio Amazonas pode ser um desastre político ou a nascente para um novo conceito de desenvolvimento. Mesmo que os resultados econômicos sejam incertos e poucos benefícios fiquem na região, optar pelo Ibama, a ecologia e o futuro, descontentará aos eleitores da região. A opção pela Petrobras contra a recomendação do Ibama abalará o prestígio da ministra Marina Silva e do presidente Lula no cenário mundial como zeladores da Amazônia, comprometidos com o desenvolvimento sustentável. Não faltarão aqueles que façam a comparação com ministro anterior que defendia “deixar passar a boiada” por cima dos órgãos técnicos relacionados ao meio ambiente.


Esta indecisão ideológica mostra que o governo Lula não está preparado politicamente para enfrentar o dilema entre necessidades presentes e sustentabilidade futura, até porque não há conhecimento científico para saber exatamente o que acontecerá social e ecologicamente, nem conhecimento técnico para evitar os riscos decorrentes. Neste cenário, a decisão deve ser adiada para evitar riscos e aprofundar o debate relacionado à relação entre crescimento, meio ambiente e pobreza.

Nenhum outro país tem, ao mesmo tempo: o desafio de explorar petróleo em um santuário natural, governo comprometido com o respeito à Amazônia e uma massa crítica intelectual para aprofundar este debate que aflige a humanidade: como compatibilizar as necessidades sociais e econômicas do momento com as limitações e os riscos do futuro. Responder perguntas como: justifica deixar a riqueza do petróleo debaixo da terra, com milhões de pessoas pobres caminhando sobre ela? a exploração de petróleo já em marcha no território amazônico reduziu a pobreza da população local? deixou benefícios sociais marcantes para os habitantes das cidades com royalties no litoral carioca? investir centenas de bilhões de reais na exploração do petróleo é a melhor forma de atender às necessidades sociais dos pobres locais? o petróleo será fonte de renda por quantas décadas ainda, antes de seu uso ficar obsoleto, devido às mudanças climáticas e outras fontes de energia? quais as consequências econômicas se o Brasil voltar a ser pária mundial por executar este projeto, sobretudo se ocorrer possível vazamento no oceano?

Estas dúvidas são maiores do que a avaliação do projeto específico na foz do Amazonas. Para o Brasil, a questão é escolher entre o desenvolvimento apenas para o presente ou sustentável no futuro; para o Presidente e a Ministra, saber se desejam os votos locais ou serem os líderes políticos mundiais de um novo rumo para o desenvolvimento. Outros dilemas surgirão como buscar ouro ou construir estradas em terras indígenas; proteger patrimônios culturais ou investir na produção.

Com o adiamento da decisão e a promoção do debate, o atual governo estaria transformando a crise da Foz do Amazonas na Nascente de um novo rumo do desenvolvimento.

Foi uma pena que antes mesmo de promover este debate, políticos locais preferiram vender ilusões para o presente, olhando a próxima eleição. Eles teriam ajudado na reflexão sobre o futuro e no apoio para termos a ministra Marina Silva e o presidente Lula como líderes mundiais de um novo desenvolvimento econômico sustentável e com responsabilidade social: um berço do futuro.

A estupidificação digital

Os números são inquietantes. Uma criança de 3 anos está cerca de três horas diárias em frente a um ecrã; aos 8 anos, está cinco horas; na adolescência, sete. Entre a infância e os 18 anos, os miúdos de hoje, pequenos “junkies” eletrónicos, passam o equivalente a 32 anos letivos em frente do ecrã. As contas são do neurocientista francês Michel Desmurget, que estuda o fenómeno há quase duas décadas e que põe as coisas de forma crua mas clarividente: os ecrãs são uma “fábrica de cretinos digitais”. No livro que escreveu com este nome, explica as inúmeras razões pelas quais os nativos digitais – ou seja, as nossas crianças – serão os primeiros a ter um QI inferior ao dos pais, e documenta-o bem: apresenta 45 páginas de bibliografia em que cita centenas de estudos científicos que atestam porque esta tendência é preocupante.

Se este livro foi lido em São Bento e no Ministério da Educação, terá sido depois posto de lado. É caso para dizer que valores mais altos se levantam. O Governo está apostado numa rápida digitalização da educação, que pode ter os resultados inversos ao que se propõe, que é melhorar o ensino. Este caminho vem dar seguimento a um processo que se acelerou, por força das circunstâncias, na pandemia, e que é estimulado agora pelo objetivo do aproveitamento das verbas do PRR, com uma forte componente obrigatória de digital.

É preciso separar as águas. Há, claro, uma parte deste percurso que faz sentido, como a entrega de computadores a alunos e professores, a instalação nas escolas de laboratórios de educação digital para robótica e multimédia e a distribuição de painéis interativos para sala de aula. Tudo isto permite um acesso a ferramentas de trabalho complementares, importantes no século XXI. O problema está em fazer do digital o principal recurso de ensino, com a prevista digitalização dos manuais escolares e dos testes de avaliação, o que inevitavelmente leva a que as crianças passem a estar ainda mais horas em frente a ecrãs do que aquelas que já passam fora da escola. Nesta semana, o tema impõe-se, porque as provas de aferição do 2º, 5º e 8º anos, sob protesto de pais e professores, começaram a decorrer digitalmente. Estamos a falar de crianças que fazem testes eletrónicos mal sabendo reconhecer as teclas. O Governo quer que, em 2025, todas as provas e exames nacionais sejam neste suporte. O que se ganha na redução da burocracia perde-se na apreciação efetiva. A questão essencial, quanto a mim, é um ponto de partida errado. Está longe de estar provado que uma desmaterialização integral dos recursos educativos traga vantagens inequívocas para as crianças no longo prazo, e muitos estudos dizem precisamente o contrário. Um cérebro digital tende a ser mais disperso e impaciente e, por isso, tem mais dificuldade em acionar os circuitos de leitura profunda, que são fundamentais para a inferência, análise crítica e reflexão. Não é por acaso que muitos cérebros de Silicon Valley recusam dar tecnologia aos filhos pequenos. Como explica a neurociência, tudo o que não for usado e estimulado perde-se em anos críticos de formação. O resultado é já notório: as competências linguísticas e a capacidade de concentração estão a diminuir. Sim, estamos mesmo, como espécie, a ficar mais estúpidos.

Tudo isto acontece numa altura em que se vive uma revolução no mercado de trabalho, quando mentes brilhantes discutem os perigos da Inteligência Artificial (IA), que vem substituir funções até agora exclusivas dos humanos. Certo é que cada vez teremos mais máquinas a desempenhar mais tarefas diferentes – não se trata apenas dos trabalhos mecânicos ou repetitivos, mas de todos os que possam ser relacionáveis ou programáveis, inclusive através de machine learning. Sabe-se que 60% dos trabalhadores estão, hoje, em ocupações que não existiam em 1940, mas estima-se que a IA possa vir a substituir 300 milhões de empregos.

Neste mundo digital, as escolas têm de apostar naquilo que nos distingue verdadeiramente das máquinas. O saber escolástico e os métodos expositivos já não fazem sentido. É preciso mudar tudo. O ensino deve estimular a interação humana, a criatividade, a empatia, a experiência. A sua tarefa principal não pode ser debitar informação – essa está por todo o lado –, mas criar cidadãos que reflitam, que relacionem, que acrescentem, que idealizem, que se mexam. Tudo o que um ensino feito através de ecrãs não oferece.

P.S.: Há dois anos, partiu-se o tablet lá de casa, que era usado pela minha filha mais nova. Para seu desespero, optámos por não lhe dar outro. Hoje, com 9 anos, é ela a primeira a agradecer-nos: devora livros, pinta, pensa e está sempre a inventar coisas para fazer. Foi a melhor decisão educativa que tomei na vida.

O mundo não ficou chato, o mundo melhorou

"O mundo está muito chato. Não posso nem fazer piada que logo vem esse pessoal do mimimi reclamar." Você já deve ter se deparado com frases assim, que inundam as redes sociais e os comentários em portais, onde muitas pessoas manifestam nostalgia do que para elas foram "bons tempos". No caso, décadas atrás, quando muita coisa errada era considerada "de boa".

Nesse suposto "idílio", era comum andar com crianças no banco da frente do carro (sem cinto!) e fumando ao lado delas, chamar mulheres de "piranhas", e por aí vai. Ou seja, era um horror. Éramos muito ignorantes. E, mesmo assim, há quem tenha saudades.

Uma das grandes tristezas dos "nostálgicos do ódio" é o fato de que "hoje não podemos fazer piada com qualquer coisa". Essas pessoas sentem falta de quando era normal fazer "piada" racista, contra gays, contra mulheres ou contra pessoas com deficiência. Basicamente, sentem saudades de um tempo em que os preconceitos e o bullying eram liberados e nunca criticados. Era assim na minha escola nos anos 80 e acredito que em quase todas.


Hoje, as coisas mudaram. Racismo e piadas contra minorias não são mais aceitas. Acredito que a maioria de nós entendeu, finalmente, que rir da dor dos outros não tem graça, muito pelo contrário. É perigoso e leva a outros assédios.

Essa tomada de consciência faz com que algumas piadas, por exemplo, sejam consideradas inaceitáveis – também pela Justiça.

Foi o que aconteceu recentemente com o humorista politicamente incorreto Léo Lins, que faz muito sucesso com um humor baseado principalmente em piadas que envolvem racismo, pedofilia, mulheres, gays, pessoas com deficiência. Não vou reproduzi-las aqui, mas ele fez piada também com a morte de Marielle Franco e Isabella Nardoni, uma criança que foi assassinada. Um horror.

Não sou só eu que fiquei com enjoo ao assistir (por obrigação profissional) a seus vídeos no Youtube. A Justiça de São Paulo entendeu que seu conteúdo violava a lei e ordenou que o show "perturbador" fosse removido da plataforma.

A decisão causou polêmica. E, claro, logo se manifestaram os nostálgicos, os que sentem saudades do humor do bullying e da ofensa racial. "Que saudades da época em que podíamos chamar um negro de macaco sem sermos presos", devem pensar alguns.

E não, hoje não se pode, ainda bem. No Brasil, racismo é crime passível de prisão desde 1989. E, em janeiro deste ano, foi aprovada também uma lei que tipifica a injúria racial como crime de racismo. Ou seja, chamar de macaco pode (e deve) dar cadeia.

Isso não quer dizer, obviamente, que não existam mais racistas no Brasil e mundo afora. No último domingo, vimos as imagens tristes e revoltantes de torcedores de um estádio na Espanha chamando o jogador Vinicius Junior (o Vini Jr.) de "macaco", uma forma de racismo descarado, que não pode ser aceita de maneira alguma.

Muitos dos responsáveis pela partida, além de parte dos torcedores, devem fazer parte da turma dos racistas nostálgicos, já que Vini, a vítima, foi expulso de campo.

"Vou até o fim contra os racistas", disse o jogador, cheio de razão.

Apesar do absurdo ataque racista contra Vini Jr., muitas das reações a ele mostram que as coisas estão mudando. Enquanto na Espanha muitos diziam no Twitter que o jogador era "arrogante" e estava "fazendo drama", atletas e times do mundo todo apoiavam o brasileiro.

E, mais importante, a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, se manifestou, repudiou o caso e disse que entraria em contato com o governo espanhol. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que participava de encontro do G7, repudiou o racismo contra o jogador. Ou seja, o caso virou uma questão, entre outras coisas, diplomática. Certíssimo.

Se fosse no passado, isso não teria acontecido. Sim, jovens, há não tanto tempo, chamar um negro de macaco era algo aceito.

Um exemplo: Mussum, dos Trapalhões, um dos personagens mais incríveis da infância de quem tem mais de 40 anos, era alvo de várias piadas racistas no programa.

Eu adorava os Trapalhões e nem me lembrava disso. Então, foi com certo choque que vi cenas antigas do seriado. Em uma delas, Didi e Dedé estão tentando consertar um carro quebrado, e, em certo momento, Didi fala: "Achei o macaco". Tratava-se de Mussum. Péssimo.

Esses tempos do passado eram bons? Sinto muito em dizer isso, mas só eram bons para os racistas. Espero que não seja o seu caso.

quinta-feira, 25 de maio de 2023

Três ataques virulentos contra Marina, em três frases, de três homens

Não foi um dia fácil ontem para a ministra Marina Silva (Meio Ambiente e Mudança do Clima). Uma história que se repete, um filme que já viu. Novamente no centro de um debate na qual é colocada como a resistência ao desenvolvimento do país por suas “manias socioambientais”.

Marina passou seis horas do dia ontem numa audiência pública, na Câmara, ouvindo de bolsonaristas incomodados com suas respostas extensas coisas do tipo: “As respostas devem ser mais breves. Se não, vira palestra, e não discussão”, disse Zé Trovão (PL-SC); e “palestra e entrevista a gente vê na TV”, afirmou Felipe Francischini (União-PR).


As grosserias contra a ministra se seguiram durante o dia e vieram de escalão mais alto. Somam-se a essas duras palavras contra uma ministra que é referência mundial derrotas em votações no Congresso, como aprovação do projeto que tira poderes de sua pasta e a flexibilização da proteção da Mata Atlântica.

Relator da medida provisória que mexeu na estrutura do governo, Isnaldo Bulhões (MDB-AL) reagiu às críticas de Marina às mudanças na sua área com a afirmação de que ela fala “fora de contexto” e que atua com “espírito narcisístico”.

“Ela (Marina) está totalmente se posicionando fora de contexto, indo de encontro ao pensamento de governo. Quando ela fala, não sei se movida por um espírito narcisístico, que a política de proteção ao meio ambiente está sendo esvaziada, não é verdade. Isso é uma política de Estado, não é individual” – disse Bulhões.

Outra desferida contra a ministra veio de seu colega de Esplanada, o ministro Alexandre Silveira, das Minas e Energia, que defende exploração de petróleo na foz do rio Amazonas. Marina é contra essa ideia e, por conta do embate, teve que ouvir ser Lula a referência no Brasil para o meio ambiente:

“O embaixador do meio ambiente do Brasil, reconhecido mundialmente, é o presidente Lula. E a gente não precisa de outro. Ele já deu o norte que vai garantir o cumprimento estrito da lei e do respeito ao meio ambiente, mas sem perder o foco do diálogo para construção de caminhos em que a gente possa desenvolver o país e trazer retorno social. Não precisamos de outra marca no governo” – disse o ministro.

O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), foi outro que deu uma declaração que atinge em cheio a luta de Marina. Ele afirmou que não é um tema que tenha força no Congresso. Ele disse isso após a votação das duas matérias no plenário.