sexta-feira, 8 de maio de 2020

Tropa do genocídio

Guedes e Bolsonaro organizaram uma marcha da estupidez e da morte em direção ao STF, com um séquito de empresários, para coagir a Corte, colocar a crise no colo dos ministros e terceirizar suas responsabilidades. No caminho, pisaram nos 8,5 mil mortos que a Covid-19 já deixou.

O governo entrou no modo encenação. Só existe na forma. Finge preocupação, finge que a economia importa, finge liberar o auxílio emergencial, finge o socorro às empresas. Só não finge o desprezo pela vida e pelos mais pobres. Nisso, são autênticos
Roberto Freire, presidente do Cidadania

Brasil está perto da quebra democrática

Desde que acabou o regime militar, nunca o Brasil esteve tão perto da quebra democrática como na presidência de Jair Bolsonaro. Mesmo assim, um golpe de Estado tem menos chances de acontecer do que a manutenção da democracia. As instituições democráticas são mais fortes do que em 1964, a maior parte da sociedade (2/3 dela, pelo menos) não quer repassar um poder autocrático ao bolsonarismo e o país terá enormes dificuldades no plano internacional se adotar essa via. Entretanto, o golpismo não pode ser descartado. Afinal, o presidente tem estimulado atos autoritários e as reações têm sido mais tímidas do que deveriam ser.

Parafraseando o saudoso Aldir Blanc, morto pela covid-19 nesta semana, o Brasil dança na corda bamba de sombrinha e em cada passo dessa linha pode se machucar. Embora menor que na década de 1960, há um risco de quebra democrática que parece cada vez mais aterrorizante após as manifestações realizadas aos domingos em frente ao Palácio do Planalto, as chamadas “coronafest”, com pessoas louvando o autoritarismo e ignorando a pandemia. Qualquer leitura de todo o mandato até agora constataria que Bolsonaro e seus seguidores não vão diminuir o ímpeto radical. Quem apostou no contrário ficou no meio do caminho, como Bebianno ou o general Santos Cruz.

Como o perigo está batendo à nossa porta, é importante para o país construir um cenário em que o bolsonarismo chega de forma autoritária ao poder, comparando-o com o golpe de 1964. Para começar, Bolsonaro teria muito menos apoio social e teria de ser mais revolucionário, isto é, alterar mais profundamente as instituições e suas relações com a sociedade. A mídia, o grande empresariado nacional e internacional, parte da classe média mais escolarizada, os Estados Unidos e, sobretudo, a maioria dos políticos com mandato compunham os grupos que deram suporte à chegada de Castelo Branco à Presidência.


Um movimento bolsonarista de tomada do poder teria uma base social diferente. Seria composta, principalmente, por grupos de pequenos e médios empresários, por parcela de profissionais liberais e da classe média que perderam status social nos últimos anos, por uma parte de evangélicos liderados por pastores com grande participação política e ainda por um conjunto de lideranças midiáticas, especialmente advindas da internet. Não se trata de um conglomerado pequeno de pessoas, embora haja numa parcela dos bolsonaristas uma certa instabilidade de posição, que poderá ser atingida tanto pela pandemia como pela crise econômica - as últimas pesquisas de opinião já estão mostrando isso.

Haveria maiores dificuldades para a atuação do bolsonarismo golpista nos grandes centros urbanos, onde há mais movimentos e organizações sociais independentes e um conjunto grande da população pobre que rejeita Bolsonaro desde 2018. Além disso, as capitais e seu entorno têm sofrido mais com as mortes pela covid-19, e isso não será fácil de esquecer para milhares de famílias. De todo modo, mobilizações nas maiores cidades e regiões metropolitanas poderiam gerar um conflito não só entre posições políticas, mas com forte violência física.

O golpe de 1964 interrompeu a democracia, mas não foi feito sem o apoio de parte das principais elites políticas e econômicas da época. Importantes lideranças políticas apoiaram a queda de João Goulart. Os principais governadores participaram fortemente da conspiração, especialmente Carlos Lacerda e Magalhães Pinto. São Paulo foi o epicentro econômico da queda do regime, com o apoio das maiores empresas brasileiras e estrangeiras. O comando da opinião pública majoritária estava no Rio, lugar que concentrava muitas das barreiras ao golpismo e, não obstante, onde também havia uma mídia e intelectuais que deram um suporte importante à quebra democrática.

Voltemos aos dias atuais. Quem daria o suporte político a um golpe organizado por Bolsonaro? No Congresso Nacional, nem a cúpula nem a maioria de deputados e senadores apoiaria esse processo autoritário. Os governos estaduais e das capitais têm se colocado cada vez mais contra as decisões de presidente. Dado esse conflito federativo, uma quebra democrática bolsonarista desorganizaria o sistema político-administrativo, uma vez que as principais políticas públicas são implementadas pelos governos subnacionais.

São Paulo não cumpriria a função de locomotiva de um regime autoritário como no passado. O governador João Doria, o prefeito Bruno Covas e as lideranças mais expressivas de sua economia, vindas da indústria, dos serviços e do sistema financeiro, não aceitariam esse papel. Sabe-se que algumas entidades empresariais têm sido governistas desde sempre, contudo, elas não conseguiriam atrair para uma aventura golpista o lado mais dinâmico da economia, que hoje tem fortes conexão com estruturas globalizadas. Em outras palavras, Bolsonaro teria que gerar uma guerra enorme com as elites paulistas e com o oposicionismo típico da região metropolitana que contém mais de 21 milhões de habitantes.

Quando comparado ao golpe de 1964, o bolsonarismo teria de fazer uma destruição institucional muito maior, porque grande parte do sistema está contra ele - sem que a maioria dos pobres apoie ou se mobilize pelo presidente. Seguindo sua lógica de atacar as instituições, Bolsonaro tenderia a cassar a maioria dos parlamentares. Ele também teria que, logo de cara, aposentar compulsoriamente todos os ministros do STF, pois todos são suspeitos para as hostes bolsonaristas, quando somente em 1969 começou o expurgo no Supremo feito pela ditadura.

Indo mais direto ao ponto: dada a atual correlação de forças e resistências institucionais, bem como em razão da visão ideológica do bolsonarismo, muito mais radical hoje do que em 1964, o AI-5 teria de ser o primeiro ato de um governo autoritário comandado por Bolsonaro. Não haveria espaços para acomodações iniciais com os políticos nem com o Judiciário, muito menos com a “accountability” vinda da sociedade ou do Ministério Público. Seria uma revolução desde cara, com grande desorganização do país e forte tendência de gerar violência por todos os lados.

Uma quebra democrática agora não teria apoio internacional algum. Muito pelo contrário: o mais provável seria sofrer represálias da Europa - seria o fim da entrada na OCDE. Trump não apoiaria Bolsonaro porque haverá eleições presidenciais neste ano, e ele prefere sua reeleição acima de tudo. Como os democratas têm um grande poder no Congresso americano, é bem provável que viessem sanções dos Estados Unidos ao Brasil. Todo esse imbróglio levaria bilhões de dólares para fora do país. No fundo, alguém precisa dizer ao presidente que acabou a Guerra Fria - e não será o ministro da Relações Exteriores que fará isso.

O pior é que a lógica radical do bolsonarismo, que depende de construir inimigos a todo momento, também levaria a um conflito explicito com a China. Aqui vale lembrar que o regime militar, afora um ou outro arroubo ideológico, no geral foi mais pragmático na política externa. Não se pode esperar pragmatismo político de Bolsonaro, menos ainda se ele ganhar um poder autocrático. Por isso, seria esperado que fosse reforçada a ideia do perigo do comunismo chinês e as exportações brasileiras do agronegócio sofreriam um enorme baque.

Se levado adiante, um golpe bolsonarista poderia ter a participação de parte dos militares no processo, todavia, a instituição militar perderia muito com tudo isso porque, ao contrário do outro regime, não seria ela a condutora do governo. Seria um governo de um líder carismático e extremista, que é ex-militar, usando os militares. Pior do que isso só a possibilidade de Bolsonaro tentar se segurar no poder por meio de milícias, compostas por civis recrutados, por policiais das forças subnacionais e por membros de patentes menores das Forças Armadas. Seria o fim de um projeto institucional construído desde o fim da Guerra do Paraguai, que daria lugar ao bolsonarismo como organizador da coerção estatal.

O tamanho do problema advindo de um golpismo seria muito maior diante do contexto atual, em que vivemos a maior crise do país desde a Segunda Guerra Mundial, com uma combinação terrível de pandemia, estagnação econômica, aumento da desigualdade social e da polarização política. Quem participasse de um processo como esse perderia muito não só no curto prazo, mas para sua imagem na história. Os militares estariam dispostos a isso?

Como dito no início do artigo, esse cenário, felizmente, não é o mais provável. Porém, montá-lo é útil para, em primeiro lugar, evitar de todo modo que a democracia seja rompida. Nossos filhos e netos não merecem que o destino do país seja entregue a um chavismo de extrema direita. Além disso, mostrar o que seria uma distopia bolsonarista realça o seu contrário, isto é, o que deveríamos fazer para sair democraticamente da imensa crise atual. Algo que exigirá não só ideias melhores, mas lideranças e acordos políticos acima da polarização que nos comanda desde 2013. Para essa tarefa, Bolsonaro não tem sido o líder adequado e nem parece querer ocupar esse papel. O modo bolsonarista de governar, em suma, é um problema com ou sem golpe, deixando-nos numa corda bamba de sombrinha - e agora sem a beleza da poesia de Aldir Blanc.
Fernando Abrucio

Pandemia expõe “necropolítica à brasileira” e uma certa elite que não vê além do umbigo

"O pico da doença [da covid-19] já passou quando a gente analisa a classe média, classe média alta. O desafio é que o Brasil é um país com muita comunidade, muita favela, o que acaba dificultando o processo todo.” A fala de Guilherme Benchimol, presidente da corretora XP, uma importante peça no mercado financeiro brasileiro — e um dos executivos mais engajados no movimento Não Demita, incentivando empresas a manter suas equipes durante a pandemia —, aconteceu durante uma transmissão ao vivo do jornal O Estado de S. Paulo nesta semana e causou uma enxurrada de críticas e revolta nas redes sociais. Ao fatiar a gravidade da pandemia do novo coronavírus entre uma crise de pobres e outra de ricos, o bilionário mostrou a faceta mais caricata da elite brasileira, que se põe à parte frente aos mais de 8.500 mortos em decorrência da doença, o que coloca o país na 6ª posição em número de óbitos.

O próprio Benchimol veio à público se desculpar pela frase “mal construída”, que, segundo ele, foi tirada do contexto e não representa o que acredita. Mas na medida em que a população mais rica começa a se sentir confiante de que a maior ameaça― para eles ― já passou, um movimento perigoso avança no Brasil, na visão do psicanalista e professor da USP, Christian Dunker. “Há uma negação do que se sabe de outros países: de que quando chega o ponto mais crítico, o ponto de saturação do sistema de saúde público e privado, não adianta você ter dinheiro ou ser de uma classe mais alta porque não haverá sistema disponível”, afirma. Segundo a Confederação Nacional de Saúde (CNS), em ao menos seis Estados já há saturação dos sistemas públicos e privados de atendimento.


O psicanalista afirma que a onda negacionista e a percepção de estar fora de perigo abrange, sim, uma parte importante da elite nacional, e tem como base uma crença dessas pessoas de que são excepcionais, fora de grupos de riscos, já que são privilegiados. Por isso, podem relaxar regras de isolamento e até promover encontros com amigos. “Escuto muito isso no consultório. Que as pessoas se sentem especiais, que são saudáveis, atletas como Bolsonaro e que isso é uma gripezinha. O presidente repetiu à exaustão esse discurso de negação da realidade assim com várias lideranças religiosas.”

Dunker ressalta que essa narrativa se instala mais fortemente na sociedade brasileira pela negação da desigualdade social já existente. “Esta é a realidade primeira da qual nós não queremos saber”, pontua. Em seu livro Mal-estar, sofrimento e sintoma: Uma psicopatologia do Brasil entre muros, o psicanalista explica como, há anos, as classes média e alta lidam com o conflito: com a construção de um muro e a designação de seus síndicos, responsáveis por manter em dia a dia de seu status quo. “Essa ideia de negação do conflito e da diferença já estava lá em 1970, quando inventamos um Brasil em que a gente aparta a diferença. E acho que agora estamos regredindo para uma maneira de ver o mundo, até favorecida pelas medidas sanitárias, em que o mundo é o tamanho do seu condomínio”, diz.

A vida privada dos condomínios é também uma janela que expõe abismos sociais —em geral, quanto maior a renda, maior a chance de realizar trabalho remoto. Em meio à escalada do coronavírus, os locais, em geral, mudaram regras de convivência, com restrições de acesso a visitas e entregadores. Áreas de lazer e academias de uso coletivo também foram interditadas, mas, já passadas algumas semanas de isolamento, embates começam a ser travados entre vizinhos para afrouxar as medidas, o que pode colocar em riscos moradores, mas também funcionários que seguem trabalhando. “Esse trabalhadores nunca deixaram de ser invisíveis, assim como os moradores de ruas, pedintes, os informais, os precarizados. Eles são formas de vidas que não fazem parte dos ‘outros’. Mas, no contexto da pandemia, são também elementos que transmitem o vírus, o que se choca muito com essa administração imaginária do mundo ”, lembra o psicanalista. Nesta quarta, provocou debate o fato de o serviço doméstico ter sido considerado essencial em Belém, que está em regime de bloqueio total de atividades não essenciais (lockdown), já que os profissionais ficariam impedidos de fazer a quarentena ou cuidar da própria família por causa da ausência de creches e escolas. O prefeito de Belém, Zenaldo Coutinho (PSDB), argumentou que pessoas, como profissionais de saúde, "precisam, pela necessidade de trabalho essencial, ter alguém em casa”.

Na visão de Christian Dunker, a pandemia trouxe mais à tona a “equação obscena” da escolha entra a vida ou a economia fortemente martelada pelo empresariado. O grupo, por sua vez, tem respaldo ativo de Jair Bolsonaro. O psicanalista frisa que o movimento apenas escancara a ideia de ter vidas matáveis que já existia na necropolítica à brasileira, diz ele, citando um conceito desenvolvido em 2003 pelo intelectual camaronense Achille Mbembe, que questiona os limites da soberania do Estado na escolha de quem deve viver e quem deve morrer. “Neste momento de impasse e crise da economia, vai se comunicar com as classes mais elevadas e populares a ideia de que é melhor continuar trabalhando e ganhando do que morrer de fome. Apesar do aumento do sofrimento e da crise alimentar, obviamente a gente teria medidas de suporte para isso sem chegar a essa equação”, afirma.

A insistência no argumento de que é preciso privilegiar o funcionamento da economia em detrimento das medidas de isolamento social ficou evidente de novo nesta quinta-feira. Em mais um movimento para pressionar a retomada da atividade econômica, o presidente levou uma comitiva de empresários e ministros para a sede do Supremo Tribunal Federal (STF) para alertar o presidente da Corte, Antonio Dias Toffoli, sobre os impactos que o isolamento social tem gerado na iniciativa privada e como a paralisia econômica pode transformar o Brasil “em uma Venezuela”. “Nós devemos nos preocupar com economia, sim. Mas também com empregos”, declarou Bolsonaro. “Emprego é vida.” Na ocasião, empresários procuraram chamar a atenção dizendo que as “indústrias estão no UTI”, alheios às filas de pessoas que estão morrendo por falta de leitos em vários pontos do país.
Sairemos melhores da pandemia?

A disputa sobre o presente e como será o futuro pós-pandemia está por toda parte, não só na política. Se há os negacionistas, há também os que encaram a crise global econômica e sanitária como uma espécie de purgação, limpeza ou uma catarse que o mundo está atravessando. Na meio disso, as marcas e empresas tentam se sintonizar e se atrelar inclusive a ações positivas do combate à doença ou à crise econômica, mas nem sempre o objetivo é alcançado. Nesta semana, a marca carioca Osklen, do grupo Alpargatas, lançou uma campanha em que vendia duas máscaras de proteção por 147 reais. Para cada kit vendido, ela doaria uma cesta básica no valor de 70 reais para a comunidade do Jacarezinho, na Zona Norte do Rio. A campanha, no entanto, recebeu fortes críticas nas redes sociais, já que o preço foi considerado abusivo pelos usuários. Máscaras são tecido são vendidas por menos de dez reais em São Paulo. Muitos questionavam como a marca queria lucrar em um item essencial para prevenir a doença. A empresa justificou-se dizendo que o projeto foi pensado com uma margem de retorno “que apenas viabilizaria a operação”, além da doação de comida, mas a força da crítica a fez recuar e "repensar o projeto”.

Para o psicanalista Dunker, o momento poderá, de fato, levar as pessoas a dois caminhos. Um de progredir para uma super individualização. “Eu tenho recurso, eu preciso salvar meu lucro, eu pago respirador, eu sou especial e posso sair na rua”. E outro de maior solidariedade. “A situação impõe que as pessoas olhem para o lado, se organizem a ajudar quem está numa situação pior, de se importarem com a coletividade”. Dunker acredita que há esperança de que a sociedade saia “um pouquinho melhor” dessa nova realidade imposta, mas alerta que o discurso de que o mundo se transformará em outro muito melhor, reverberado por artistas e propagandas é falacioso. “Porque está dizendo que eu preciso de uma coisa muito grande para a verdadeira transformação acontecer. As pequenas transformações surgem das pequenas diferenças”.

Pensamento do Dia


Cale a boca, presidente

Com todo o respeito, por que não te calas? Não quero mais saber de Bolsonaro. O que o Brasil precisa agora é de um lockdown do presidente e de seus filhos. Que os genocidas sejam isolados no Palácio, sem acesso a seus robôs reais e virtuais. Já se comprovou que essa família não está nem aí para o total de mortos na pandemia: que sejam 10 mil, 100 mil ou muito mais, não lhes importa. Eles só querem a PF do Rio de Janeiro. 

E isso para mim chegou no limite, tá ok? Não tem mais conversa. Acabou a paciência. Não negociamos com sequestradores da compaixão e da cordialidade brasileiras. Cale a boca, pelo amor de Deus, o senhor aí na rampa, tresloucado em mangas de camisa, porque eu não perguntei nada. Assim o senhor se dirigiu a jornalistas - mas no imperativo, várias vezes. Cala a boca! Cala a boca! De que adianta, depois, sob pressão, se desculpar por mais uma "grosseria" entre tantas? Patifaria! Canalhice!


As Forças Armadas estão mesmo do seu lado? Desconfie. Os militares apoiam que o senhor insufle seguidores a agredir jornalistas, profissionais da saúde e fiscais do Ibama? Os generais não são estúpidos assim. Eles lembram bem que o capitão foi expulso do Exército por indisciplina, anarquia e planos incendiários. 

O respeito à hierarquia e ao chefe do Executivo vai até um limite: o da desonra à vida. A Constituição será cumprida, Bolsonaro, a qualquer preço, e esse preço será mais alto do que o pago ao Centrão em troca de apoio. Lei e ordem não estão sendo respeitadas no Brasil. A incitação à violência vem de cima. Pior ainda, essa sublevação ocorre num país que já perdeu, no momento em que escrevo, mais de 8 mil brasileiros para a “gripezinha”. E daí?

Nossa curva acentuada de óbitos parece um foguete desgovernado. E isso se deve ao desrespeito a todos os alertas de infectologistas e pneumologistas, ao menosprezo à ciência. E a um líder populista, caricato e vil. A cada domingo, a rampa do Planalto serve a mais uma performance de desobediência civil. Que no Dia das Mães as bolsonaristas pensem em primeiro lugar na vida de seus filhos. Não se inspirem no guru que leva a filha sem máscara para aglomerações. 

O povo não está com Bolsonaro. Está amedrontado. Sem água ou casa digna. Em filas por R$ 600. O povo quer comida, leitos, remédios, médicos e respiradores para seus parentes. O povo é conduzido à morte pelo fanfarrão. Bolsonaro cria crises, ignora o vírus e coloca a economia contra a vida. Aposta na ignorância. Até quando essa insensatez não será punida como um crime contra a humanidade? Qual o número aceitável de mortos antes de outros poderes intervirem? A lealdade é ao chefe direto ou à nação?

O Brasil pode se tornar o recordista mundial de subnotificações, contágios e mortes. Não respeitou o isolamento horizontal como deveria – e sabemos o porquê. Mudar o comando da Saúde, por vaidade e disputa política, foi trágico. As previsões são apocalípticas. "Os mortos 'batem à nossa porta', enchem cemitérios, câmaras mortuárias e IMLs", disse ao GLOBO o infectologista Rafael Galliez. "Não há resposta de Estado que priorize a vida". Após tanto tempo perdido, até o novo ministro da Saúde, Nelson Teich, aquele que só se expressa no futuro, já recomendou lockdown, o bloqueio total, em estados mais atingidos. Não diz claramente onde e quando. Papelão.

Diante da morte de artistas que ajudaram a construir nosso patrimônio cultural, não ouvimos nenhuma palavra federal, nem mesmo de Regina Duarte. Vergonha. O ator Lima Duarte falou pelo Brasil, em vídeo para Flávio Migliaccio, que se despediu desiludido da vida. Aos 90 anos, com a lucidez e emoção que faltam ao governo, referiu-se à fala de seu personagem em peça de Bertolt Brecht no Teatro de Arena: “Os que lavam as mãos, o fazem numa bacia de sangue”. É o silêncio dos culpados. Não podemos nos calar.

De volta a Canudos


Diz-se que a história só se repete como tragédia. Estamos no período das comemorações dos 130 anos da Proclamação da República, episódio que pôs fim ao Império e deu início a um novo regime político-institucional, onde os Poderes são separados e harmônicos e o presidente, eleito pelo povo. Os ventos da modernidade, que já haviam soprado sobre a Europa e os Estados Unidos, chegavam ao Brasil. Era o fim da escravidão, a consagração da liberdade de expressão e do voto popular, mesmo ainda que limitado. No entanto, à margem das mudanças, ficaram camadas expressivas da população, ex-escravos, trabalhadores rurais e tantos outros, excluídos das oportunidades que viriam com a expansão do liberalismo econômico. Esperava-se.

Multidões dessa gente juntaram-se, em Canudos, no sertão da Bahia, para seguir o Messias, nascido em Quixeramobim, que pregava a guerra contra a República, uma maldição do diabo. Antônio Conselheiro proclamava: “Há de chover uma grande chuva de estrelas, e aí será o fim do mundo. Em 1900 se apagarão as luzes. Deus disse no Evangelho: há rebanhos que andam fora deste aprisco, e é preciso que se reúnam porque há um só pastor e um só rebanho”. Em nome de Deus, contra os tempos modernos, o Messias agregava seus seguidores fanáticos, alimentados pela fé e pelo ódio.

Passado mais de um século, um novo Messias escolhido pela vontade popular chega para conduzir seu povo. Tem a força, que lhe foi concedida em eleição direta, mas nos limites legais da democracia, com os pesos e contrapesos do equilíbrio entre dos Poderes. Sente-se menos poderoso nessa República do que fora Antônio Conselheiro no seu império fictício.

O Messias dos dias de hoje vê a pandemia, trazida pelos ventos do Oriente, como uma obra do diabo, desgraça enviada pela China. Como o outro, crê que a República é sua inimiga e que precisa, pois, destruir os outros Poderes, que não lhe deixam governar. Querem derrubá-lo, insiste. Para “salvar” o seu povo do comunismo, da “podridão” do mundo moderno, das “indecências desses tempos de ateísmo e de pecado”, mobiliza seus seguidores com a força do ódio e das suas milícias nas redes sociais.

Aos domingos, como não há cultos, vai às ruas, com as bandeiras de Israel e dos Estados Unidos, para reunir seu rebanho e incitá-lo a descumprir as orientações de seu próprio governo, pedir o fechamento do Congresso Nacional e do STF e agredir fotógrafos e jornalistas. Sua predileção é a agressão verbal às jornalistas. Prega alucinado, enquanto seu povo vai morrendo, vítima da Covid-19, “praga disseminada pelo comunismo”.

Crendo na antevisão de Antônio Conselheiro, adverte seus súditos: “Em verdade vos digo: quando as nações brigam com as nações, o Brasil com o Brasil, a Inglaterra com a Inglaterra, a Prússia com a Prússia, das ondas do mar D. Sebastião sairá com todo o seu exército”, para nos “salvar da doença do comunismo”.

Velhos generais

O bagulho está louco. Às vezes parece que a tática bolsonarista é tornar a vida no Brasil tão insuportável que dê saudades da ditadura militar. Mas sem ele. Não dá para compará-lo a Castello Branco ou Ernesto Geisel, que o chamou de “mau militar”, e até Figueiredo, que foi sempre o primeiro da classe nos cursos do Exército, e pareceria um estadista educado ao lado de Bolsonaro. Costa e Silva, que também foi sempre o primeiro da classe, tinha algumas dificuldades de expressão, mas seria um erudito diante do Jair.

O Exército respeitava a meritocracia, o preparo individual, a carreira, embora isso não garantisse um bom governo. Pelo menos na ditadura os filhos dos generais-presidentes não se metiam em política e não mandavam nada. Nesse tempo torturavam e matavam fisicamente, agora assassinam reputações e disseminam fake news com exércitos de robôs. A paranoia comunista volta aos tempos da Guerra Fria. Nenhum ministro da Educação da ditadura foi pior e mais ignorante do que Abraham Weintraub. Nenhum general-presidente condecorou milicianos ou tentou emplacar um filho sem qualificações para a embaixada em Washington. A censura de financiamentos públicos para filmes e peças,“em defesa da família”, é mais radical que na ditadura.


Não dá para ter saudades da ditadura, mas mesmo seus piores governos foram melhores que o de Bolsonaro em eficiência e compostura. O Exército sabe disso. O homem está descontrolado. Dá desculpas esfarrapadas e não explica seu xodó pela Polícia Federal do Rio de Janeiro. Pior do que ter o dele é ter o rabo do filho preso, vale tudo para salvá-lo. E se não der?

Imaginem um cenário em que Flávio Bolsonaro, depois do devido processo legal, é condenado por unanimidade no STF e vai preso. O que faria o capitão? Seu governo acabaria? O Exército apoiaria um golpe por causa de Flávio Bolsonaro?

Pouco provável, mas, mesmo assim, mais do que a inviável candidatura de Bolsonaro quando foi lançada. O Brasil é muito louco. De tanto sofrer foi enlouquecendo.
Nelson Motta

O Brasil está matando o Brasil

O Brasil abriu a semana com a morte de Aldir Blanc, o poeta que, em uma das canções mais pungentes contra a ditadura militar, escreveu: “a esperança equilibrista sabe que o show de todo artista tem que continuar”. Morto aos 73 anos por covid-19, o show de Aldir Blanc não pôde continuar. A esperança já não consegue se equilibrar no Brasil e deslizou para o abismo. O país de Aldir Blanc e todo o seu imaginário foram mortos pelo perverso que se embriaga com a própria boçalidade, espirra e aperta com dedos lambuzados as mãos de seus seguidores. E então diz, diante das milhares de vítimas da pandemia e de sua irresponsabilidade: “E daí?”. A morte do poeta oficializa que o Brasil continental perdeu seu continente ―sua carne, sua alma e seus contornos― e a poesia já não nasce.

Bruno Itan, morador do Complexo do Alemão
Desgovernado por Jair Bolsonaro, o Brasil vai se tornando uma ameaça na América Latina. Já é o terceiro no mundo em número de mortes em 24 horas, mesmo com evidências de enorme subnotificação, e tem apavorado os vizinhos. “Se o Brasil espirra, o Paraguai tem uma pneumonia”, escreveu no Twitter Guillermo Sequera, diretor de vigilância de saúde do Paraguai em 1 de Maio. Naquele dia, 63 dos 67 casos confirmados no país eram de pessoas que tinham vindo do Brasil. Outros países que fazem fronteira com o país já expressaram sua preocupação com a expansão da covid-19 em meio ao aumento exponencial da turbulência política.

O Brasil não só é um gigante com 210 milhões de habitantes, tanto vítimas quanto transmissores potenciais do novo coronavírus, como um gigante liderado pelo vilão número um do mundo em pandemia. No domingo, mais uma vez, Jair Bolsonaro estimulou e compareceu a uma manifestação que clamava pelo fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal. Os golpistas são minoria no país, mas estimulados pela família presidencial que tenta impedir o avanço das investigações sobre seu envolvimento com as milícias.

Enquanto as imagens de corpos empilhados e covas abertas se sucedem, Bolsonaro e o ex-ministro da Justiça Sergio Moro ensaiam um duelo sem honra: Moro, o herói decaído, tentando desinfetar sua biografia carregada de possíveis ilegalidades; Bolsonaro tentando sobreviver às revelações de seu ex-superministro, subitamente acometido por um surto de moralidade. Conta com o apoio dos generais encantados em voltar ao poder, algo até há pouco impensável num país em que milhares ainda não encontraram os corpos de seus familiares executados pela ditadura militar de 21 anos.

Ao mesmo tempo, a covid-19 vai devastando a Amazônia e converte cidades como Manaus em necrotério. Enquanto o vírus atinge o corpo dos indígenas, o corpo da floresta é destruído pelas motosserras. Os alertas mostram que o desmatamento da Amazônia explode, os caminhões enfileiram-se nas estradas carregados de cadáveres de gigantes.

Só algumas horas depois de Aldir Blanc, o Brasil perdia também Flávio Migliaccio, um dos atores mais queridos de gerações de brasileiros. Associado à alegria por milhões de fãs, ele se suicidou. Como Aldir Blanc escreveu: “O Brazil não merece o Brasil. O Brazil tá matando o Brasil”.