sexta-feira, 5 de abril de 2019

O Ministro da Deseducação

Não consigo encontrar uma passagem do governo dos Bolsonaros que me entusiasme, que me deixe esperançosa de um futuro melhor para o Brasil. Nada. E fico muito triste com isso, pois gostaria muito de morrer levando comigo a esperança de deixar para filhos e netos um país forte, rico e, sobretudo, instruído.

Mas com esse ministro que alguém teve a infeliz ideia de colocar no MEC? Com esse cidadão que ignora completamente nossa História, que agora nos ameaça com a edição de livros didáticos que mentirão para nossas crianças? Com essa figura que já confessou estar encantado com o cargo que ocupa e que, portanto, pouco se lixa com as críticas que lhe fazem?

Se o tal ministro ao menos quisesse conhecer melhor a História do país onde vive, ele poderia ter o imenso prazer sim, porque ler as entrevistas de Geneton Moraes Neto é um imenso prazer, não só pelo talento que ele tinha como entrevistador, mas como pela seriedade com que ele descrevia as mais célebres figuras e os fatos mais importantes de nossa época.


Geneton infelizmente nos deixou. E muito cedo. Mas seus textos ainda estão aqui e lê-los é conhecer melhor o Brasil. São suas palavras que deveriam ser entregues aos nossos estudantes e não, por exemplo, o vídeo que nos envergonha ao negar o Golpe de 1964.

Leiam aqui uma das muitas barbaridades ditas pelo colombiano Vélez: "O golpe foi uma votação no Congresso, uma instância constitucional, quando há a ausência do presidente". Bem, Vélez talvez não saiba, mas em 31 de março de 1964 Goulart ainda estava no país.

Mas vamos lá, vamos tentar acreditar nessa figura espalhafatosa, nesse ministro que deseduca o MEC e nem tenta se educar.

Digamos que não tenha havido golpe. Nem muito menos, por óbvio, revolução. Como disse Luis Fernando Veríssimo em sua coluna de 4 de abril, o que houve foi Nada. Tudo bem. Aceito, foi um Nada vergonhoso, feio, mas um Nada.

Mas se não houve nada, nem golpe, nem revolução, porque diabos o pernambucano Gregório Bezerra foi velado sob a forte emoção de seus companheiros que lotavam a Assembleia Legislativa de Pernambuco e mais sussurravam do que cantavam a Internacional Socialista para depois, ao ouvir o brado "Companheiro Gregório!", responder a uma só voz "Presente!".

Dirão os adeptos do ministro deseducador: "mas ele era um comunista!" Era, sim, e daí? por isso merecia viver o que Geneton Moraes Neto chamou de seu Último Canto Gregoriano?

"A imagem de Gregório Bezerra ensanguentado, amarrado a uma corda e arrastado pelas ruas do Recife por um coronel raivoso ganhou a força de um emblema. O desfile foi filmado e exibido na televisão".

O arquivo sumiu. No entanto a força dessa imagem permanece até hoje. Não há recifense que ali vivesse em abril de 1964 que não guarde na memória a dor e o desespero de ver passar por suas ruas aquele homem decente e correto puxado como um animal por um coronel alucinado cujo nome prefiro nunca repetir.

Mas a pergunta ainda vive. Se não houve golpe, se os militares agora, 55 anos depois, só queriam rememorar o golpe que não houve, se a intenção, segundo o capitão Bolsonaro, foi "rememorar" o fato e identificar pontos corretos e errados para o "bem do Brasil no futuro", garantindo que a ascensão dos militares ao poder se deu para interromper "a escalada em direção ao totalitarismo", só me resta lastimar. Preferia mil vezes viver sob um governo de Gregório Bezerra, do que sob as armas indecentes do coronel que o arrastou pelo bairro de Casa Forte, Recife, PE, 3 de abril de 1964.

Bolsonaro ainda não entende o que é democracia

O passado tem um poder fascinante sobre os seres humanos, tanto no plano individual como no mundo público. Mas há duas maneiras de se usar a história como referência de nossas ações. Uma é se prender nos acontecimentos passados e travar uma batalha sem fim com eles, nunca se libertando por completo do que já ocorreu. A outra é utilizando a experiência pregressa como um farol para iluminar as decisões no presente e no futuro. A diferença entre tais visões está em quanto aprendemos com os que vieram antes de nós.


O presidente Jair Bolsonaro construiu uma frase de efeito em sua viagem a Israel: "Aquele que esquece o seu passado está condenado a não ter futuro". A sabedoria contida nessa afirmação não revela, de imediato, qual é a concepção de história que orienta nosso atual governante. Isto é, se ele prefere se digladiar com os fatos passados, ou se opta por uma visão na qual se deve aprender com o passado para melhorar as escolhas do futuro.

Tomando como base as opiniões e decisões vindas do presidente nestes três meses de governo, constata-se que Bolsonaro pouco tem aprendido com a história. Ele insiste mais num ajuste de contas com o passado, seja para reverenciar o que foi feito em tempos pretéritos, como aparece em sua visão sobre o regime militar, seja para se colocar como um ponto de ruptura completa, de modo que é preciso criar algo novo que seja o inverso da "velha política" da Nova República.

O governante que aprende com o passado evita os erros das gestões anteriores e se inspira naquilo que é possível de ser replicado ou ser tomado como um ponto de partida. Dois exemplos mostram que Bolsonaro está seguindo outra linha, mais preocupado em defender posições derivadas de sua peculiar interpretação do que foi a história e menos em utilizar os ensinamentos do tempo como instrumento para produzir uma trilha diferente. Trata-se dos posicionamentos referentes ao presidencialismo de coalizão e às ditaduras do passado, no Brasil e fora dele.

A visão bolsonarista sobre o presidencialismo de coalizão se alimenta de uma interpretação da história. Olhando para o passado mais recente, Bolsonaro tem uma opinião segundo a qual tal modelo de governabilidade se baseava em negociatas entre o Executivo e o Legislativo, gerando processos imensos de corrupção. No fundo, ao se ancorar nesta ideia, o presidente está se colocando de forma contrária aos governantes anteriores e seus partidos, PSDB e PT. É a lógica da competição eleitoral que ainda alimenta a visão de mundo de alguém que agora precisa governar o país.

Obviamente que houve corrupção nos últimos governos e que ela, em parte, se originou da relação do Poder Executivo com membros do Legislativo, inclusive para aprovar certas matérias no Congresso Nacional. O problema está em interpretar que o modelo presidencialista brasileiro, vinculado à combinação de multipartidarismo, federalismo e presidente sem maioria congressual derivada da eleição, sempre levará a negociatas e roubalheiras.

Por meio do presidencialismo de coalizão, foi possível, nos últimos 30 anos, manter o jogo democrático, algo raro e pouco duradouro na trajetória política do Brasil. Utilizando esse modelo, o país fez várias reformas - quase cem emendas constitucionais - e teve avanços significativos nos campos econômico, político e social. Presidentes que tentaram evitar ou passar por cima dos congressistas e, especialmente, dos partidos políticos, não foram bem-sucedidos em suas políticas públicas e, ao fim e ao cabo, foram depostos. Essa é a maior lição da história que Bolsonaro deveria aprender.

Isso quer dizer que o presidente deve simplesmente dar todos os cargos e verbas que os congressistas pedirem? Essa também não é a resposta que pode ser retirada do aprendizado histórico. Na verdade, esse varejo só pode ser bem utilizado, com os cuidados necessários, para se garantir simultaneamente a governabilidade e padrões éticos, se for feito um pacto partidário prévio. Erram os governos que não começam pelo atacado, isto é, pela criação de alianças partidárias que alicercem a participação dos congressistas no Poder Executivo.

O mensalão nasceu no primeiro governo Lula porque o PT se recusou a fazer um pacto partidário com o maior partido congressual à sua disposição, que era o PMDB, e preferiu fazer negociações miúdas com os pequenos partidos da centro-direita. O petismo acreditava que bastava dar alguns pequenos nacos de poder a essas legendas invertebradas e, assim, manteria o controle sobre todo o processo legislativo sem perder sua hegemonia na condução da governabilidade. Com base num discurso purista e de superioridade sobre o restante do sistema político, esse hegemonismo petista foi a porta para a crise política e, ao contrário do que imaginavam, para a corrupção.

O discurso bolsonarista nas redes sociais lembra os tempos iniciais do petismo no plano federal. De um lado, como no passado petista, a parte mais radical do bolsonarismo acredita que vai substituir o antigo regime por meio da pressão popular - hoje baseada nas redes sociais. Para aprovar emendas constitucionais e outras legislações, bem como para evitar a pressão congressual sobre o presidente, esse caminho é um desastre. Mas, por outro lado, há outra parcela de bolsonaristas, mais localizados nos postos-chave do governo, cuja concepção de governabilidade passa pela conversa individualizada com os parlamentares e com a entrega de pequenas benesses, sem dividir efetivamente o poder e as responsabilidades que dele derivam.

A combinação da deslegitimação do sistema político com um jogo pouco coordenado de distribuição de prebendas aos parlamentares, inclusive aos do PSL, não garantirá a formação de uma maioria governista sólida. Será sempre um modelo baseado na desconfiança mútua entre Executivo e Legislativo. Esse era também o clima, em medidas variadas, nos governos de Jânio, Collor e Dilma, ensina a história, e os resultados finais são conhecidos. Ou então haverá algum revisionismo histórico que diga que nesses casos a culpa do fracasso não foi do presidente?

Se o presidente Bolsonaro quer instalar o novo na política brasileira, o que quer que seja isso, deve seguir uma máxima produzida pelo aprendizado histórico: somente é possível fazer mudanças de larga escala e de longo prazo, dentro de um regime democrático, por meio de alianças partidárias estáveis, nas quais haja compartilhamento de poder e responsabilidades. Para fazer isso, é preciso abandonar o comportamento messiânico e antipolítico, segundo o qual o presidente e seus seguidores são os únicos donos da verdade. Os congressistas são tão legítimos perante o voto do eleitor quanto Bolsonaro, e ele não tem maioria congressual para dar as cartas do jogo sem precisar de parceiros.

A história revela, ademais, que a eleição municipal de meio de mandato começa a afetar os parlamentares no fim do segundo semestre do primeiro ano de governo. Esse é o prazo para se aprovar reformas estruturais. Depois disso, tudo ficará mais difícil. O fato é que, se aprendesse com o passado, Bolsonaro estaria agora fazendo uma reforma ministerial com vistas não só a aprovar a reforma da Previdência, mas para criar uma aliança partidária mais estável, pelo menos de médio prazo, e voltada para o pleito local de 2020. Mas, no momento, o bolsonarismo está mais preocupado em olhar para a história para resgatar valores tradicionais e encontrar quem são seus inimigos eternos.

E aqui entra o segundo exemplo da dificuldade de Bolsonaro em lidar com o passado: suas ações e frases em relação a regimes autoritários no Brasil e no exterior. Sua insistência em dizer que não houve uma ditadura em nosso país a partir de 1964 luta contra os fatos: os presidentes não eram eleitos pelo povo, muitos políticos e cidadãos perderam seus direitos políticos, a sociedade foi calada pela censura, pessoas foram torturadas, morreram e desapareceram. Se o bolsonarismo não achar que isso é um modelo ditatorial, vai ter que dizer que há democracia em Cuba e na Coreia do Norte.

O que está por trás do raciocínio bolsonarista fica mais claro quando é dito que o nazismo foi um fenômeno político de esquerda. Tal versão contraria os fatos - os comunistas foram os primeiros presos por Hitler, que os odiava - e a visão dos dois principais interessados em elucidar o Holocausto, que são Alemanha e Israel, países onde majoritariamente e de forma oficial se diz que os nazistas eram de extrema direita. Essa interpretação tresloucada tem como propósito comprovar que a esquerda está vinculada à maior tragédia do século XX, e desse modo continuar a guerra política para aniquilar o inimigo.

No fundo, Bolsonaro ainda não aprendeu o que é democracia, ou pior, tem uma visão peculiar dela, na qual só são admitidos os que pensam como ele. Trata-se de uma doutrina que não aceita a pluralidade necessária para a vida democrática. O bolsonarismo está dizendo que não se pode aceitar a velha política e só ele representa o novo. Não há espaço para o diálogo e o convencimento. Ao seguir essa trilha, Bolsonaro reinventa o passado para interditar o futuro pensado como um feixe de possibilidades.
Fernando Abrucio

Brasil emporcalhado


STF ganha novo nome: Suprema Impotência

Realizou-se no plenário do Supremo Tribunal Federal uma inusitada solenidade. Nela, a Corte recebeu um manifesto de apoio com cara de desagravo. Subscrito por duas centenas de entidades, o documento classifica como inadmissíveis discursos que pregam o ódio e a violência contra a Suprema Corte. A cerimônia foi reveladora, inadequada e inútil.

A pajelança foi reveladora porque os ministros do Supremo, normalmente vistos como semideuses, reconheceram que também estão sujeitos à condição humana. Aceitaram a muleta de um desagravo depois que Dias Toffoli, presidente da Corte, num gesto de rara prepotência, abriu por conta própria um inquérito sigiloso para identificar autores de ameaças virtuais aos magistrados e seus familiares.


A coisa foi inadequada porque o rol de apoiadores do Supremo inclui certas entidades cujos dirigentes e associados merecem interrogatório, não reconhecimento público. O ato foi inútil porque, considerando-se o histórico de suas decisões mais recentes, o Supremo tomou gosto pelo comportamento de alto risco. Nesse contexto, pomadas como manifestos de apoio e inquéritos secretos podem aliviar momentaneamente as dores, mas não resolvem o problema.

Bons juízes, como se sabe, não devem aderir cegamente aos clamores da comunidade. Mas também não precisam virar as costas para a sociedade. Generalizou-se no Brasil a percepção de que não há local mais seguro para os corruptos do que o Supremo Tribunal Federal. Juízes de primeira instância aprenderam a prender. Certos ministros da Corte Suprema especializaram-se em soltar.

O Supremo envernizou sua reputação com decisões favoráveis a minorias e grupos sociais vulneráveis. Foi assim com a validação da Lei Maria da Penha, a interrupção da gravidez em casos de fetos anencefálicos, o direito ao aborto no primeiro trimestre da gravidez, o reconhecimento da união homoafetiva e das cotas para negros e deficientes em universidades. Mas nada disso atenua a má repercussão da política de celas abertas patrocinada por ministros como Gilmar Mendes, Dias Toffoli e Ricardo Lewandowski.

Alheio a todos os sinais de alerta, o Supremo adotou comportamento que levou à auto-desmoralização. Os ministros insultam-se diante das câmeras. Um deles julga casos de amigos. Outro decide sobre ex-chefes. E os demais fingem não ver. Há duas turmas na Corte. Uma notabilizou-se por prender. Outra solta a mais não poder. A primeira e a segunda instância condenam larápios. O Supremo os protege. Acaba de transformar a Justiça Eleitoral numa espécie de novo foro privilegiado para políticos em apuros.

De temeridade em temeridade, desceu à lata do lixo todo o prestígio social que o Supremo amealhara no julgamento do mensalão. A corrupção endêmica e reincidente fez do brasileiro um pretenso especialista em Supremo. Mesmo quem não entende de leis percebeu que certos magistrados não são necessariamente magistrados certos.

Foi contra esse pano de fundo que se avolumaram nas redes sociais, no noticiário, nos meios acadêmicos e no Ministério Público as críticas ao Supremo. Solidificou-se a percepção de que a Corte encostou sua reputação na desmoralização que atinge o sistema político e os outros Poderes. A diferença é que os outros agentes públicos foram arrastados para o caldeirão pela Lava Jato. As togas saltaram para dentro do melado por conta própria.

As críticas descambaram para as ameaças nas redes sociais? A integridade dos magistrados está ameaçada? Se a resposta for positiva para esse tipo de pergunta, o remédio é a abertura de inquéritos isentos de segredo, requisitados a quem de direito, seguidos da consequente responsabilização dos transgressores. Fora disso, remendos como manifestos oportunistas, longe de revitalizar, acabam por rebatizar a instância máxima do Poder Judiciário de Suprema Impotência.

Perda do brilho


A guerra é a obra de arte dos militares, a coroação da sua formação, a insígnia dourada da sua profissão. Não foram criados para brilhar na paz
Isabel Allende

Sem dias em cem

O problema não é o presidente Jair Bolsonaro não descer do palanque, como se diz por aí. Afinal, o celebrado Lula tampouco desceu do púlpito eleitoral em seus oito anos de poder. A questão que a muitos preocupa e a vários infelicita é o fato de, transcorridas doze semanas de governo, ele ainda não ter subido a rampa e, no gabinete do Palácio do Planalto, dado efeito ao que importa: o funcionamento da coisa pública. Como na piada do sujeito que fez dieta por quinze dias e no fim percebe que perdeu duas semanas na vida, o país completa 100 dias de Bolsonaro na Presidência sem nenhum ganho relevante no desatamento dos nós da administração que impedem o Brasil de sair do atraso na economia, saúde, educação e segurança. Na política, pretendendo avanços semeou paralisia pela falta de consistência do que seria o “novo” jeito de se relacionar com o Poder Legislativo.

Nenhuma de suas propostas andou. Nem as medidas provisórias, entre as quais estão a remodelação do Ministério da Economia e a liberação de auxílio de emergência às vítimas de Brumadinho. Isso num Parlamento que já aprovou confisco de cadernetas de poupança e quebra de paradigmas estatizantes com o impulso das urnas.

A situação soa ainda mais inusitada por se tratar de um presidente oriundo do Congresso e que, em tese, deveria ter noção sobre o papel da Casa no jogo democrático. Uma coisa é a campanha presidencial, durante a qual conta a relação do candidato com os anseios, reais ou ilusórios, do eleitorado. Outra, bem diferente, é a tratativa institucional que norteia o funcionamento da interdependência entre os poderes da República.

A independência consignada na Constituição requer harmonia. De forma alguma pressupõe que cada um faça o que lhe der na telha. Se o chefe do Executivo acha que pode atuar em desconexão com o Legislativo, é natural que a recíproca seja verdadeira. Donde os dois “trocos” que os deputados deram a Bolsonaro ao lhe infligir derrotas significativas com a aprovação do Orçamento impositivo e a rejeição do decreto que ampliava o escopo do sigilo a documentos oficiais.

O cacoete de parlamentar meramente reativo, livre para provocar em seu nicho de atuação no baixo ¬clero, parece ser o que impede Jair Bolsonaro de perceber que o início do período presidencial corresponde à entrada em cena do Congresso, à mudança da natureza do palco e, sobretudo, às demandas da plateia.

Na campanha candidatos falam à arquibancada, mas na Presidência governantes precisam lidar com o pessoal das cadeiras e camarotes se não querem ver a partida ser encerrada antes do tempo regulamentar.

O Supremo e o sacrifício de animais

O Supremo Tribunal decidiu que o sacrifício de animais em cultos religiosos afro-brasileiros é constitucional. Foi por unanimidade. E isso me decepcionou um pouco. Esperava uma corrente mais crítica ao antropocentrismo e sensível à dor dos animais.

Esses ventos ainda não sopram na Justiça brasileira. Mas já chegaram aqui da Argentina. Foi o caso de um habeas corpus concedido à chimpanzé Cecília, que visitei no Santuário dos Grandes Primatas, em Sorocaba. Cecília vivia triste e maltratada num zoo, mas ao chegar ao Brasil recuperou a alegria e até acasalou. Fiz um documentário sobre sua sorte.

Na mesma época entrevistei o escritor Peter Singer, autor do livro Libertação Animal, lançado em 1975, um texto inspirador do movimento moderno de defesa dos bichos. Singer estava exultante com a libertação de Cecília. Ele via ali os primeiros lampejos da aceitação de sua tese sobre os direitos dos animais.

Na vida cotidiana sabemos que essa é uma bandeira de minorias. E como tal precisa ser tratada com habilidade para atravessar a bandeira de ironia que se ergue diante dela.

Foi assim, por exemplo, que vi em Santa Catarina o movimento que criticava a Farra do Boi. É uma festa popular, tradicional na costa catarinense, onde para, os pescadores, o boi aparece como um invasor. A ideia na época não era acabar com a Farra do Boi, mas, na medida do possível, ajudar a transitá-la do boi real para um boi figurado, como, por exemplo, no Bumba meu Boi.

Creio que haveria uma possibilidade de argumentar com adeptos dos rituais de origem africana. Será que o sacrifício de animais é essencial para sua existência? Assim, como um leigo, posso afirmar que um dos mais belos rituais religiosos, envolvendo milhões de pessoas, são as oferendas a Iemanjá. Flores, quase todas flores. Na Baixada Fluminense documentei inúmeros trabalhos religiosos, nem todos usavam animais e, quando usavam, eram apenas uma parte das oferendas.

Creio que na própria religião afro-brasileira estão contidos os elementos que poderiam facilitar uma transição do corpo animal para o símbolo. Uma transição que a cultura popular brasileira, com suas representações do boi, já realizou.

Falei com um jovem político sobre o tema. Ele me respondeu: “Se me preocupar com isso, vou denunciar o peru de Natal”. Mas o peru de Natal é diferente. Ele é comido. Sempre afirmei que a proteína animal ainda é a maneira de alimentar tantas bocas no mundo. Mais ainda, para desalento dos vegetarianos, considero que o crescimento da humanidade, que nos levará aos 9 bilhões de pessoas em 2050, dificilmente dispensará a proteína animal. Mas o fato de comermos peru no Natal e sabermos que milhares morrem diariamente não justifica arrancar o pescoço de uma ave numa celebração mística.

A votação do Supremo lembrou-me de uma coisa: adianta apenas proibir? A experiência com a Farra do Boi, levei muitas pancadas por causa disso, é diálogo e compreensão. Mais que uma decisão da Corte, o ideal é uma transição em que o debate cultural realize o trabalho de suprimir maus-tratos aos animais.

Essa discussão no Supremo foi apenas um momento. Animais morrem inutilmente em grande escala no Brasil. E a causa, de certa forma, é o progresso material. Tenho documentando a mortandade dos jegues no Nordeste. Estão sendo substituídos pelas motocicletas. Morrem atropelados, abandonados pelos donos na margem das estradas.

Em alguns lugares, como em Apodi (RN), os jumentos foram recolhidos. Um promotor propôs que as pessoas passassem a comer carne de jegue. Ofereceu um churrasco. Sua proposta não vingou. Alguns empresários ainda esperam vender carne de jegue para a China.

Na verdade, uma extinção gradual vai tirando os jegues do cenário nordestino. Isso valeria uma política pública. Assim como o sacrifício de animais em cultos religiosos merecia um debate mais amplo.

Felizmente, nada vai deter o trabalho que se faz no Brasil. O próprio Santuário de Primatas em Sorocaba é um exemplo internacional. Em Três Rios há uma pousada que recebe bichos resgatados. A dona adotou uma jaguatirica que cruzou com uma gata e deu um belo gato mestiço. Na Serra da Mantiqueira, os chiqueiros estão cheios de filhos de javalis que cruzam com as porcas de madrugada. O que fazer com os javalis devastadores?

É todo um mundo girando. Levá-lo em conta ainda é muito difícil numa cultura em que o ser humana é o centro de tudo. Mas, apesar de decisões como a do Supremo, é possível dizer que está melhorando. Além disso, as crianças vêm aí e não são as mesmas do passado.

São Paulo já tem um hospital gratuito para animais. Em dezenas de lojas e restaurantes é possível ver tigelas de água para os animais de rua. Quando implodiram o presídio da Ilha Grande muitos cachorros fugiram para o mato. Hoje a ilha é cheia deles. Alguns estrangeiros às vezes retardam sua passagem pelo País apenas para adotar um cachorro da ilha.

O antropocentrismo aos poucos vai enfraquecendo, apesar do mundo institucional. Lembro-me das difíceis discussões no Congresso sobre experiências científicas com animais. Algumas envolvem a salvação de vidas humanas. No entanto, foi possível um nível de acordo. Acredito que hoje já exista uma tendência à simulação, fórmulas de cada vez eficazes para poupar os animais.

É uma escolha que transcende a polaridade esquerda-direita: um tipo de civilização está em jogo. Isso escapa ao próprio governo, preocupado, corretamente com a morte de 60 mil brasileiros por ano, mas totalmente perdido nas suas dúvidas sobre aquecimento global, nas suas estúpidas certezas como dizer que o nazismo foi um movimento de esquerda. Invadiu a União Soviética por engano? Milhões de mortes foram resultado de fogo amigo?

Animais racionais têm cada ideia.

Gente fora do mapa


Verdades alternativas no governo

O general Mourão precisa dizer, com jeitinho, ao presidente Bolsonaro e seu chanceler que a única coisa que une o nazismo à esquerda marxista é a tirania. Não são ruins por ser de direita ou de esquerda, são abomináveis porque não respeitam a liberdade e os direitos dos indivíduos, que devem se colocara serviço do Estado e de sua burocracia, com os resultados que se conhecem. Parece um absurdo ainda discutir isso a essas alturas da história.


O nazismo — com seu racismo, supremacismo ariano e eugenismo, seu militarismo e coletivismo — rivaliza em mortes com os democratas assassinados na União Soviética stalinista, militarizada e coletivista, em que o indivíduo não tinha liberdade política, econômica, cultural e de comportamento. Tudo em nome do Estado e pelo “povo”. A mesma coisa com sinal trocado, iguais na tirania e no autoritarismo.

Parece um absurdo ainda discutir isso a essas alturas da história. Imaginem alguém dizendo a Hitler, Himmler e Goebbels que eles são de esquerda. Câmara de gás ou gargalhadas? Ou chamando Stalin de nazista; fuzilado na Sibéria. O que eles têm em co mu mé o desprezo pelo indivíduo e pela liberdade.

Depois do nazismo de esquerda, o que mais podemos esperar? O comunismo democrático? O fascismo liberal-social? O judaísmo evangélico ? A ditadura democrática de força? O criacionismo? Uma nova mentalidade ou a volta de uma velha? Viveremos numa Bibliocracia?

É possível acreditar que o golpe militar de 64 foi “para salvar o país do comunismo”, como apoio de boa parte da população, mas é impossível negar os “probleminhas” de milhares de prisões arbitrárias, mortes e tortura institucionalizada. E quais seriam os “problemões”? Pareceu m absurdo ainda discutir isso a essas alturas da história.

Em vez de discutir o futuro, e o presente urgente, perdem tempo tentando reescrever o passado para adequá-lo a suas crenças e preconceitos. É um mi
toque de 55% do eleitorado votaram em Bolsonaro, boa parte só votou contra o PT. É verdade esse bilhete.

A força democrática



Foi um regime democrático de força
Ricardo Vélez Rodriguez, ministro da Educação

Os sete tiros de fuzil do presidente

O presidente Jair Messias Bolsonaro quis fazer uma exibição de tiro de fuzil durante sua recente e polêmica visita a Israel. Segundo o ministro da Segurança daquele país, o hóspede de honra brasileiro “acertou no alvo sete tiros de longo alcance”. Não sei por que quis destacar que os disparos de Bolsonaro, que deram no alvo, foram sete. É um número, de fato, mágico desde tempos antigos, mas nunca foi um número de destruição e morte. Para Pitágoras, era o número perfeito. Roma foi edificada sobre sete colinas. Sete são as fases da lua, e sete os dias da semana.

Das sete maravilhas do mundo aos sete pecados capitais, dir-se-ia que esse número entranha um poder oculto. Também na Bíblia, o número sete domina os acontecimentos mais importantes da história de Israel. Deus descansa no sétimo dia depois de ter criado o mundo. O candelabro do templo tinha sete braços, e Salomão construiu o templo em sete anos. E sete são os selos do Apocalipse.


Os sete tiros de fuzil de Bolsonaro em Israel, que atingiram o alvo a longa distância com precisão, podem ser vistos como símbolo da polêmica presidência do mandatário brasileiro. Se o presidente tivesse querido fazer honra ao bíblico número sete, poderia ter escolhido outros campos para prestigiá-lo, em vez do gesto bélico de disparar um fuzil sete vezes.

Sete poderiam ser outros tantos projetos do presidente para transformar o Brasil, para devolver-lhe vitalidade econômica e a ilusão de uma convivência pacífica que supere ódios e discórdias. Poderiam ter sido sete anúncios de outras tantas decisões capazes de entusiasmar um país encolhido e dilacerado após tantas frustrações com seus governantes. Poderia ter pedido em Israel, terra bíblica, um projeto para reunificar judeus e palestinos em um novo horizonte de diálogo e de paz, algo que desejam sobretudo as novas gerações de ambos os lados. Poderia naquele pedacinho de terra carregado de historia milenar ter soltado sete pombas da paz, em vez de disparar uma arma que evoca guerra e destruição.

O mundo dos símbolos é antigo como o Homo Sapiens. A Humanidade se comunica de muitas formas, das palavras e da escrita aos gestos da linguagem não-verbal. Bolsonaro, desde a época da campanha eleitoral, nos revelou a evidência de sua predileção pela linguagem explícita das armas. Já fazem parte da mitologia seus gestos com as mãos imitando os tiros de um revólver. Gesto que quis ensinar a uma menina de cinco anos, profanando sua mão ainda inocente.

Em sua emblemática visita a Israel, talvez não tenha sido apenas coincidência que o presidente brasileiro, nostálgico de ditaduras e torturas, quisesse, em vez de gestos de paz e de distensão mundial, em um pedaço do mundo que é um barril de pólvora sempre pronto a explodir, fazer uma exibição simbólica de sua grande pontaria militar. Esses disparos servirão para abrir um grande diálogo com todos os brasileiros que preferem a paz à batalha, ou o impedirão de ser presidente de todos para se limitar àqueles que, como ele, têm sonhos cheios de violência e vingança?

A significativa e polêmica viagem de Bolsonaro a Israel continuará tendo consequências em seu destino como presidente da República no Brasil. Enquanto os brasileiros condenavam aqui a ditadura em seu 55º aniversário, o presidente se divertia em Israel em uma exibição de tiros de fuzil, sem que ninguém visse uma fugidia pomba de paz voar sobre sua cabeça.

A guerra, a das armas e das ideologias, é a grama que melhor parece crescer nesse jardim sombrio do capitão reformado caçador de conflitos. Em Jerusalém, antes de deixar Israel, o mandatário brasileiro quis deixar plantada uma nova espécie maligna. Afirmou, sem tremer a voz, que “o nazismo era de esquerda”. O Holocausto também?

Bolsonaro e suas milícias do Governo, sempre em pé de guerra contra a evidência da História, passarão, e a realidade brasileira ressuscitará. Se o presidente alardeia ter adotado como lema as palavras do Evangelho de João: “A verdade vos libertará” (Jo 8,31ss), o que estamos vendo, ao contrário, é que a sua verdade, vendada e negada pela ideologia, o está deixando cego.
Juan Arias

Anarquia no palácio do capitão

O general porta-voz de Jair Bolsonaro disse considerar “caso encerrado” a polêmica provocada por um vídeo divulgado no último domingo por meio de um dos canais privados da Secretaria de Comunicação da presidência da República que exalta o golpe militar de 31 de março de 1964. Caso encerrado coisa nenhuma!



Na segunda-feira, dia 1º de abril, o vice-presidente da República, general Hamilton Mourão, declarou ao jornal O Globo que o vídeo fora divulgado por decisão do presidente Jair Bolsonaro, àquela altura em visita a Israel: “Decisão do presidente. Foi divulgado pelo Planalto, é decisão do presidente”.

Mas ontem, ainda no exercício da presidência da República, Mourão corrigiu-se: “Em tese, ele deveria saber. Agora sei que ele não sabia”. Se antes era grave o fato de um vídeo que exalta um golpe militar ter sido divulgado por decisão do presidente, muito mais grave ficou com a revelação feita por Mourão de que Bolsonaro não sabia.

Quem mandou produzir o vídeo e quem mandou divulgar? – eis a questão. O empresário bolsonarista Osmar Stábile, de São Paulo, ex-vice-presidente do Corinthians, se apresentou há poucas horas como o produtor do vídeo. “Não conheço Bolsonaro, mas apoiei sua eleição”, justificou-se. Ele disse também ter apoiado o golpe de 64.

Vá lá que não se trate de um arranjo de última hora para esconder o verdadeiro autor do vídeo, ou para afastar a suspeita de que o vídeo foi produzido e pago pelo governo. Mas quem autorizou que o vídeo supostamente produzido por um empresário fosse divulgado pela Secretaria de Comunicação da presidência da República?
Enquanto não se souber quem autorizou, cabe o temor compartilhado por políticos de vários partidos de que o Palácio do Planalto tenha virado terra de ninguém. Onde deveria haver ordem, hierarquia, comando, existe descontrole, confusão, anarquia. Nem os generais que cercam Bolsonaro estão mais dando conta do recado.

Como alguém com acesso a canais privativos de comunicação da presidência da República pode endereçar a quem bem deseje um vídeo de celebração a um golpe militar? E apenas poucos dias depois de o presidente da República, em decisão controversa, ter orientado as Forças Armadas a comemorarem o golpe? Como foi possível?

Não dá para que tudo fique por isso mesmo, salvo se for para desmoralização do presidente e dos que o ajudam a governar.

Pensamento do Dia


Guedes mentiu na Câmara ao dizer que proposta não beneficiará banqueiros

Paulo Guedes é um personagem ardiloso e controverso, para dizer o mínimo. Jamais poderia ter sido convocado pelo presidente da República para gerir a economia, com todos os poderes, recebendo carta-branca com apenas uma restrição – ao reformar a Previdência, poupar ao máximo os militares. O resto – todo o resto – ficou por conta dele, como se fosse um homem perfeito, um São Francisco de Assis em versão econômico-financeira. Mas não é nada disso, Guedes é um pecador inveterado, que não pode ver dinheiro.


Tem um passado nebuloso, que inclui os inquéritos a que está respondendo pelas aplicações que fez para fundos de pensão que beneficiaram suas próprias empresas, a ponto de a direção do Funcex, da Caixa Econômica Federal, ter denunciado a gestão temerária dele à Superintendência Nacional de Previdência Complementar (Previc), que constatou os prejuízos e encaminhou a denúncia ao Ministério Público.

O prejuízo que deu aos fundos está mais do que está comprovado. Se suas aplicações tivessem dado lucro, por óbvio nem haveria a investigação. Justamente por isso, o pecador Guedes tenta escapar dessa denúncia como o diabo foge da cruz. Primeiro, recusou-se a depor ao Ministério Público e agora se esconde sob o manto sagrado do foro privilegiado no Supremo.

É inacreditável que Bolsonaro tenha colocado um economista desse tipo para cuidar dos cofres públicos. Em sua santa ingenuidade, o presidente da República não percebe que Guedes é um ferrenho defensor dos banqueiros, está pouco se preocupando com o interesse público.

Nesta quarta-feira, o ministro mentiu abertamente na Comissão de Constituição e Justiça, ao afirmar que não vai entregar a capitalização para os bancos. Vai entregar a quem, então? Ora, ele admite que pretende seguir o modelo do Chile, com o sistema sendo operado pelas AFPs [Administradoras de Fundos de Pensão], controladas por bancos ou seguradoras, que são irmãos xifópagos.

Para os trabalhadores, o sistema não deu certo no Chile, mas tem sido altamente lucrativo para os bancos e seguradoras. Os fundos de pensão que fazem a capitalização no Chile são geridos por seis AFPs, das quais cinco são estrangeiras, e uma delas é do banco BTG Pactual, do qual Guedes foi um dos fundadores. Mas é claro que isso é apenas coincidência.

Os donos da história

O Presidente Bolsonaro deu mais um tiro no pé e prestou um serviço à história, ao propor a comemoração dos 55 anos do golpe militar nos quartéis. Um assunto histórico que estava nas estantes das bibliotecas foi despertado e serviu para provocar debates e criar em novas gerações a consciência de fatos passados que não devemos esquecer. Há dias que as mídias, noticiários, editoriais, twittwea e facebooks debatem, esclarecem e denunciam os crimes da ditadura militar que, por 21 anos, cassou mandatos, de políticos e empregos de servidores, aubmeteu Congresso e Justiça, censurou imprensa, universidades e livros, matou, exilou, “desapareceu” pessoas, sequestrou adultos e crianças e deformou a consciência política dos brasileiros. Nos deixou a memória do horror que querem roubar se apropriando da história.

Propor comemorar 64 para desfazer a marca do golpe foi um serviço que Bolsonaro prestou sem querer. Está claro que foi um golpe porque os militares rasgaram a Constituição vigente desde 1946 e implantaram uma ditadura. O Brasil sabe que a narrativa de Bolsonaro é falsa: sim, foi golpe.


Este debate está ajudando a debater a outra narrativa de que os impeachments de Collor e de Dilma foram golpes. Que o Congresso fez em 2016 o que os militares fizeram em 1964. Escondendo que nos dois impeachments o Congresso agiu dentro da Constituição de 1988 e manteve todo o rigor democrático: debate do processo por seis meses com absoluto direito á defesa, garantia do direito dos presidentes durante, os julgamenros, posse dos vices escolhidos por Collor e por Dilma, manutenção de todo o sistema institucional democrático e dos direitos de ex-presidentes por toda vida financiados pelo poder público; no caso da presisente Dilma, diferente se Collor, manutenção inclusive de seus direitos civis, o que lhe permitiu ser candidata ao Senado nas primeiras eleićões depois de seu impeachment. Usar a palavra golpe para 2016 è uma “fake story” tão sem sentido quanto dizer que em 1964 não houve golpe.

O tiro no pé dado pelo Bolsonaro vai ajudar a desmentir a falsa narrativa direitista do não-golpe em 1964 e a falaa narrativa petista de que houve golpes em 1992 e em 2016.

Graças ao sectarismo bolsonarista, a história pode sair ganhando e o Brasil entendendo melhor a sua história. Os militares podem até dizer que foi golpe e interpretar que teria sido bom para o Brasil, os petistas podem até dizer que os impeachments não foram bons para o Brasil. O que eles não devem é tentar ludibriar a história: golpe foi golpe, impeachments foram impeachments. Podem interpretar a história, mas não são donos dela.

Piorar, sempre pode

Caros Brasileiros,

Será que o presidente Jair Bolsonaro ainda não percebeu que a campanha eleitoral já acabou? Que ele deveria estar governando para os mais de 200 milhões de brasileiros, e não continuar satisfazendo a seus eleitores ou ideólogos como Olavo de Carvalho? Na visita a Israel, mais uma vez, ele deu provas de que parece não estar ciente disso.

É trágico, é triste, é devastador. Mesmo depois da visita ao memorial Yad Vashem, em Jerusalém, um museu público em memória às vítimas do Holocausto, Bolsonaro parece não ter conseguido refletir sobre as consequências catastróficas do nazismo. Pelo contrário: usou o genocídio contra judeus como mais uma oportunidade de combater "os esquerdistas" e o "socialismo".

Confesso que eu, como alemã, estou atônita. Sinto vergonha alheia ao ouvir da boca de um presidente de um grande país como o Brasil que ele não teria dúvidas "de que o nazismo foi um movimento de esquerda". A falsificação da história depois da visita a um museu em memória às vítimas do Holocausto cruzou todos os limites.

O combate permanente ao "socialismo, comunismo e aos esquerdistas" parece ser uma obsessão política do presidente Bolsonaro e do chanceler Ernesto Araújo, que o acompanhou na visita oficial a Israel. Como na campanha eleitoral, Bolsonaro continua espalhando fake news.

Agora, o presidente Bolsonaro escolheu a Terra Santa para disseminar fake news. O incidente revela muito sobre a personagem e o estilo político dele. A tentativa de ressignificar o nazismo como um movimento de esquerda mostra que ele se inspira nos métodos de agitação de regimes totalitários: vender mentiras como verdade e criar um bode expiatório para todos os problemas de um país. O que eram os judeus para os nazistas alemães, são os "esquerdistas", socialistas e comunistas para o presidente brasileiro.

No mundo ideologicamente envenenado de Bolsonaro, a história parece ser uma massa de manobra, como também mostra a forma de tratar o golpe militar de 1964. A deposição do presidente democraticamente eleito João Goulart no dia 31 de março de 1964, para Bolsonaro, não foi um golpe militar. Na leitura dele, as Forças Armadas salvaram o Brasil de uma possível ditadura comunista.

A ordem de celebração do golpe militar pelo presidente Bolsonaro evidenciou a alienação com a realidade e a ausência completa de empatia e tato político. O mal-estar aumentou mais ainda com o fato de que o presidente se ausentou na "comemoração" do 55º aniversário da ditadura.

Essa toada de destruição e perturbação permanente parece ser uma marca registrada do presidente brasileiro. A consequência é que, interna e externamente, os problemas do Brasil vão se agravando. No governo, aumentem os atritos entre militares e seguidores do autoproclamado filósofo Olavo de Carvalho. A área de educação está parada, igualmente às negociações sobre a reforma da Previdência no Congresso.

Na política externa, o cenário se repete. O saldo da viagem oficial para Israel é devastador. Além de reanimar a polêmica sobre o nazismo com uma mentira histórica, o presidente Bolsonaro está contribuindo para crescentes tensões diplomáticas com os países árabes. O cortejo ao primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, desagradou não somente aos países árabes, mas também à indústria agropecuária brasileira.

Pois o Brasil é um dos maiores exportadores de carne halal do mundo. O comércio com o Oriente Médio é de grande relevância, ao contrário dos negócios bilaterais com Israel. O Brasil registrou um superávit de 7,1 bilhões de dólares em transações com os 22 países do bloco árabe, enquanto computou, por exemplo, um déficit de 419 milhões de dólares em negociações com Israel.

O presidente Bolsonaro está revertendo a política tradicional de neutralidade do Brasil. Um país que até agora era símbolo de convivência pacífica na comunidade internacional, e que não tinha inimigos, de repente resolveu partir para a ofensa e polarização.

Como no Brasil, em Israel também, o presidente Bolsonaro foi procurar aplausos nos cantos políticos mais avessos ao diálogo. Faltam poucos dias para se completarem os 100 primeiros dias do governo Bolsonaro. Uma lição já está bem clara: piorar, sempre pode.