terça-feira, 4 de setembro de 2018

Verba do Museu nacional em 2018 equivale a 2 minutos de gastos do Judiciário e 15 minutos do Congresso

Mesmo detendo um acervo de 20 milhões de itens, o Museu Nacional custava muito pouco para o governo federal - especialmente quando seus custos são comparados a outros da máquina pública.

Os R$ 268,4 mil gastos pelo Museu em 2018 até agora equivalem, por exemplo, a menos de 15 minutos de gastos do Congresso Nacional em 2017, por exemplo - Câmara e Senado custaram R$ 1,16 milhão por hora no ano passado, segundo levantamento da Ong Contas Abertas, especializada em acompanhar os gastos do governo.

Todos os dados relativos ao Museu Nacional nesta reportagem foram levantados pela reportagem da BBC News Brasil por meio do Siafi.

A comparação com o Poder Judiciário é ainda mais desfavorável: os mesmos R$ 268,4 mil seriam capazes de manter a máquina judiciária funcionando durante menos de 2 minutos em 2017 - no ano passado, a Justiça brasileira custou R$ 90,8 bilhões, segundo o relatório Justiça em Números, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).


De tudo que foi gasto pelo Museu Nacional este ano, uma parcela muito pequena - R$ 31,3 mil - foi usada para manutenção física e reformas do prédio onde a instituição funcionava, no parque da Quinta da Boa Vista, no Rio.
Ali perto, o estádio do Maracanã consumiu cerca de R$ 1,3 bilhão em sua última reforma, cujo objetivo era prepará-lo para a Copa de 2014. O total gasto com a reforma do Maracanã é 5.022 vezes maior que o gasto pelo Museu Nacional até agora em 2018.

Em 2017, o Museu teve gastos da ordem de R$ 413 mil. É muito se comparado aos gastos de uma família, mas uma quantia muito modesta diante do Orçamento da União.

E é muito pouco mesmo na comparação com as cifras da corrupção no Brasil: o ex-diretor da Petrobras Pedro Barusco poderia "manter" a instituição durante 640 anos - em valores de 2017 - com os R$ 267 milhões que ele devolveu como parte de seu acordo de delação premiada, em 2017.

O mesmo valor de R$ 413 mil é também 15 vezes menor que os R$ 6,5 milhões que o ex-governador do Rio, Sérgio Cabral, e sua esposa Adriana Ancelmo gastaram com a compra de joias de 2000 a 2016.
Verbas em queda livre desde 2013

As causas do incêndio que destruiu o Museu neste domingo ainda não são conhecidas. Mas as dificuldades orçamentárias e investimentos mínimos em manutenção, reparos e segurança vêm sendo relatados por funcionários da instituição há décadas.

O maior baque ocorreu entre os anos de 2013 e 2015 - os gastos do museu caíram de R$ 1,04 milhão em 2013 para apenas R$ 397,4 mil em 2015 (em valores corrigidos pela inflação). Nos anos seguintes, esta capacidade se recuperou um pouco, mas continua baixa. Foram R$ 480 mil em 2016, em valores corrigidos pela inflação, e R$ 445 mil em 2017.

Embora o orçamento do museu ao longo dos anos tenha sido um pouco maior do que isto, os gastos efetivos da instituição são o mais importante se ser avaliado - no sistema brasileiro, o orçamento corresponde a uma autorização para gastar.
Gastos com manutenção: só R$ 252 mil desde 2014

Outra coisa que chama a atenção nos gastos do Museu Nacional é o quão pouco a instituição gastava efetivamente para renovar sua estrutura física. Desde 2014, o Museu Nacional gastou apenas R$ 252 mil para tal fim. A última reforma relevante foi em 2014: uma reforma na estrutura de refrigeração da Biblioteca Central.

Em 2018, por exemplo, foram gastos apenas R$ 31,3 mil com manutenção - o orçamento destinado à rubrica este ano era de cerca de R$ 50 mil. Por outro lado, este ano o Museu usou R$ 188 mil para realizar eventos na casa.

Paisagem do Dia

Irlanda

O Museu, o desastre, a ignorância e o oportunismo: elementos da barbárie

O sentimento de que o Brasil desce desgovernado a ladeira da barbárie só aumenta. A vertiginosa sucessão de acontecimentos dos últimos anos desperta a impressão de que perdeu-se o sentido de civilização. Quem é o responsável pelo incêndio no Museu Nacional que deixou em cinzas um incomensurável patrimônio da humanidade? Claro que, agora, todo mundo tira o seu da reta, ao mesmo tempo em que se aproveita para “chutar cachorro morto”, como é o caso do governo Temer.

Entre enfastiado e contrariado, li Dilma Rousseff, pelo twitter, atribuir culpas a Michel Temer e seus aliados – que, a propósito, antes, foram dela. Mesmo o ressentimento e a lógica da disputa precisam ter limites. Não se faz comício na porta de um velório.

É evidente que o atual governo é uma lástima e que os cortes foram, são e serão prejudiciais; que este estado de coisas é mesmo deplorável. Mas, em primeiro lugar, o país não chegou a essa situação do nada. Em segundo, o Museu não construiu seu caos apenas nos últimos dois anos, como se estivesse perfeito antes. Foi um esforço sistemático e contínuo de várias gerações.

O oportunismo é também um dos traços do desastre civilizatório. Compromete ainda mais as biografias. O momento seria de calar.

O caso, infelizmente, não é responsabilidade de um só. A tragédia nos remete ao desleixo de longo prazo; à pouca importância dada à memória, à ciência, à cultura e blá-blá-blá… Todo mundo sabe e repetir é até um tanto constrangedor. Desculpem. No fundo, agimos como se não saber quem somos e de onde viemos não tivesse qualquer importância para o futuro. O Brasil vive um eterno presente de desastres.

Não é o incêndio o maior sinal da barbárie, é a ignorância atávica, continuada e persistente que o alimentou e, pior, deve continuar a dar oxigênio a novas labaredas.

O processo leva as digitais dos governos Temer, Dilma, Lula, FHC… Talvez, de Deodoro da Fonseca. Quando, na verdade, o país se preocupou com isso? Defensores e indignados de última hora não servem de nada; constituem uma vergonha tão grande quanto o mal crônico de um desastre anunciado. É o caso de se perguntar se o Brasil merece mesmo todo o imenso patrimônio natural e cultural que possui. Já esquecemos do desastre ambiental da Samarco?

O resto só pode ser o silêncio triste e profundo. Uma perda irreparável não pede bravatas, não pede desforras. Pede luto. E consciência de que é preciso mudar. Superar a barbárie. Fugir do abismo. Mesmo sem saber como nem para onde.
Carlos Melo

Alerta

Estamos injetando nos algoritmos as nossas limitações, a nossa forma de marginalizar
Kate Crawford  

Só tem na democracia

É curioso como algumas pessoas mentem descaradamente sobre os mais variados temas, especialmente na política. A quantidade de heróis que lutaram contra a ditadura assombra. Mas poucos contam quais foram seus atos de heroísmo, normalmente substituídos por um levantar de ombros como que dizendo “minha modéstia não me deixa falar sobre isso”.

Eu conheço gente que fez a sua parte com rara coragem, muitas vezes para ajudar quem tinha tentado destruí-los. Estes não falam sobre o assunto não porque não possam ou não tenham provas, como acontece com parte dos heróis que recebem polpudas mesadas do Governo, mas porque acham que não vale a pena. O que fizeram tinha que ser feito e ponto final.



Uma das grandes qualidades, se não a maior de todas, das democracias é que elas garantem o direito de cada um falar o que tiver vontade, até quando a fala propõe a destruição da própria democracia.

Não existe ditadura ou semi-democracia que permita isso ou vagamente se aproxime disso. O Estado corta a fala – ou o mal – pela raiz, num movimento rápido, que pode ir de uma pressão mais forte e evidente até a prisão do falador.

A quantidade de mentiras que têm sido ditas no Brasil de hoje apavora. E como o brasileiro se esquece depressa, a tese de Goebles, o Ministro da Propaganda de Hitler, floresce numa velocidade espantosa. Segundo ele, uma mentira repetida mil vezes se torna verdade.

No Brasil, isso é duas vezes mais verdade. Quantas vezes já me disseram isso ou aquilo, sem parar para pensar que o que estavam dizendo simplesmente não era possível porque não fazia sentido?

De apartamentos mirabolantes a atos de coragem sob fogo, vale tudo. Por isso, preste muita atenção ao que te dizem ou você lê. Há uma enorme chance de estarem tentando te levar no bico.

A ética nossa de cada dia

Vivemos numa época em que, graças à tecnologia da comunicação, deparamos diariamente com situações que nos levam, ou nos deveriam levar, a refletir sobre o comportamento das pessoas em sociedade. A ética, ou a falta dela, tema tão em voga na atualidade, tem sido amplamente discutida, sobretudo quando algo de novo aparece no cenário econômico e político, que tem estado bastante movimentado nos últimos meses.

As redes sociais têm sido porta-vozes de pessoas que se sentem “empoderadas” ao postar seu comentário no Facebook, criar um canal no YouTube ou utilizar o WhatsApp para compartilhar assuntos e criar grupos para trocar ideias com amigos. Mas, ao mesmo tempo que aproveito as vantagens, eu também me preocupo.

Até que ponto a agilidade de comunicação que a tecnologia nos faculta, em que tudo está resumido a um clique ou a um deslizar de dedos sobre a tela, nos proporciona informações corretas? A rapidez da informação está obrigatoriamente vinculada a pedaços de fatos? Será que estamos fadados a conviver na superficialidade, que não nos permite mergulhar nas questões que nos assolam?
Voltemos nosso olhar para a ética. Quando pensamos na palavra ética, vem-nos logo à mente a ideia dela relacionada a um determinado campo de atuação: ética na política, ética no trabalho, ética no esporte, ética na saúde, ética na educação, etc. E sempre conseguimos expandir esse termo para a esfera que acharmos mais conveniente.

Mas a ética não existe apenas nas relações profissionais ou comerciais. É preciso ter claro que a ética é parte do nosso dia a dia, de forma que, se não formos éticos conosco, não conseguiremos ser com os demais, e não seremos éticos na sociedade em que vivemos. A ética cabe em qualquer situação da nossa vida.

Mas, afinal, o que é essa palavra, ética, nos propõe? Será que seu sentido é imutável? Que significado tem essa palavra, que invadiu os noticiários nos últimos tempos e se instalou no nosso vocabulário cotidiano?

Etimologicamente, a palavra ética é de origem grega, ethos, que significa modo de ser, costume ou hábito. Esse termo reflete o caráter e a natureza de cada indivíduo enquanto forma de vida adquirida ou conquistada.

Seguindo essa linha de raciocínio, podemos dizer que a ética é tão antiga quando o nascimento das relações humanas. Seja com Adão e Eva no Éden, ou com a evolução do homem primata de Charles Darwin, a ética já estava lá, permeando as relações mesmo sem ser percebida ou nomeada.

Vemos a primeira definição de ética na Antiguidade clássica, com os filósofos Sócrates, Platão e Aristóteles. Com eles surge a ideia do pensamento crítico e reflexivo sobre valores e costumes vigentes.

Se falamos em costumes vigentes, podemos dizer que ética é uma questão atual. Não importa o tempo em que ela exista, ela sempre é contemporânea. Por isso, quando falamos de ética é crucial entender, antes de tudo, os problemas com os quais a sociedade de uma determinada época está tentando lidar.

Clóvis de Barros Filho explicita, de uma forma didática, que a ética passou a ser vista no imaginário comum como uma categorização prévia sobre qualquer conduta em “certo” ou “errado”. É como se ela se bastasse numa grande tabela com duas colunas: na primeira estariam as coisas legítimas e aceitáveis e na segunda coluna, comportamentos a evitar ou intoleráveis, ou seja, pode ou não pode, isso é ético e isso não é.

De fato, se essa tabela existisse, estaria obsoleta imediatamente, porque no dia seguinte estaríamos diante de situações inéditas que essa tabela não comportaria. Por isso podemos dizer que ética tem que ver com liberdade, com a possibilidade que temos de escolher como queremos conviver.

A ética parte de uma premissa: a nossa convivência pode ser diferente do que é, portanto, a nossa convivência pode ser melhor. A ética é a inteligência compartilhada a serviço do aperfeiçoamento da convivência e, por isso, ela não é um saber acabado, não é uma tabela pronta.

Exatamente por isso podemos dizer que não existe uma ética única e universal porque ela não é individual, ela sempre será referente a um grupo, a uma sociedade, a uma comunidade, logo, cada tempo terá de construir a sua ética. A ética que se desenrola na prática do dia a dia anda junto com a moral, originária do latim morales, cujo significado é “relativo aos costumes”. Por isso, à medida que as sociedades se modificam, a ética e a moral acompanham esse processo.

Moral é algo que você tem em seu interior e orienta suas ações, sem preocupação com olhar do outro. São Paulo, o apóstolo, em sua Carta aos Coríntios também deixa lição sobre moral: “Tudo me é permitido, mas nem tudo me convém” (1Cor 6:12).

Assim, a moral diz respeito ao nosso comportamento individual, enquanto a ética nos faz ter a capacidade de aperfeiçoar nossa convivência. Nesse sentido, podemos considerar a ética como uma postura que se refere a um modo de ser, à natureza da ação humana. Trata-se de uma maneira de lidar com as situações da vida e do modo como estabelecemos relações com outras pessoas, algo muito além do contato educado. O respeito aos próximos, a empatia com os diferentes podem nos tornar melhores seres em sociedade.

Embora nos devamos preocupar com as relações agressivas que se estão estabelecendo na sociedade, é preciso ter consciência de que o relacionamento humano pode ser diferente do que está em voga, e cabe exclusivamente a nós a tarefa de refletir e pensar conjuntamente e de argumentar dentro de um espaço de diálogo para aperfeiçoá-lo no dia a dia, para que o amanhã seja melhor do que o hoje.

Façamos nossa ética de cada dia acontecer, porque, se existe ética, é porque há liberdade. Se abrirmos mão da liberdade de fazermos a sociedade que queremos, teremos também aberto mão da possibilidade de convivência entre os seres humanos e da ética!

Gente fora do mapa


Museu Nacional, um projeto civilizatório que fracassou

Relatos sobre o abandono do Museu Nacional deixaram atônitos muitos brasileiros que assistiram pela televisão às labaredas consumirem quase 200 anos de pesquisa. É impossível não sentir uma certa resignação com a tragédia. Afinal, o Museu Nacional não é o primeiro a ter este destino, e não há indícios de mudanças para que seja o último. A sensação é que naturalizamos a ideia que a cultura não faz parte do projeto de Brasil e, por isso, é normal vê-la destruída. É só acompanhar os comentários de internautas satisfeitos com o incêndio nas redes sociais: "Segue o baile! Se não há vítimas, deixa queimar essa história comunista que criaram", afirmou um entusiasta da tragédia. "Um gasto a menos nos cofres públicos", disse outro.

Mas há de existir algo mais entre o descaso e a conformidade.



A história do Museu Nacional é a história de um projeto civilizatório para o Brasil que fracassou. Embora a discussão sobre o que é "civilização" seja, hoje em dia, alvo de de discussões, a ideia da família real portuguesa ao fugir para o Brasil era muito clara: trazer para os tórridos trópicos as boas maneiras, as artes e a cultura europeia. D. João VI, rei português, para além de todo um aparato político institucional, precisava também da criação de um aparato intelectual que tornasse legítima a Corte portuguesa trasladada para a América do Sul. Assim o Museu Nacional funcionou como uma das formas de validação do Império Português, agora em outras terras.

Criado via decreto de 6 de junho de 1808 com a função de “estimular os estudos de botânica e zoologia”, o museu não tinha acervo e começou com pequena coleção doada pelo próprio João VI e, posteriormente, aumentada por seu neto e imperador, D.Pedro II. Vale lembrar que Pedro (segundo) é um desses personagens peculiares de nossa história. Aclamado imperador aos quinze anos, em 1831, ele teve uma educação baseada nas ideias de seu principal tutor, o Marquês de Itanhaém. Sua educação baseava-se em "uma mistura de iluminismo, humanismo e moralismo", que o tornasse, nas palavras do historiador José Murilo de Carvalho, "um monarca humano, sábio, justo, honesto, constitucional, pacifista, tolerante”.

Era também viajante contumaz para Europa e Estados Unidos. Suas viagens eram marcadas pela visita a instituições culturais, de educação e ciência e a lugares históricos. Algumas das peças que mais chamavam a atenção do Museu Nacional, e que foram destruídas no incêndio, eram as múmias adquiridas em sua visita ao Egito. Ele se correspondeu com Nietzsche, Lewis Carroll, Júlio Verne e Victor Hugo. Foi amigo do astrônomo Camille Flammarion. Esteve nos Estados Unidos, em 1876, quando Alexander Graham Bell lançou o telefone. Se entusiasmou pela invenção e logo a trouxe para o Brasil. Financiou o cientista Louis Pasteur. Apoiou o projeto do empreendedor Irineu Evangelista de Sousa, o Visconde de Mauá, de trazer fazer a Estrada de Ferro Dom Pedro II. Financiou a primeira expedição brasileira à Antártida, e muitos outros projetos que, hoje criticados por seu viés elitista e etnocêntrico, foram, sem dúvida, um grande impulso na construção de um esboço de nação. Mas esse esboço não saiu realmente do papel.

O Museu Nacional era apenas um dos instrumentos civilizatórios do Império. Outras instituições eram a Biblioteca Nacional, o Jardim Botânico do Rio, a Imprensa Régia (atual Imprensa Nacional), a Casa de Suplicação (que mais tarde se tornaria o Supremo Tribunal Federal), o Banco do Brasil, a Academia Real da Marinha e a Escola Real de Ciências, Artes e Ofício (atual Escola de Belas Artes), além da Real Junta de Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegação (mais conhecida como Junta do Comércio).

Não é preciso conhecimento histórico para saber quais dessas instituições cresceram e prosperaram, e quais ficaram relegadas ao esquecimento. Quantas pessoas conhecem o STF ou o Banco do Brasil e quantas sabiam até o incêndio que existia um Museu Nacional no Rio? Qual você consideraria mais importante? Há razões porque as instituições culturais tem sido sendo lentamente apagadas. Com a proclamação da República, em 1889, e com boa parte das forças políticas defendendo ainda a monarquia, muitos republicanos se viram, de certa maneira, impelidos a deixar de lado qualquer ícone ou projeto que lembrassem o império.

Além disso, a ênfase na economia e no progresso material, de maneira desordenada, sobretudo a partir do começo do século XX impeliu o país a relegar e a enxergar o passado como algo velho e sem uso prático, abdicando de sua memória. É nesse contexto que o Brasil se torna o eterno "país do futuro", aquele de Stefan Zweig. Neste futuro, há uma cultura que tem importância, mas essa não é a do acesso para todos. Ela está nos grandes museus da Europa e Estados Unidos, nos mesmos lugares onde D. Pedro II ia para buscar inspirar. "No Brasil, temos a ideia de que a cultura é a 'salvação' para todas as nossas misérias, mas ao mesmo tempo só é digna de acessá-la quem é 'de bem', ou tem algum dinheiro", desabafou nas redes sociais a historiadora Deborah Neves, especialista em patrimônio histórico.

Nesse Brasil, atuar na cultura sequer é considerado trabalho. A rejeição da história como coisa de "esquerdista" está nas redes, mas também no projeto da Base Nacional Comum Curricular do Ensino Médio, que tenta abolir a disciplina. A história se tornou um supérfluo e também uma maneira de distinção. Não gera riqueza, só prazer. E prazer é só para quem pode manter a vida nababesca de um imperador-menino visitando grandes museus ao redor do mundo.

Fábio Teixeira de Sá/ Regiane Oliveira

Transição de Lula para Haddad avacalha o TSE

Lula transformou a transição de sua candidatura para a de Fernando Haddad num desafio à autoridade do Tribunal Superior Eleitoral. Na noite desta segunda-feira, 72 horas depois de o TSE ter barrado o candidato-presidiário, o PT continuava exibindo Lula como postulante ao Planalto em inserção comercial na TV. A mesma peça, disponível acima, foi veiculada nas redes sociais.

Num quadro de normalidade, um presidenciável ficha-suja é enquadrado na Lei da Ficha Limpa e, por ordem do TSE, deixa o horário eleitoral que avacalha. Quando isso não acontece, a exibição da candidatura fantasma na vitrine eletrônica avacalha a Justiça Eleitoral. No caso de Lula o processo de avacalhação é conduzido com método de dentro da cadeia.

Em decisões tomadas no domingo e nesta segunda, os ministros Luís Felipe Salomão e Carlos Horbach, do TSE, proibiram o PT de exibir novamente os comerciais de campanha veiculados no rádio e na TV no horário eleitoral de sábado —sob pena de pagar multa de R$ 500 mil a cada reprise.


Os ministros concluíram que o PT afrontou a decisão judicial e confundiu o eleitor ao vender a ideia de que Lula ainda é candidato. Em dois textos —a defesa apresentada ao TSE e uma nota pública—, a coligação presidencial encabeçada pelo PT simulou respeito e obediência. Jogo de cena. A reiteração da candidatura de Lula nas inserções noturnas desta segunda-feira não é coisa de quem deseja render homenagens à Justiça.

O site da coligação petista na internet escancara o teatro, deixando claro que a decisão de achincalhar a Justiça Eleitoral veio antes da sessão em que o registro da candidatura de Lula foi negado pelo placar de 6 votos a 1. “Assista aos programas de Lula que o TSE não quer deixar passar na TV”, convida um título pendurado no site na última sexta-feira, antes que o veredicto do TSE fosse conhecido. (veja reprodução abaixo)

Sob a manchete, lê-se o seguinte: “Como todo mundo bem sabe, o TSE julga nesta sexta-feira (31) a candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva. O TSE acelerou o processo de Lula para que você não pudesse ver o presidente que mais fez por esse país de novo em sua televisão, para que você não se lembrasse de todos os projetos implementados por nosso Luiz Inácio.”

Na sequência, o site oferece aos visitantes o acesso a três vídeos com um par de programas e um comercial “que o TSE não quer que você veja”. Depois que o veto a Lula foi consumado, a coligação petista não moveu um dedo para retirar os vídeos do ar.

Como que antevendo a trapaça, a procuradora-geral da República Raquel Dodge fizera uma sugestão ao ministro Luis Roberto Barroso, relator do caso. no TSE. Ela mencionara a necessidade de esclarecer que a proibição de propaganda sobre a candidatura de Lula valia também para a internet.

Barroso respondeu que, embora tivesse mencionado apenas o rádio e a TV em seu voto, estava entendido que o veto à participação de Lula em atos de campanha se estendia à internet. A cena foi testemunhada pelos advogados de Lula. Mas o petismo deu de ombros.

Quando a coligação encabeçada pelo PT diz estar cumprindo a decisão judicial, está, na verdade, propondo um troca-troca: Lula finge que respeita a Justiça e o TSE finge que acredita. Enquanto isso, o petismo fará barulho no Conselho de Direitos Humanos da ONU. E os advogados de Lula tentarão cavar no Supremo Tribunal Federal uma liminar suspendendo o veto à sua candidatura.

Se a sorte providenciar uma liminar da Suprema Corte, dá-se uma banana ao TSE. Se o Supremo não aderir à manobra, formaliza-se a substituição de Lula por Haddad em 11 de setembro (que data!), quando expira o prazo para a troca. É como se Lula e seus devotos desejassem vetar o veto do TSE, observando-o apenas em último caso. O fantasma sabe para quem aparece. Inicialmente, o voto de Luís Roberto Barroso tirava o PT do ar até a substituição do candidato. Mas os ministros decidiram, a portas fechadas, suavizar o veredicto, mantendo o PT no ar. Deu no que está dando.

Protagonistas do crime

O fracasso era imputado sempre aos outros; os cidadãos que falavam em crise na verdade estavam tranquilos, satisfeitos com suas funções, vivendo dentro dos limites de seu cotidiano, encurralados; eles mesmos protagonizavam aquele que condenavam
V. S.Naipaul, "Gerruilheiros"

Estreitos horizontes

Uma das coisas de que não gosto nessas minhas viagens semanais é me sentar na poltrona do meio. São trechos longos, como Macapá ou Boa Vista-Rio. Preciso trabalhar, mas o espaço fica muito contraído, e detesto incomodar o sonolento vizinho do corredor quando preciso ir ao banheiro.

Jamais pensei que faria um texto cujo tema é o assento 23B. Mas essa sensação de estar meio espremido, sem horizontes, lembrou-me de minhas inquietações espaciais na Rússia.

Fotografei muitos prédios em todos os estilos, mas queria ressaltar a arquitetura stalinista, sobretudo um grupo de arquitetos surgidos na época do Plano Diretor, quando tudo deveria se submeter aos desígnios do Estado.

Os intelectuais eram chamados de engenheiros das almas, e esse grupo de arquitetos projetou inúmeros prédios onde tudo era coletivo. Todos os que conhecem a história recente da Rússia sabem que a vida se tornou muito difícil nessa atmosfera desenhada e que as pessoas costumavam até comer na cama, desesperadas por uma nesga de privacidade.

Vejo agora que uma escola de Tocantins, da cidade de Formoso do Araguaia, ganhou um prêmio internacional de arquitetura, o melhor prédio escolar do ano. As fotos das estruturas de madeira são bonitas. A história, mais reveladora ainda. O projeto da escola, na Fazenda Canuanã, foi realizado pelo designer Marcelo Rosenbaum e o escritório de arquitetura Aleph Zero.

Os autores contaram com a ajuda dos alunos que moravam no prédio e indicaram as linhas por onde deveria ser melhorado. Eles diziam que moravam na escola. Agora, não dizem mais. Um traço da mudança foi abrir mais espaços para a privacidade individual.

Portanto, o êxito dos arquitetos brasileiros avançou exatamente no sentido oposto ao dos stalinistas. Certamente, foram ajudados pela opinião dos estudantes.

Mas a simples inquietação com o espaço não me levaria a escrever sobre o 23B. O assento parece o lugar adequado para pensar no Brasil: estreito, sem grandes horizontes.


Já vivemos os grandes horizontes do país do futuro. Hoje está tudo tão apertado. Um copo d’água, um pacote de biscoitos salgados, penso na eleição presidencial: vejo apenas o estreito caminho que o Congresso abrirá ao vencedor.

Projetos, projetos, mas não vejo de onde virá o dinheiro. Um dos temas mais populares é a promessa de tirar o nome dos devedores do SPC. Não entro no mérito, porque não sei quanto custará. Sei apenas que é mais uma sedução pelo consumo, não muito diferente da visão que nos arruinou.

Mesmo no campo do delírio, Cabo Daciolo me desapontou. Foi para a montanha falar com Deus. Não esperava que, no seu encontro com Deus, produzisse lindos poemas místicos como as freiras Mariana Alcoforado e Sor Juana Inés de la Cruz. Mas ele recebeu uma vulgar teoria da conspiração, que está em qualquer lugar da internet.

Deus mesmo, quando vier, que venha armado. Essa frase de Guimarães Rosa deve ter inspirado a política de segurança de Bolsonaro.

Deixo para trás Roraima com seu impasse. Não há como fechar a fronteira nem recursos para aguentar as consequências de sua abertura. Tudo muito B23.

O que me salva é um livro de Antônio Damásio, “A estranha ordem das coisas”. Fala de miniorganismos, de como as bactérias sentem o ambiente e reagem de forma organizada para sobreviver a ele. Elas fazem alianças até com inimigas, para sobreviver.

Essa sabedoria bacteriana, essa capacidade de realizar a homeostase, equilibrar diferentes variáveis, seria fundamental num momento em que estamos com uma perspectiva de dias piores ainda.

Crescimento econômico e mais consumo não bastam. Será preciso reativar valores, pois foi sua falência que nos trouxe à ruína. Enquanto não soar a consciência do perigo à frente, mesmo consumindo mais, nossas esperanças no país continuarão baixas.

No 23B, estreitos cenários do segundo turno, as promessas de reforma política, mas ninguém combinou com os russos. Ainda nem sabemos quem serão os russos, a suspeita é de que sejam os mesmos de sempre.

Certamente, acharemos a saída. É pouco mais difícil achá-la aqui no 23B. Estamos chegando, vejo o Rio de Janeiro, minha alma canta. Canta de teimosa no estreito assento do meio. Crivella baixou a taxa municipal de exumação. Depois da morte, não é que a vida melhorou?