segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

Pensamento do Dia

 

Quino

É pau, é pedra, é o fim do caminho

Quando nasci, em fevereiro, choveu muito. As pessoas tinham de se mover em canoas, contavam meus pais. Eu me acostumei com a ideia dos temporais de verão; às vezes, brincava na enxurrada sob protestos maternos.

As chuvas costumam ir além de fevereiro, como mostra a canção de Tom Jobim “Águas de março”, uma das mais belas de nossa música popular.

Como adulto, as chuvas tornaram-se parte do meu trabalho de jornalista ou mesmo de deputado. Sempre estive próximo. Da catástrofe na Serra Fluminense às cheias de Trizidela do Vale, no interior do Maranhão.

Um pouco descrente de governos, pensei em fortalecer as próprias comunidades. A ideia era preparar um manual para as grandes chuvas, como os caribenhos e americanos fazem com os ciclones. Coisas simples, como ter a lista de todos com dificuldade de locomoção, para ser retirados com prioridade.


Nas enchentes em Santo Antônio de Pádua, aprendi um pouco mais: o hospital foi inundado. Era preciso buscar em casa os dependentes de hemodiálise, transportá-los de helicóptero. Mais um item no caderno, que já tinha indicação dos abrigos, lugares onde se guardam barcos e botes, rotas de fuga.

Cheguei a formular um projeto que ensinasse defesa civil nas escolas, pois contava com as crianças para alertar os pais. Vejo hoje que Marina Silva tem um plano mais ambicioso: mobilizar todo o Ministério da Educação para tratar das mudanças climáticas.

Não fazemos tantas simulações, como os japoneses. Mas conseguimos realizá-las no caso de Angra dos Reis, por causa das usinas nucleares. De qualquer forma, o quadro hoje é mais claro: 4,5 milhões de pessoas em áreas de alto risco, distribuídas por mais de 14 mil pontos críticos.

Isso demanda um projeto especial porque dificilmente terão casa segura antes das próximas chuvas. Um projeto que aumente a resiliência das cidades brasileiras, adaptando o país às mudanças climáticas, tem chance de financiamento por meio do Acordo de Paris.

Há muito trabalho pela frente. É uma ilusão supor que o obstáculo é apenas o negacionismo de Bolsonaro. Muitos políticos aceitam as mudanças climáticas, mas, na prática cotidiana, as negam.

O Litoral Norte de São Paulo sofreu o impacto de uma chuva recorde. Mas a prefeitura de São Sebastião já fora intimada 37 vezes por não realizar obras nas encostas. Um projeto da ONG Escola Verde tinha apoio do BID para construir casas populares na Barra do Sahy, centro do grande drama. Conseguiram até terreno, mas o projeto dormiu sete anos na gaveta do governo estadual.

Existe um negacionismo simpático, do “tudo bem, deixa conosco”, mas que vai empurrando soluções com a barriga até que a tragédia aconteça.

Na verdade, se olharmos de uma perspectiva histórica, a tragédia no litoral brasileiro acontece em câmera lenta. No norte de São Paulo, os caiçaras foram expulsos de suas aldeias de pescadores pela especulação imobiliária. Os ricos se instalaram nas praias, e os pobres foram morar na encosta da Serra do Mar, onde vivem de prestar serviços e da construção. A especulação imobiliária controla prefeitos e vereadores.

Dois repórteres do Estado de S. Paulo, Renata Cafardo e Tiago Queiroz, foram agredidos num condomínio de luxo, em Maresias, apenas porque estavam cobrindo o impacto do temporal:

— Comunistas — gritavam os moradores.

Uma das constatações mais duras no avanço das mudanças climáticas é que os pobres são realmente os mais atingidos, não em todos os casos, mas na maioria das vezes. Isso cria em muita gente a sensação de que o problema existe, mas está muito longe, lá onde não sujamos nossos sapatos de lama.

O momento é de sentar e discutir uma saída para este mundo em transformação, que nos abala tanto. O negacionismo é suicida, não é possível que um país sucumba à própria ignorância.

Fósseis vivos da escravidão

O sociólogo brasileiro é antes de tudo um paleontólogo da escravidão. Ao redor, a sociedade é um sítio de fósseis daquele tempo, às vezes parecendo ainda vivos.

As favelas: O próprio nome favela foi criado pelos ex-escravos quando migraram do cativeiro para a liberdade: das fazendas para a periferia de cada cidade. Até hoje são fósseis do que eram as senzalas, com condições sanitárias ainda piores, devido ao descuido com o tratamento dos dejetos humanos e lixo expelidos nas monstrópoles superpovoadas do século XXI.



Os condomínios: Graças ao avanço técnico, 130 anos depois da Abolição, os descendentes-sociais-dos-escravocratas vivem em melhores condições que seus antepassados no tempo da escravidão, e ainda mais desiguais em relação aos atuais descendentes-sociais-dos-escravos. O condomínio, horizontal ou vertical, é um fóssil da casa grande.

Analfabetismo: A permanência de 10 milhões de adultos iletrados, em pleno século XXI, é um fóssil social dos anos de escravidão. Retrato do tratamento educacional dado às pessoas escravizadas e aos seus descendentes sociais, aos quais a escola foi negada, que atravessam a vida adulta em situação de analfabetismo. Fóssil tão vivo que é uma forma de escravidão: está solto, mas não está livre, uma vez que não conhece o mapa que lhe permite caminhar no moderno mundo letrado.

Desigualdade escolar: Durante os 100 anos seguintes à Abolição, o Brasil negou escola aos filhos dos pobres, da mesma forma que negava aos filhos dos escravos. O direito à escolaridade só virou lei no século XXI: Lei 11.700/2008 para o ensino fundamental e Lei 12.061/2009 para o ensino médio, que até hoje não são plenamente cumpridas. Mantém-se o fóssil vivo da escravidão sob a forma da desigualdade entre a qualidade e os resultados da educação conforme a renda da criança pobre em “escola senzala” e da rica em “escola casa grande”.

As empresas de alocação de trabalhadores. O uso sistemático de trabalhadores terceirizados, contratados a um baixo custo por empresas que os alugam a outras empresas ou ao setor público, é cópia de prática escravocrata, quando os proprietários alugavam cativos a outras pessoas. Hoje, o trabalhador livre pode recusar o emprego, mas a prática é fóssil do período anterior à Lei Áurea, porque, na prática, o pobre brasileiro não tem como recusar o emprego, continua acorrentado.

Concentração de renda: O Brasil atravessou toda sua história posterior à Abolição e à República como um dos campeões mundiais em concentração de renda, de patrimônio, de acesso aos serviços sociais, como um fóssil da escravidão. O grau de concentração deixa um abismo e não uma simples desigualdade, uma apartação. Um fóssil do tempo que o país era dividido entre pretos e brancos, agora entre pobres e ricos.

Racismo: O racismo contra os negros é um fóssil vivo da escravidão.

Menino de rua: Antes da Lei do Ventre Livre, o filho de escrava não era abandonado, porque era uma mercadoria, tinha valor de mercado e podia ser vendido. A Lei do Ventre Livre acabou com este valor e começou a tradição brasileira do abandono infantil. A modernização industrial, a urbanização, novos valores sociais e novas estruturas familiares provocaram o fenômeno da infância abandonada, porque no lugar de ter suas crianças na escola, os descendentes-sociais-dos-escravos passaram a depender da renda do trabalho ou da mendicância de seus filhos. O resultado foi que o moderno português falado no Brasil criou palavras como “menino de rua”, “menina da noite”, “prostituta infantil”, “pivete”, como conceitos que não existiam antes de 1888, mas são, mesmo assim, fósseis vivos da escravidão.

Pobres: Em muitos países e sociedades, a pobreza é um fenômeno decorrente da densidade demográfica, da escassez de recursos naturais, do colonialismo recente, até mesmo de características religiosas. No Brasil, a permanência da pobreza é um fóssil da escravidão.

Deus não dá carta de recomendação


Deus não precisa ser defendido por ninguém. E não quer que seu nome seja usado para aterrorizar as pessoas. Peço a todos que parem de instrumentalizar as religiões para incitar ao ódio, à violência, ao extremismo e ao fanatismo cego.
Papa Francisco

Deixem o Bolsonaro em paz. Não lhe peçam o que ele não pode dar

Bolsonaro vai às compras em supermercado de Orlando, cidade onde se refugiou desde que abandonou o Brasil em 30 de dezembro para não passar a faixa a Lula; e, segundo se desconfia, para que não o ligassem ao golpe fracassado de 8 de janeiro.

Bolsonaro está praticamente recluso na casa que lhe foi emprestada por um lutador brasileiro de MMA. Ali, não recebe ninguém. Vez por outra é visto na porta da casa posando para fotos com brasileiros que moram no mesmo condomínio, e o admiram.


Bolsonaro saiu outro dia na companhia de um dos filhos para visitar o departamento de polícia de Oklahoma. Quando presidente, em uma de suas viagens aos Estados Unidos, visitou a sede da CIA, agência de espionagem, não se sabe para quê.

Bolsonaro foi fotografado ao lado do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP), do ex-ministro do Turismo, o sanfoneiro desafinado Gilson Machado, e de Tércio Arnaud Thomaz, ex-assessor e um dos integrantes do chamado “gabinete do ódio”.

Bolsonaro, ontem, apareceu em uma live com o cantor sertanejo Rick, da dupla com Renner, e o ex-presidente da Caixa, Pedro Guimarães, investigado por assédio sexual e moral de funcionários do banco público. Bolsonaro permaneceu de cara amarrada.

No Brasil, políticos de peso, desnorteados com a ausência dele, reclamam da agenda “irrelevante” de Bolsonaro nos Estados Unidos. Dizem que ele se deixa influenciar em excesso pelo grupo que o cerca por lá, formado por auxiliares sem experiência política.

Tolice! Desde quando Bolsonaro destacou-se por cumprir uma agenda de compromissos relevantes em viagens ao exterior? Viajou pouco. E em eventos internacionais obrigatórios, quase sempre se manteve isolado ou acabou isolado pelos demais chefes de Estado.

Não há notícias de visitas a museus, teatros e shows musicais. Não pôs os pés em universidades de prestígio por falta de convite. Comeu um pedaço de pizza em uma rua de Nova Iorque. Discursou para seus seguidores, em Londres, no funeral da rainha Elisabeth.

Não seria agora, derrotado para sua amargura, sem direito a foro especial, investigado em dezenas de processos, e com medo de ser preso caso volte ao Brasil, que Bolsonaro se comportará de maneira diferente. Ele é o que sempre foi. Deixem-no em paz.