Bolsonaro continua afrontando a Justiça e nada acontece. Na última quinta, em sua live, associou a vacina contra a Covid à AIDS. Facebook e Instagram levaram 4 dias para captar a atrocidade do Capitão. Tiraram do ar no domingo.
Mais um crime. Mais uma delinquência, no dia seguinte à leitura do robusto relatório da CPI da Covid, em que há nove tipificações de diferentes delitos cometidos por ele. Bolsonaro não se intimida. Testa Justiça, juízes, oposição, a sociedade que não se deixa intoxicar por ele.É preciso cassar Bolsonaro das redes sociais urgentemente. Associar a vacina que salva vidas à AIDS é duplamente cruel, especialmente com aqueles que lutam contra uma doença carregada de intolerância e preconceito.Claro, haverá pedido a Alexandre de Moraes para que inclua mais esse delito no inquérito que apura fake news no STF. Já há Também noticia-crime contra o presidente, protocolada nessa segunda-feira pela bancada do PSOL na Câmara e o deputado Túlio Gadêlha (PDT). São ações, denúncias, inquéritos, de varias cepas e linhagens, e a Justiça lenta, tardia e falha – nenhuma punição até hoje foi imposta ao Capitão.Às acusações e crimes tipificados pela CPI da Covid vão se somar a outros processos que correm contra Bolsonaro no Brasil e no âmbito internacional. Desde 2019, há seis denúncias contra ele à espera de decisão do Tribunal de Haia. A primeira foi do coletivo de Advocacia em Direitos Humanos, acusação de incitação ao genocídio dos povos indígenas.A Articulação dos Povos Indígenas protocolou denúncia parecida. A Associação Brasileira de Juristas pela Democracia denunciou Bolsonaro ao Tribunal Internacional por crime contra a humanidade pela má condução do controle da pandemia no Brasil. Denúncia idêntica à apresentada pelo PDT.Há queixa até de quem ajudou a eleger a criatura – Movimento Brasil Livre foi a Haia para denunciá-lo por crime contra a humanidade, caso da pandemia. Com palavras duras. Renato Battista, coordenador do MBL à época, chamou Bolsonaro de “canalha”. Quem diria? Tem vergonha alheia em Haia também. Da Áustria, foi a ONG All Rise denunciar Bolsonaro por destruição da Amazônia.Assim como no Brasil – impeachment, só se for do sexo feminino e de esquerda – não há punição a vista em Haia contra Bolsonaro. As representações estão paradas. Até hoje, a promotora de justiça penal internacional Fatou Bensouda, a quem cabe a análise das representações, não se manifestou.O processo pode durar anos. Mas como sua conduta tem sido repetitiva, é provável que responderá pelos crimes imputados, desde que a procuradora converta em denúncia a representação. Há esperança no fim do túnel.Por aqui, vamos colecionando aberrações, Bolsonaro é ser limitado. Mau. Vil. Obcecado pela reeleição, é capaz de qualquer perversidade para garantir os 20 e pouco por cento que ainda mantém junto ao eleitorado fiel. Não dá pra esquecer que faltam 14 meses para o final desse filme de terror.Mirian Guaraciaba
O furto famélico cometido por Rosângela – macarrão, suco e leite – revela que a fome dos milhões de miseráveis é uma afronta à dignidade humana e uma ameaça à estabilidade social.
Enquanto isso, 400 reais de esmola populista “implode” o orçamento bilionário, a bolsa cai, o dólar sobe, mercado dá chiliques e, no mundo real, a fome aumenta.
Devo aos meus pais o saudável hábito da leitura. Minha mãe, exímia contadora de histórias infantis, adorava literatura o que nos proporcionou certa intimidade com Jules Verne, o Tesouro da Juventude, Alexandre Dumas, Monteiro Lobato, o inesquecível Tico-Tico, a paixão por Castro Alves, e se divertia com a crítica social de Machado, até porque fortalecia suas inclinações rebeldes e libertárias.
Aos treze anos, um presente – Os Miseráveis – de Victor-Marie Hugo (1802-1885) com a recomendação: – leia, releia, além dos dotes literários, o autor foi um ativista dos direitos humanos na França. Nele, você encontrará os mais belos gestos de grandeza e vileza humanas.
De fato, o personagem central, Jean Valjean, furtou um pão para alimentar a irmã e sete sobrinhos. Preso, cumpriu pena de 19 anos de trabalhos forçados. Livre, ninguém deu emprego e abrigo ao ex-condenado, à exceção do benevolente Bispo Bienvenu.
Ao amanhecer, o Bispo deu por falta da prataria e do acolhido; a polícia prendeu e o levou à presença do Prelado para comprovar a alegação do refugiado: recebera a prataria como presente. O Bispo disse: “Meu filho, você esqueceu estes dois castiçais”. Ganhou a liberdade banhada de generosidade e compaixão, revestidas da grande virtude da misericórdia: não apaga a ofensa, mas perdoa e regenera. “Use a prata para fazer o Bem”, aconselhou o sacerdote.
O personagem enriqueceu, tornou-se poderoso e misericordioso a vida inteira. Mas era um refugiado e, apesar de assumir nova identidade, não se livrou do implacável Javert, inspetor de polícia, que, ao final, entre prender a grandeza do homem que lhe salvara a vida, preferiu sacrificar-se no Sena.
No Brasil, os miseráveis (pessoas abaixo da linha de pobreza) variam de acordo com o critério de medição: 27, 14, 10 milhões, 12% da população, qualquer escala é uma tragédia humana.
Para enfrentar, não bastam políticas públicas. Trata-se de um pecado social que todos, separados por uma desigualdade brutal, carregam nas costas. A responsabilidade é imperativo ético de todos. A indiferença aos “invisíveis”, um colapso dos sentimentos humanos
Sem julgamento de mérito, o episódio em que a famélica Rosângela Melo furtou macarrão, suco e leite para os filhos, revela que estômago vazio ultrapassa o mínimo da dignidade humana e põe em risco a estabilidade social.
Uma sociedade em que laços de solidariedade estão esgarçados; afeto e compaixão cedem lugar ao ódio; desfalece a força redentora da fraternidade.
Manchetes: a bolsa cai, o dólar sobe. Faltou: a fome aumenta.
Há algumas semanas, comunidades que ficam à beira do maior rio do mundo estão sem água para beber.
O avanço do mar pela foz do rio Amazonas, por onde escoa um quinto da água doce do planeta, salinizou as águas que banham as comunidades do arquipélago do Bailique, no Amapá.
O fenômeno sempre ocorreu nesta época do ano, mas vem se intensificando nos últimos anos e passou a atingir comunidades que antes não eram impactadas, segundo os moradores.
Como consequência, a prefeitura de Macapá, que responde pelo arquipélago, decretou estado de emergência na última quinta-feira (14/10) e passou a entregar água potável e cestas básicas às comunidades.
Para um pesquisador que estuda o tema, o avanço da salinização pode estar ligado ao aumento global do nível do mar, um resultado das mudanças climáticas.
Ele diz que a região da foz do Amazonas tem passado por grandes transformações nos últimos anos. Um exemplo foi a drástica mudança no curso do caudaloso rio Araguari, um vizinho do Amazonas.
Desde 2013, o rio deixou de desaguar no Atlântico e virou um afluente do Amazonas, alteração que pode ter ampliado a salinização no arquipélago do Bailique e é associada à criação de búfalos e à construção de hidrelétricas.
O arquipélago do Bailique tem cerca de 8 mil habitantes, espalhados por oito ilhas, e fica a cerca de 200 quilômetros da sede de Macapá. Só é possível acessar a região por barco.
As principais atividades econômicas do arquipélago são a pesca, a agricultura familiar e o cultivo de açaí.
Geová Alves, presidente da Associação das Comunidades Tradicionais do Bailique e vice-presidente de uma cooperativa local de produtores de açaí, diz à BBC News Brasil que sempre houve salinização na região entre os meses de setembro e novembro. Nessa época, em que chove menos, as águas do Amazonas costumam baixar, facilitando o avanço da maré.
Com o retorno das chuvas, a partir de novembro, o fenômeno perde força, e a água volta a ficar doce.
Alves diz que, no passado, essa salinização sazonal costumava afetar só cerca de 20 das 51 comunidades do Bailique, aquelas que ficavam ao norte do arquipélago. De alguns anos para cá, porém, todas as comunidades passaram a ser impactadas, segundo ele.
A principal consequência, diz o morador, é a falta de água potável para beber e cozinhar, já que o rio é a principal fonte hídrica das famílias. “São comunidades carentes, que não conseguem comprar água mineral”, afirma. Segundo Alves, um galão de 20 litros de água hoje custa até R$ 25 no arquipélago. As comunidades não têm acesso a água encanada.
Outro efeito da salinização tem sido sentido por pescadores. “Percebemos uma presença grande de peixes de água salgada, e o afastamento de peixes de água doce e camarão”, afirma Alves.
Essa mudança, porém, não tem causado prejuízos aos pescadores, já que peixes de água salgada são valorizados e têm sido capturados em abundância. “Acabou sendo uma vantagem (para os pescadores)”, afirma.
Já no cultivo do açaí ainda não foram notadas mudanças, diz ele, pois os frutos são colhidos no período chuvoso, quando a água já voltou a ser doce.
“Mas ainda não sabemos se o solo vai ter algum prejuízo daqui a alguns anos que possa interferir na qualidade ou quantidade da produção”, afirma.
Ele diz que muitos moradores do arquipélago atribuem a crescente salinização no Amazonas ao assoreamento no vizinho rio Araguari, tema de grande controvérsia na região e uma das maiores transformações na paisagem do Brasil nas últimas décadas.
Com cerca de 500 quilômetros de extensão, o Araguari é o maior rio a correr exclusivamente no Amapá. Ele nasce no Parque Nacional do Tumucumaque e, até 2013, desaguava no Atlântico ao norte do arquipélago do Bailique, a poucos quilômetros da foz do Amazonas, ao sul.
Desde 2011, porém, formou-se – espontaneamente, mas provavelmente em consequência da ação humana – um canal que passou a conectar os dois rios, fazendo com que o Araguari direcionasse parte do seu fluxo para o Amazonas. Esse canal, chamado de Urucurituba, foi engrossando até que, em 2014, passou a absorver praticamente todo o fluxo do Araguari.
Com isso, o Araguari passou a desembocar inteiramente no Amazonas, e não mais no Atlântico. A antiga foz do Araguari secou, tendo sido tomada pela vegetação desde então.
Por causa dessa mudança, o fenômeno da pororoca, pelo qual o Araguari era famoso internacionalmente, deixou de ocorrer. Isso porque a pororoca se forma a partir do choque entre o fluxo do rio e a maré, gerando uma onda que avança continente adentro.
Como não há mais contato entre o rio e o mar, as ondas da pororoca deixaram de ocorrer.
Outra consequência da mudança no curso do Araguari foi a acelerada erosão nas áreas impactadas pelo fluxo do canal Urucurituba. O fenômeno é conhecido localmente como “terras caídas” e já provocou a destruição de centenas de casas no Bailique.
Geová Alves diz que a salinização no arquipélago se tornou mais intensa a partir da mudança no curso do Araguari. Segundo ele, quando desembocava no mar, o Araguari “ajudava o Amazonas a empurrar a água salgada para longe” da costa.
“Com o assoreamento do Araguari, as correntes que se combinavam perderam um pouco da força, e o mar invadiu onde não havia resistência”, ele afirma.
Para Alan Cavalcanti da Cunha, professor de Engenharia Civil da Universidade Federal do Amapá (Unifap), a tese faz sentido.
Pós-doutor em fluxos hidrológicos entre ecossistemas terrestres e aquáticos pela Universidade de Miami (EUA), Cunha estuda o comportamento de rios da região desde 2004.
Em artigo em 2018 para o periódico científico Science of the Total Environment, Cunha e outros pesquisadores analisaram a mudança no curso do Araguari.
Para os autores, o surgimento do canal de Urucurituba – que desviou o fluxo do Araguari para o rio Amazonas – pode estar relacionado a três fatores:
1 – Dinâmicas naturais no estuário do Amazonas, que incluem o deslocamento de grande quantidade de sedimentos e o forte fluxo das águas tanto em direção ao oceano quanto no sentido contrário, alterando o curso do rios;
2 – A implantação de usinas hidrelétricas no alto curso do Araguari.
A primeira usina passou a operar em 1976, e as outras duas, em 2014 e 2017. Segundo os autores, as usinas alteraram a dinâmica do transporte de sedimentos pelo rio, o que pode ter favorecido a abertura do canal de Urucurituba;
3 – A criação de búfalos nas margens do rio.
Introduzidos na região no século 19, esses pesados animais criam valas ao pisotear frequentemente os mesmos locais. Uma dessas valas pode ter dado origem ao canal Urucurituba – que, com a força das águas, foi se expandindo até alcançar o Amazonas.
Estima-se que haja 202 mil búfalos na bacia do Araguari, número três vezes maior que a população humana local.
Em entrevista à BBC News Brasil, Cunha diz que, quando o Araguari deixou de desaguar no mar, o Amazonas perdeu um aliado que o ajudava a manter a água salgada longe da costa.
Ele aponta ainda outras duas causas para os relatos de crescente salinização no Bailique, ambas associadas às mudanças climáticas.
A primeira é o aumento global no nível do mar, provocado pelo degelo das calotas polares. Segundo a Nasa (agência espacial americana), o nível médio do mar subiu cerca de 20 centímetros entre 1901 e 2018.
Cunha explica que, em todos os estuários (pontos onde o rio se encontra com o mar), há um jogo de forças entre o fluxo dos rios e as marés. Quando a maré sobe e o fluxo do rio diminui, a água salgada consegue avançar mais facilmente rio adentro, movimento que se inverte quando a maré baixa e o fluxo do rio aumenta.
Por isso, diz Cunha, o aumento do nível dos oceanos tende a alterar esse equilíbrio em favor do mar, fazendo com que a água salgada avance mais facilmente pelos rios.
É o que já pode estar ocorrendo na foz do Amazonas, segundo o pesquisador.
Outra possível explicação para o aumento da salinização no arquipélago do Bailique, segundo ele, é a elevação das temperaturas na região, outro efeito das mudanças climáticas.
O calor mais forte amplia a evaporação, o que por sua vez acelera a circulação de ar e permite que ventos transportem mais sal que estava nos oceanos para o continente.
Cunha afirma que as mudanças em curso na foz do Amazonas precisam ser mais estudadas, especialmente os impactos do avanço no nível do mar. Segundo ele, a região é extremamente sensível a alterações – e como seus rios e lagos estão conectados, uma mudança num ponto qualquer pode provocar consequências a vários quilômetros dali.
Até o fim deste século, prevê-se que o nível médio dos oceanos possa subir entre 0,6 m e 1,1 m em relação aos padrões pré-industriais a depender do ritmo das emissões de gases causadores do efeito estufa.
As transformações no arquipélago do Bailique jogam luz sobre uma das possíveis consequências das mudanças climáticas para populações costeiras. Sabe-se que a elevação do nível do mar tende a inundar muitas regiões litorâneas, forçando suas populações a migrar.
Para muitas comunidades em estuários, porém, escapar das inundações talvez não seja suficiente, pois pode faltar água doce para abastecê-las.
Os sinais estão aí, por todo o lado,
insinuam que o mundo apodrece,
que está todo despedaçado,
que, sem redenção, sobreaquece.
Os rios e os mares infectados,
os vírus desvairados, assassinos,
as terras desertadas, devastadas,
dilúvios afogando peregrinos,
o mundo em completo desconcerto
a vida cada vez mais degradada,
a luta pela vida num aperto,
a esperança de viver desbaratada,
os hospitais cheios e exauridos,
os cemitérios todos esgotados,
os gritos das crianças assustadas,
apagando-se em sítios já esquecidos!
A lama, o sangue, o pus, a merda toda
medalhas que sobraram da vida que houve,
no meio de tudo isto, a estuporada foda,
resto de vida, que durar não soube!
Da música sublime que se criara,
sobra, para acompanhar a derrocada,
marcha fúnebre para a ardida seara,
montanha de ruínas assombrada.
Radiações que matam devagar
e o frio que aos poucos nos devora,
tudo eficaz arte de matar,
dando-nos um final que não demora.
A história do homem nesta Terra,
feita de conflitos e descobertas,
deu pra inventar ciência e guerra
e, ao terror, ofertar portas abertas.
O nosso mundo vai chegar ao fim
e, desta nossa construída glória,
finar-se-á, a um toque de clarim,
história de que não ficará memória.Eugénio Lisboa
Furar o teto que já estava repleto de goteiras para gastar mais no ano eleitoral, usando como desculpa a miséria dos brasileiros – mais de 27 milhões abaixo da linha da pobreza, segundo estudo da Fundação Getúlio Vargas , não é o que mais espanta. O pior é a desfaçatez ao fazê-lo. Parece até que os pobres brotaram de repente, exatamente a um ano da eleição, e que vão sumir em dezembro de 2022, quando a cota extra do Auxílio Brasil expira.
O presidente Jair Bolsonaro, o mesmo que há dois anos jurava aos correspondentes estrangeiros que “falar que se passa fome no Brasil é uma grande mentira”, garante que não fará “qualquer aventura” na economia minutos depois de desarranjar ainda mais as contas públicas. Paulo Guedes, ministro da Economia, é ainda mais patético. Diz que detesta furar o teto, mas precisa ajudar os mais pobres, uma categoria que ele sempre desprezou.
Guedes, detentor de US$ 9,5 milhões em paraíso fiscal, é aquele que dizia que o dólar mais alto era bom, porque na baixa “todo mundo” estava indo para a Disney, “inclusive empregada doméstica”. Mas, justiça seja feita, o ministro tem ideias criativas para aplacar a fome. Como a de aproveitar as sobras de comida dos restaurantes, “que estraga diariamente na mesa das classes mais altas brasileiras” para “alimentar pessoas fragilizadas, mendigos e desamparados”.
Agora, esses desvalidos se tornaram úteis.
Na Câmara dos Deputados, o Centrão tratou logo de, em nome dos miseráveis, aprovar a PEC das irresponsabilidades fiscais na comissão especial, incluindo o abusivo parcelamento de precatórios e as mudanças no cálculo do teto de gastos, de forma retroativa. Com isso, gera-se um saldo de R$ 89 bilhões para 2022, cerca de R$ 30 bilhões para os pobres e o restante como “folga orçamentária”, turbinando a campanha bolsonarista e as emendas parlamentares, boa parte delas secretas, destinadas a aliados. Uma festa.
Improvisada e com consequências gravíssimas – especialmente para os mais pobres, que sofrem mais os efeitos paralelos de inflação e baixo crescimento econômico -, a PEC deve ser confirmada no plenário das duas Casas legislativas. Afinal, do jeito falacioso em que a matéria foi apresentada, quem se negar a aprová-la será acusado de votar contra os pobres.
Por certo, nenhuma proposta de corte de gastos apareceu no debate. As mais óbvias, como tesourar as emendas do relator, cuja previsão é de R$ 20 bilhões, e os fundos partidário e eleitoral, que no ano que vem consumirão no mínimo R$ 3 bilhões, nem chegaram a ser cogitadas.
Mas há muitas outras gorduras, a começar pelos incontáveis subsídios concedidos pela União, que somaram R$ 346,6 bilhões em 2020, quando Guedes alardeou que os cortaria pela metade em 5 anos. Daria para montar um programa robusto, mas nada foi feito. Só a renúncia fiscal para zerar o imposto sobre armas custa ao país R$ 230 milhões ao ano. Sem contar outros absurdos para agradar a alguns: nada menos do que R$ 9,3 bilhões foram direcionados a adicionais de disponibilidade, ajuda de custo e aumento de soldo de militares.
Em um orçamento de cerca de R$ 1,5 trilhão não seria difícil achar R$ 30 ou R$ 40 bilhões para os pobres. Além das reformas administrativa e tributária, que renderiam alguns bilhões só com o corte de privilégios, poderiam ter sido feitas economias que parecem pequenas, mas que, somadas, seriam de extrema valia. Não só pelo valor de face, mas como indicativo (que nunca houve) do esforço do governo no sentido de se manter na linha.
Mais de R$ 146 milhões foram gastos só para dar o pontapé inicial nas notas de R$ 200 – a mais cara já confeccionada no país e que se conta nos dedos quem já viu uma. Junta-se aqui o desperdício de R$ 340 milhões para a compra e distribuição de cloroquina, azitromicina e tamiflu para montar o famigerado e ineficaz Kit-Covid, e os R$ 23 milhões pagos em publicidade para difundi-lo.
O pouco caso com o dinheiro do pagador de impostos fica escancarado ainda nas motociatas de R$ 3 milhões do presidente em campanha antecipada, nas viagens que ele faz para inaugurar obras já inauguradas, algumas mais caras do que a própria obra. Ou, exemplarmente, no tour de mil e uma noites de seu governo em Dubai – uma comitiva com 69 integrantes ao custo de R$ 3,6 milhões, com direito a foto do filhote zero três como sheik.
É indiscutível que o país necessita de fortalecer sua rede de proteção social, ampliando benefícios diretos como o Bolsa Família, e melhorando o acesso da população à educação e saúde, moradia, água e esgoto tratados, segurança alimentar. Mas fazê-lo dessa forma é não fazer. É usar a fome de milhões como escudo e trampolim eleitoral.Mary Zaidan
A poucos dias da 26ª Conferência do Clima (COP26), a primeira a ser realizada após o início da pandemia e que reunirá líderes globais em Glasgow, na Escócia, o governo brasileiro tenta convencer a imprensa internacional de que o país está comprometido com uma agenda ambiental.
Embora os dados de monitoramento da Floresta Amazônica medidos pelo Instituto Nacional de Pesquisa Espaciais (Inpe) mostrem que os dois primeiros anos do governo de Jair Bolsonaro foram marcados por taxas recordes de desmatamento dos últimos 12 anos, o vice-presidente Hamilton Mourão afirma o contrário.
"Nós tivemos uma redução pequena do desmatamento ao longo dos últimos dois anos. O pior foi em 2019. De lá para cá, tivemos uma redução que, dentro dos meus objetivos poderia ser melhor", declarou Mourão, que preside o Conselho Nacional da Amazônia Legal, numa coletiva de imprensa com correspondentes internacionais nesta segunda-feira.
Em 2019, a Amazônia sofreu 10,1 mil km2 de devastação; em 2020 foram 10,9 mil km2. E a estratégia de combate adotada, com empenho das Forças Armadas, não tem inibido a ilegalidade. A falta de expertise dos militares, os custos elevados das operações de Garantia de Lei e da Ordem (GLO) executadas por esses agentes e o quadro insuficiente de servidores qualificados nos órgãos ambientais são apontados como causas para o insucesso. A conclusão é de uma auditoria feita pelo Tribunal de Contas da União (TCU), como foi debatida recentemente numa sessão da Comissão de Meio Ambiente do Senado.
Ainda assim, Mourão alega que a fama internacional de antiambiental e negacionista que a atual gestão adquiriu "não condiz com a realidade". Ele diz creditar a oposição política ao governo Bolsonaro à "uma visão majoritária de esquerda em muitos países".
Outros motivos seriam uma contestação à "pujança" do agronegócio brasileiro e a pressão dos "bolsões sinceros porém radicais" formados por ambientalistas, movimentos sociais e indígenas, que levariam uma mensagem errada para fora das fronteiras.
Em jurisdição internacional, Bolsonaro foi acusado de crimes ambientais graves nos últimos anos relacionados. Existem pelo menos três denúncias contra o mandante brasileiro no Tribunal Penal Internacional em Haia, Holanda, por sua política de destruição da floresta. Numa delas, a Articulação dos Indígenas do Brasil (Apib) alega que o presidente cometeu crimes contra a humanidade e genocídio ao incentivar invasão de terras indígenas por garimpeiros e propagar covid-19
Na coletiva online, que apresentou alguns problemas técnicos, levando os jornalistas estrangeiros a reclamarem da qualidade do áudio durante as respostas de Mourão, o desrespeito aos direitos indígenas também foi um tema recorrente.
Questionado sobre o aumento das invasões desses territórios por garimpeiros, o vice-presidente disse se tratar de uma "questão antiga" e que os números divulgados pelas lideranças seriam exagerados.
Segundo o monitoramento feito pela Hutukara Associação Yanomami, atualmente pelo menos 20 mil garimpeiros estariam em busca de ouro no território, que sofre uma nova onda de invasões desde 2019. Outros indicativos do aumento da atividade ilegal estariam na abertura de estradas e no desmatamento no local, que os indígenas acompanham por imagens de satélites.
"São números inflados", tentou minimizar Mourão. "Nossa avaliação é menor, de 3 mil a 4 mil garimpeiros", completou sobre a situação na TI Yanomami que, onde, há poucos dias, duas crianças morreram depois de serem dragadas por uma balsa de garimpo ilegal.
Como parte da resolução do conflito, o vice-presidente considera a liberação da exploração de minérios nos territórios indígenas, citando como bom exemplo a ser seguido na região as atividades da Vale, em Carajás, no Pará. A mesma empresa está envolvida em dois grandes desastres ambientais e mortes ocorridos após o colapso de barragens de rejeitos, em Mariana, em 2015, e Brumadinho, em 2019, ambas em Minas Gerais.
Um relatório recente que investigou barragens em operação na Amazônia expôs o perigo que essas estruturas representam para comunidades próximas. O estudo, feito pela ONG Christian Aid, se concentrou em 26 barragens da Mineração Rio Norte (MRN), que detém a maior rede dessas construções na floresta. A conclusão é que comunidades ribeirinhas e quilombolas que vivem no entorno seriam drasticamente afetadas em caso de falhas.
Após o rompimento das barragens da Samarco e Vale, a MRN revisou o nível de risco de suas estruturas e, até o início de 2021, 11 delas foram reclassificadas de baixo para médio e alto riscos – sendo sete de alto risco, aponta o relatório.
"A falta de transparência com que o processo de reclassificação foi realizado aumentou muito a ansiedade e o medo das comunidades de um possível rompimento das barragens, que poderia ser fatal para suas famílias e danificar irreversivelmente o meio ambiente, habitat e meios de subsistência", diz o texto, alertando para os perigos de novos empreendimentos de mineração na Amazônia.
Para a imprensa internacional, Mourão comemorou a queda das queimadas na Amazônia. Depois da alta registrada em 2020, os focos de calor registrados pelo Inpe tiveram uma queda de 40% neste ano.
Em sua visão sobre desenvolvimento sustentável da Amazônia, o vice-presidente inclui o asfaltamento da BR 319, que liga Porto Velho a Manaus. No caminho da rodovia, há diversas áreas protegidas e terras indígenas como a dos povos Mura, Mundukuru, Apurinã, Paumari e Parintintin.
"A estrada permitiria a melhora da logística e permite que as forças de segurança atinjam com rapidez áreas que estejam sendo atingidas pela ilegalidade", alegou, como justificativa para a obra.
Entre pesquisadores há um consenso baseado no acúmulo de evidências: estradas são propulsoras do desmatamento. Segundo estudos feitos pelo Instituto de Conservação e Desenvolvimento Sustentável da Amazônia (Idesam), a BR-319 dá aos criminosos acesso a vastas áreas intocadas. "Até agora, o desmatamento da Amazônia brasileira esteve quase inteiramente confinado à faixa nas bordas sul e leste da floresta, conhecida como o 'arco do desmatamento'. O imenso bloco de floresta na parte ocidental do estado do Amazonas tem sido poupado devido à falta de acesso", comenta o Idesam, e alerta para o provável boom.
Em setembro último, uma série de sobrevoos feitos pela Aliança Amazônia em Chamas, parceria entre as organizações Amazon Watch, Greenpeace Brasil e Observatório do Clima, mostrou que essa região já está se tornando a nova fronteira do desmatamento. Segundo participantes da expedição, a floresta tem sido consumida nessa região pelo fogo, substituída por pistas de pouso clandestinas e por grandes áreas para o cultivo de grãos, como soja.