quarta-feira, 3 de janeiro de 2018

Ano Novo no Jardim das Incertezas

Esse período de festas — que no Brasil se estende da véspera do Natal à ressaca pós-carnaval — tem sido enganador: à primeira vista, sugere que o conflito se amenizou; que os governos se preparam para superar mazelas; mas quase nunca isso se confirma. Ano Novo e velhos problemas: o país continua a saga para encher os pulmões com a recuperação da economia ao mesmo tempo em que é puxado para o fundo do mar pela crise da política.

Na passagem de 2015 para 2016, com Dilma Rousseff na presidência, foi assim: a crise dera um tempo, a presidente freara seu instinto autodestrutivo, o Congresso interrompera o blitzkrieg de pautas-bombas na economia e na credibilidade; entre o final de 2016 e maio de 2017, após importantes vitórias no Parlamento, Michel Temer tocava tambor para avisar de que conseguira a proeza de tomar o sistema. Mas, quando chegou a quarta-feira de cinzas, em 2016, Eduardo Cunha retomou o processo contra Dilma; e, em maio de 2017, o Joesley Day demarcou nova fase na política nacional.

Muita gente que acreditou no fim da crise, na recuperação econômica como elemento de superação do conflito político, se decepcionou. Nas duas ocasiões, a sensação foi assemelhada ao intervalo de Brasil x Alemanha, na Copa de 2014. A derrota era iminente, mas o alívio com a interrupção do vexame — a seleção parara de tomar gols, afinal era intervalo — um Galvão Bueno dentro de cada um sugeria a ilusão de que ''ainda dá''. Mas, com Júlio César, Davi Luís, Oscar e Fred, não deu. Com Dilma e Temer também não.

Com efeito, a ilusão é a primeira flor que nasce, no jardim das incertezas; a esperança, a última orquídea que morre. Mas, é o ceticismo, entre arbustos num canteiro distante, o que mais resiste mais que todos e fica para contar a história do bosque.


Ano Novo e o momento é de a imprensa buscar magos e previsões que criam esses sentimentos, mas são rapidamente esquecidos ao longo dos meses. É preciso reconhecer a precariedade do todo: há muita incerteza no país e no mundo; processos avassaladores de comunicação que criam ambientes desconhecidos, ondas de informação que produzem fatos novos, impactam projetos e impedem efeitos anteriormente esperados.

Além da continuidade dos conflitos, é difícil afirmar no que o processo pode dar. Mesmo assim, é justo acreditar que nos próximos meses o país seguirá dividido entre os que potencializam os efeitos da recuperação econômica — supostamente capazes de superar os impasses políticos — e os que desprezam esses efeitos, ou antes, colocam o impasse político como um impeditivo para um processo duradouro de recuperação.

Haverão dados e estatísticas para relativizar todas e quaisquer posições. Isto tudo é próprio do ambiente de ''copo meio cheio e meio vazio''. Qualquer positividade parece bem-vinda, mas nem sempre suficiente. O fato é que processos assim carecem de choques políticos mais profundos, com lideranças capazes de criar o novo, reunir apoios e atrair os polos, reduzindo o conflito.

É ano eleitoral e seria de esperar que algo assim estivesse no radar dos analistas. Mas, há poucas esperanças de que a eleição, com o cardápio de candidaturas que se tem, venha a consertar o processo destes anos tortos. A crise de credibilidade de partidos e atores políticos expande o ceticismo e a nada parece mais fora de questão do que a crença de que o Brasil é destinado ao sucesso, pronto a se redimir. Intimamente, desconfia-se que o gigante morreu na danação do sono.

Até aqui, o processo eleitoral não desperta suspeita de novidades — embora sejam vastos os espaços para o surgimento de outsiders. Acreditar na amenização do conflito, como comedimento de agentes, que já estão na pista, é um desconhecer que, em política, as circunstâncias quase sempre têm maior importância que os atores.

Crer na superação das diferenças de um centro moderado parece mesmo confiar na da seleção do Felipão, após cinco gols — no primeiro tempo.

O ano é novo, mas não é de hoje, que todo mundo sabe que ''o que há algum tempo era jovem, novo hoje é antigo''; que as estruturas do sistema político já não dão conta da realidade e que a democracia precisa ''rejuvenescer''. Mas também se sabe que ninguém sequer desconfia o que e como renovar esse processo.

No jardim da incerteza, as folhas das ilusões e das esperanças são destruídas por toxinas de previsões cujos destinos que nunca se cruzam. E a maior ''dor é perceber que apesar de termos feito tudo o que fizemos, ainda somos os mesmos e vivemos'' como Belchior.

Carlos Melo 

A realidade política mascarada

Cada vez mais parece aumentar a distância entre o que é discutido em canais de TV e nos principais jornais, de um lado, e o que se debate em conversas privadas bem informadas, de outro. É como se houvesse uma certa censura velada a qualquer declaração que contrarie um determinado script politicamente correto definido pelos graduados da grande imprensa.

Vejamos três brasileiros ilustres cujas declarações recentes tiveram pouquíssima repercussão nos meios de comunicação tradicionais, embora gozem de grande prestígio entre seus pares e soubéssemos que não estavam tratando de abobrinhas: embaixador e ex-ministro Rubens Ricúpero, jurista e professor da USP Modesto Carvalhosa e general de Exército Antônio Hamilton Mourão.

O embaixador Ricúpero defende a tese de que, em nosso país, arranjos políticos parecem se limitar a um prazo médio de cerca de trinta anos. De fato, foram 41 anos da Proclamação da República até a Revolução de 30, 34 anos de período sob influência getulista e 21 anos de regime militar. E a Nova República, iniciada em 1985 com o governo Sarney e tocada sob a égide da Constituição de 88, caminha para fazer 33 anos, já mostrando sinais de esgotamento. Problemas alcançaram tamanha dimensão que já não vemos, nos atuais atores da cena política, capacidade e grandeza para enfrentá-los adequadamente, ressalta o embaixador.

Já o professor Carvalhosa encara com forte desdém o regime político vigente, que não define como uma legítima democracia, mas, sim, como uma cleptocracia, um governo de ladrões para ladrões. A corrupção teria tomado conta de todas as esferas do aparato estatal e só uma grande limpeza geral permitiria o funcionamento de um governo minimamente operacional e ético.

Finalmente, temos as polêmicas declarações do general Mourão, que de forma alguma representam uma voz isolada dentro das Forças Armadas. Os militares sempre agiram, na prática, como o Poder Moderador, diante de crises institucionais de nossa História. No momento, este poder está entregue à cúpula do Judiciário, de quem se espera capacidade de definir um quadro de clareza que fortaleça nossas instituições, impedindo o caos em vésperas de eleições. Diz o general que a moderação está em boas mãos com o Judiciário, mas que a tarefa precisa ser feita, dando a entender que, na falha do Judiciário, uma intervenção saneadora de curto prazo, nunca uma ditadura, poderia ser liderada pelas Forças Armadas para restabelecer a ordem e impor um rumo ao país.

Charge do dia 01/01/2018

O fato é que problemas que se acumularam com o tempo, como a corrupção generalizada, o descontrole das contas públicas e a difusão de privilégios descabidos para uma casta de funcionários públicos, recebem a repulsa da população consciente e decente. E, para enfrentar estes problemas de frente, governantes e instituições, como são e estão, não parecem ter a necessária dosagem de energia e legitimidade. É como se precisássemos de um tranco de arrumação momentâneo para garantir a sobrevivência de nosso regime democrático.

Costuma-se dizer que as instituições estão funcionando satisfatoriamente, mas não é verdade. O mensalão e o petrolão foram descobertos por motivos fortuitos. No mensalão, foi uma briga dentro da quadrilha que permitiu que Roberto Jefferson expusesse à luz um esquema já conhecido, mas nunca explicitado pelos nossos organismos de investigação e controle. No petrolão, eram investigadas, pela equipe de Curitiba do Juiz Moro, operações de lavagem de dinheiro em postos de gasolina. Chegou-se ao nome do doleiro Yousseff e, ao investigá-lo, evidenciaram-se ligações com um diretor da Petrobras, Paulo Roberto Costa, o Paulinho, figura íntima de nossos governantes maiores. Paulo Roberto, em delação premiada, para safar-se, entregou toda a roubalheira que se fazia aos cofres da Petrobras, informando que o mesmo “mecanismo” de corrupção ocorria por toda a estrutura governamental.

Vemos hoje ações isoladas de juízes de primeiro grau, acompanhados por equipes do Ministério Público e da Polícia Federal, lutando desesperadamente para que a cúpula do Judiciário, em Brasília, e ações do Executivo e do Legislativo não desfigurem completamente a operação Lava-Jato, retirando-lhe os meios de alcançar a elite política corrupta, muito bem assentada no Olimpo. A sensação é que a operação Lava-Jato começa a colecionar mais derrotas que vitórias e que políticos ficarão de fora das esperadas punições, pelo menos a tempo de excluí-los das próximas eleições.

Indiscutivelmente, precisamos, além da higienização ética, de uma grande reforma política, de uma reforma fiscal e de medidas duras que combatam os privilégios auto concedidos pela cúpula dos Poderes constituídos. Mas, como esperar da atual escalação de governantes algo que não consulte apenas ao seu interesse particular mais mesquinho?

Melhor em nada mexer. A emenda seria pior que o soneto, por certo.

Estes e outros pontos deixam a população responsável indignada e desanimada. Discutir como sair deste aparente impasse institucional deve ser a pauta prioritária de todos os que se preocupam em construir um país ético e próspero para as próximas gerações.

Rubem de Freitas Novaes

O terceiro dia

Se 2017 desmascarou um sistema oficializado de propinas presenteadas aos “cuidadores” do povo pelos donos do poder, ao lado do desequilíbrio entre a sociedade com seus trabalhadores recebendo aposentadorias miseráveis e de um funcionalismo público aristocratizado, o mínimo que se espera neste ano novo é mais equilíbrio entre Estado, governo e sociedade. Mais sincronia entre valores culturais (incluindo neles ideais éticos e morais) e velhas práticas caseiras, nas quais quem manda se confunde com a coletividade e tira para si e os seus o que é de todos.

Se esse processo de correção continuar, em 2018, iremos assistir a uma grande transformação.

Todo rito de calendário tenta cortar o tempo condensado pela festa que também articula nossos desejos de mudança. Que assim seja nesse 2018 que hoje vive o seu terceiro dia.

Depois da festa, vem a rotina. Ninguém aguenta beber somente água ou vinho o tempo todo...
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A lei das ironias e dos contrastes fabrica o drama e o ritual com os quais tentamos conter a corrente da vida. Mas, no caso deste Brasil nu diante de si mesmo, elas devem ser filtradas. Passado a limpo, o mundo público brasileiro tem que iniciar o duro processo de juntar a casa com a rua, o pessoal com o impessoal, o cargo com quem o ocupa.

Deus levou sete dias para fazer o mundo. No primeiro dia, fez a luz; no segundo, o firmamento; no terceiro, a terra e as árvores. No quarto dia, fez o sol, a lua e as estrelas; no quinto, as aves e os peixes; no sexto, os répteis e os animais selvagens e domésticos; e, significativamente, nesse mesmo dia, Ele nos fabricou. No sétimo dia, já que ninguém é de ferro, Ele contemplou a sua criação, e descansou.

Dizem que nós, humanos, fomos criados depois dos animais, porque, caso contrário, seríamos devorados pelo orgulho. Para outros, porém, tudo foi feito para nós. Hoje não há como não ver que é a natureza que tem o devido direito sobre nós.

Enquanto você, leitor, pensa essas questões, eu estou na Irlanda (mais precisamente em Cork), onde, diariamente, medito sobre elfos e duendes em velhos e friorentos castelos.

Mas continuo perseguido pela ironia. Nos Estados Unidos, ouvi muito sobre irlandeses. Cheguei mesmo a ter como amigo Brian O’Malley, estudioso da cultura celta e da conturbada história irlandesa que, pensando bem, é um mar de rosas comparado com as nossas crises que saem umas de dentro das outras.

Foi O’Malley que, numa discussão sobre filosofia de São Patrício, o catequista de uma Irlanda pagã, sai-se com essa: você sabe por que Deus inventou o uísque?

Não!, respondi.

Se não o tivesse feito, os irlandeses seriam os donos do mundo...

Ao sair do Brasil, compramos duas garrafas de um bom uísque para O’Malley. A vendedora, porém, não lacrou o pacote e o uísque foi confiscado na fronteira da Inglaterra com a Irlanda.

Ironia das ironias: entrei na terra para a qual o Criador inventou o uísque sem o líquido dourado que tanto apreciamos.

Meu amigo irlandês, entretanto, não desistiu. Antes, pelo contrário, levou-nos à mais antiga e famosa destilaria irlandesa. Ali vimos o maior alambique do mundo e tivemos uma forte impressão das miseráveis condições dos operários do uísque. Quanto mais eu andava por meio daquelas monstruosas máquinas típicas do século 19, mais eu matutava: O’Malley está mais ou menos certo. Deus inventou o uísque, mas a sua fabricação capitalista inventou Karl Marx, que percebeu o horror dos seus trabalhadores.

PS: Que vocês, amados leitores, tenham um Feliz 2018 regado, para quem pode, a uísque irlandês...

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Ando Fuchs
Ando Fuchs

Admirável mundo novo

Mais uma vez o Brasil é retardatário. Ainda estamos com os dois pés no século 20, tentando responder a uma agenda de reformas necessárias que h á tempos deveria ter sido equacionada. A velha polarização esquerda/direita, um anacronismo reduzido à insignificâ ncia em países como a França e a Alemanha, ainda dá o tom na política brasileira.

A Europa e os Estados Unidos concentram suas energias na corrida da inovação e em busca de respostas para os desafios de um mundo em intensa transformação. Estão focados na Quarta Revolução Industrial e no mundo novo que virá a partir da disseminação da inteligência artificial e da robótica.

Já as nossas estão voltadas para fazer a reforma de uma previdência estruturada quando estávamos na era da segunda revolução industrial, com produção intensiva de mão de obra. Também pensamos reformar o sistema tributário com os olhos focados no retrovisor, sem levar em conta as alterações no modo de produzir e de como a sociedade vai se estruturar com as mudanças advindas da neorevolução tecnológica.

Certamente, não estamos respondendo como será o sistema tributário da sociedade do “não-trabalho” e qual será o sistema de proteção social para o imenso exército dos sem-trabalho. O desafio, portanto, será bem maior do que o de ter um sistema previdenciário exequível.

Não se pode reagir diante da robótica e da inteligência artificial da mesma maneira da classe operária inglesa descrita por Engels. Nos meados do Século XIX operários destruíam máquinas para impedir a substituição da manufatura por máquinas industriais. 

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Em todas as eras as revoluções tecnológicas trouxeram enormes benefícios para a humanidade. Não será diferente com a Quarta Revoluç&at ilde;o. Sem dúvida, impactará, e para melhor, em nossas vidas.

Surpreendentemente foi Luciano Huck quem fez uma boa provocação por meio do artigo “Tá Ligado?” publicado recentemente no jornal Folha de S. Paulo. Ali ele dá uma pálida ideia do admirável mundo novo que se anuncia: “sim, os carros serão autônomos muito em breve. Sim, o córtex humano estaráconectado à nuvem. Sim, vamos poder fazer download de nossa memória. Sim, vamos usar minérios vindos do espaço. Sim, você poderá escanear seu corpo em casa, gerando um diagnóstico imediato. Sim, a inteligência artificial é uma realidade e irá engolir o mundo.”

De fato, haverá enormes ganhos para a humanidade. Pela primeira vez está dada ao homem a possibilidade de se livrar do trabalho enfadonho e repetitivo, podendo direcionar sua energia e tempo para a sua realização pessoal.

Nos meados do século XIX, quando a jornada de trabalho era de 12 horas, o escritor e jornalista francês Paul Lafargue escreveu sua obra polêmica “O Direito à Preguiça”. Pois bem, não estão distantes os dias em que o homem poderá usufruir desse direito sem ter a sua sobrevivência ameaçada.

A globalização iniciada nas últimas décadas do século passado retirou centenas milhões de pessoas da linha da pobreza e democratizou o consumo tornando os produtos acessíveis para camadas antes excluídas do mercado de massas. Esse processo se intensificará em escala exponencial com a Quarta Revolução Industrial. A massa de riqueza gerada será suficiente para resolver as crises humanitárias e para financiar um mundo ambientalmente sustentado.

Mas como as revoluções industriais antecedentes, a Revolução 4.0 também terá seus impactos negativos. A robótica e a inteligência artificial substituirão 47% da mão de obra tradicional. O novo desafio é o que fazer com esse exército de deslocados, tanto para dar sentido a suas vidas, como para garantir a sua sobrevivência.

Propostas antes tidas como lunáticas são debatidas no santuário da inovação tecnológica, o Vale do Silício. Mentes arejadas como a de Bill Gates apontam a tributação dos robôs como um dos caminhos para o financiamento da alocação do contingente dos “sem-trabalho”&n bsp;em outras atividades sociais. A ideia da renda mínima universal é experimentada na Finlândia é admitida por políticos antenados como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.

O grande desafio para as próximas décadas é definir como serão repartidos os benefícios gerados pela robotização e pela intelig ência artificial. Com elas, estarão criadas as condições objetivas não apenas para o homem se livrar do trabalho pesado e repetitivo. Também estarão dadas as condições para a conquista da igualdade, bandeira que a humanidade persegue desde a Revolução Francesa.

Nesse quadro a questão da distribuição da riqueza é o grande objetivo a ser perseguido na primeira metade do século 21, assim como a democracia foi o grande valor que se afirmou ao final do século 20.

Não se trata de um simples retorno ao Estado de Bem-Estar Social, pois isto seria inexequível. Mas de reinventá-lo nas condições da sociedade do conhecimento. Por aí o admirável mundo novo poderá ser o reino da prosperidade, da liberdade e da felicidade.

As 136 milhões de pessoas deixadas para trás

Esther tem 30 anos e passou os últimos três fugindo. Em 2014, ela deixou seu vilarejo próximo à cidade de Batangafo, no norte da República Centro-Africana, durante os conflitos que provocaram a queda do então presidente do país. Viveu mais de dois anos em um acampamento de deslocados até que, com o recrudescimento da guerra em 2017, passou a sentir medo ali também. Desde julho, Esther vive no terreno de um hospital de Médicos Sem Fronteiras. Como outras centenas de pessoas que buscaram refúgio no lugar, ela divide uma cabana de galhos e pedaços de pano com a filha e o irmão mais novo.

Esther é uma entre 2,5 milhões de centro-africanos que precisam de assistência emergencial, e uma entre quase 136 milhões de pessoas em todo o mundo que, segundo estimativa do Escritório da ONU para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA), dependerão de ajuda humanitária em 2018. O número, 5% maior do que em 2017, representa 1 em cada 56 dos 7,6 bilhões de habitantes do planeta. E está subestimado, uma vez que a projeção do OCHA não inclui, por exemplo, as pessoas que fogem da violência em países da América Central, e também perdem os meios de sobrevivência.

Criança em acampamento na República Democrática do Congo (Simona Foltyn)
Em meio a cifras enormes, é fácil esquecer de que cada uma delas é a multiplicação de histórias individuais de sofrimento, que se repetem neste exato momento. Embora desastres naturais e fenômenos climáticos deem sua contribuição, a causa principal são os conflitos prolongados – como o que pôs Esther em fuga e atingem países como Iêmen (22,2 milhões em necessidade de ajuda emergencial), Nigéria (14,5 milhões), Síria (13,1 milhões), Iraque (8,7 milhões), Sudão do Sul (7 milhões) e Somália (6,2 milhões). Na República Democrático do Congo (RDC), palco de diferentes conflitos que se sucedem há mais de duas décadas, mais de 13 milhões de pessoas precisarão de assistência de emergência em 2018.

Em 2017, a esse quadro somaram-se novas e agudas crises humanitárias. Em apenas quatro meses, a partir de agosto, mais de 650 mil pessoas da etnia Rohingya fugiram de Mianmar para o vizinho Bangladesh. Os profissionais de MSF nos acampamentos de refugiados ouviram relatos que davam conta de uma onda de violência generalizada contra esse povo por parte do Exército, da polícia e de milícias birmanesas: aldeias incendiadas, homens e rapazes executados, mulheres agredidas e estupradas. Nem as crianças foram poupadas.

“Eu estava segurando meu bebê de 28 dias no colo. Eles o atingiram com alguma coisa pesada. O objeto bateu na cabeça e o bebê morreu. Eu vi como seu crânio se abriu e o cérebro saiu”, contou uma refugiada Rohingya, de 25 anos, que havia sofrido cortes de facão na cabeça e no pescoço. Equipes de MSF fizeram um levantamento com mais de 2.400 famílias precariamente instaladas nos acampamentos em Bangladesh. Assim, foi possível estimar que pelo menos 6.700 Rohingyas foram mortos no estado de Rakhine, em Mianmar, apenas no primeiro mês da crise.

Também se revelou com maior força, em 2017, o inferno em que vivem os migrantes e refugiados que tentam cruzar a Líbia para chegar à Europa pelo Mediterrâneo. Encarceradas em galpões fétidos por redes de tráfico, exploradas de todas as formas, essas pessoas estão dispostas a arriscar sua vida no mar, em botes e barcos precários, para ter segurança e uma vida melhor. Foram traídas pelos países europeus, que, para conter a chegada dos deserdados às suas costas, passaram a financiar a guarda costeira da Líbia. A União Europeia tornou-se cúmplice das autoridades de um país sem Estado de direito, custeando o trabalho de receptação de migrantes no mar e sua devolução à detenção ilegal.

Há crises humanitárias que ganham maior destaque midiático, como a da Síria, e crises ignoradas, como a que aconteceu a partir de meados de 2016 na região de Kasai, uma área até então pacífica no centro da República Democrática do Congo. Choques que começaram com a morte pelos militares de um chefe local levaram 1,6 milhão de pessoas a fugir de suas casas. Centenas delas passaram meses escondidas na floresta, se alimentando com o que podiam encontrar. Quando os confrontos cederam, 80 valas comuns foram encontradas. Equipes de MSF trataram pessoas cujos membros tiveram que ser amputados porque ferimentos e fraturas passaram semanas sem tratamento.

Um imenso anacronismo marca algumas das crises humanitárias de 2017. No final do ano, dois surtos de difteria foram reportados no Iêmen e nos campos de refugiados Rohingya em Bangladesh – com respectivamente mais de 300 e mais de 2.000 casos suspeitos atendidos apenas por profissionais de MSF. A difteria é uma doença que chega a ter uma taxa de mortalidade de 40%, mas é facilmente evitável por meio da vacinação infantil de rotina. Por isso mesmo, há tempos não ocorre na maior parte do mundo. Os surtos ilustram a precariedade extrema a que foi reduzido o sistema de saúde do Iêmen, e a discriminação que sofrem os Rohingya no acesso a cuidados básicos de saúde, como a vacinação, em Mianmar.

Jogar luz sobre as crises humanitárias ajuda a pressionar por maiores recursos humanos e financeiros para cumprir o imperativo maior – ainda que muitas vezes negligenciado - de salvar as milhões de vidas em risco. O esquecimento e o sentimento de abandono são comuns aos que lutam para sobreviver e prosseguir em meio a esses eventos terríveis. Quando muitos usam o medo para discriminar e isolar, a experiência de Médicos Sem Fronteiras mostra que, muitas vezes, a solidariedade e a luta pela dignidade de todos podem ser uma força insuperável.

Claudia Antunes

Gente fora do mapa

Awesome

2018: um novo presidente e uma nova Copa para recompor o Brasil?

Este novo ano será para o Brasil uma data especial porque nele terão lugar dois acontecimentos que tocam na alma das pessoas: será eleito um novo presidente da República, depois do ano político horribilis que não gostaríamos de repetir, e será o ano em que a seleção de futebol tentará a desforra, na Copa da Rússia, pela vergonha da derrota por 7 a 1 contra a Alemanha no Mineirão.

Neste ano as urnas serão um termômetro para saber até onde chega a febre de desalento dos brasileiros com a política e seus desejos de renovação. Saberemos se querem que as coisas mudem para melhor ou preferem que continuem se arrastando no desgoverno e descaramento que estamos vivendo. E, embora possa parecer estranho, o resultado da seleção na Copa da Rússia, hoje nas mãos de Tite, um treinador discreto e com pulso firme, poderia influenciar positiva ou negativamente as eleições que se apresentam como uma das mais complexas e difíceis em muitos anos.


Já sei que o futebol nem sequer no Brasil desperta hoje aquela paixão dos tempos em que este país ganhava uma Copa atrás da outra e se identificava com a bola bem jogada. Já sei que o futebol, paixão quase universal, carregada de símbolos, foi profanado por corruptos da FIFA. Mas, ainda assim, continua vivo nas veias de milhões de brasileiros. A Copa deste ano poderia influenciar as eleições presidenciais. Uma nova derrota como a de 2014 acabaria azedando ainda mais os ânimos da sociedade. Já o hexa conquistado na Rússia, pelo contrário, poderia ser um remédio que reanimasse o desejo de querer renovar também a política para recomeçar, com gente nova, um processo mais limpo e com mais vontade de mudar as coisas.

Não podemos esquecer que foi, curiosamente, a partir do desastre da última Copa, com as vaias a Dilma no Maracanã, que se agudizou a crise política que nos conduziu até o desastre de hoje.

Cada um decidirá, tão logo acabe a Copa, quem escolher para recompor o Brasil que, de país do futuro, se viu descarrilar em um presente sem rumo. Eu não voto no Brasil, mas o que o Brasil parece estar precisando é de um presidente normal. Sim, normal, não tocado pelo lixo da corrupção, com capacidade e sabedoria para levantar os ânimos de um país em depressão e de reunificar os que a degradação da política levou a se enfrentarem duramente.

Um presidente normal, que não precise de grande biografia, como a maioria dos que governam o destino dos países com a maior qualidade de vida e a maior justiça social. Quantos sabem os nomes dos presidentes dos dez países nos quais, segundo a ONU, se vive melhor e há menos pobres e analfabetos, se houver algum? Normal significa que não precisa ser um herói, nem um santo, nem um messias, nem um justiceiro. Simplesmente, uma pessoa preparada, séria e honesta, disposta a pensar mais no país do que em seus privilégios de hoje e de amanhã. Existe?

Os escritores e os poetas são aqueles que melhor sabem compreender a alma das pessoas e seus desassossegos nos momentos críticos de uma sociedade. O Brasil, pelo que conheço nos meus 20 anos de vida aqui escrevendo sobre ele, me parece um país rico e complexo internamente, uma mistura de tantas experiências sedimentadas ao longo de séculos, embora hoje profundamente decepcionado.

E essa decepção já foi plasmada pelo grande Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas, quando escreveu: “Pensar mal é fácil, porque esta vida é embrejada. A gente vive, eu acho, é mesmo para se desiludir… A senvergonhice reina tão leve e leve pertencidamente, que por primeiro não se crê no sincero sem maldade”. É o que o Brasil está vivendo, onde a “senvergonhice” a que se refere Guimarães nos levou a ver maldade até onde poderia existir sinceridade.

Por sua vez, o autor de um dos livros mais enigmáticos da Bíblia, Eclesiastes, escreveu há mais de três mil anos algo que todos deveríamos recordar neste momento de transição que o Brasil está vivendo em busca de um novo ciclo de serenidade e de fraternidade.

Escreve que:
“Há um tempo para tudo sob o sol...
tempo para jogar pedras e outro para recolhê-las,
tempo para amar e tempo para odiar,
tempo para a guerra e tempo para a paz”.
Que 2018 nos prepare um clima no qual o Brasil saiba deixar para trás, como um pesadelo, o tempo de “jogar pedras”, o tempo para “odiar” e o tempo de “guerra”, para poder respirar em uma sociedade pacificada outra vez na qual prevaleçam seus verdadeiros valores que hoje parecem perdidos.

Essa alma à qual se referia no fim do ano a escritora Rosiska Darcy de Oliveira no jornal O Globo, com a famosa frase: “que todos os deuses do Brasil nos ajudem a preservar essa estranha mania de ter fé na vida”.

Na simbologia cabalística judaica, o número 18 representa a vida. Então, feliz 2018! Que seja o ano em que o Brasil ressuscite com um novo instinto de vida deixando para trás a aborrecida caravana dos resignados.

Às cegas

Tanto jornal, tanta rádio, tanta agência de informações, e nunca a humanidade viveu tão às cegas. Cada hora que passa é um enigma camuflado por mil explicações.
 
A verdade, agora, é uma espécie de sombra da mentira. E como qualquer de nós procura quase sempre apenas o concreto, cada coisa que toca deixa-lhe nas mãos o simples negativo da sua realidade
Miguel Torga, in "Diário (1948)"

'Não vamos permitir a ditadura da toga'

Às vésperas do julgamento que pode tornar Lula inelegível, o grão-petista José Dirceu levou à internet um vídeo no qual chama de “golpistas” os desembargadores do Tribunal Federal de Recursos da 4ª Região. Acusa-os de agir com o propósito deliberado de impedir a candidatura presidencial do líder máximo do PT. A peça foi divulgada no site ‘Nocaute’, do escritor Fernando Morais.

Disse Dirceu, a certa altura: “Por isso o povo está de costas para eles, para os golpistas, para aqueles que querem refundar a República quando não receberam esse mandato da nação. São juízes, não foram eleitos, mas fazem algo mais grave. Querem usurpar o poder do Legislativo e do próprio Executivo, violando direitos fundamentais. Tudo em nome de impedir Lula de ser candidato. Mas nós derrotamos a ditadura militar, que governava por Atos Institucionais, e nāo vamos permitir a ditadura da toga.”

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Condenado por Sergio Moro a nove anos e meio de cadeia por corrupção passiva, Lula recorreu ao TFR-4. Seu recurso será julgado em 24 de janeiro pelos mesmos desembargadores que já grudaram na biografia de Dirceu uma condenação de segunda instância pelos crimes de corrupção passiva, lavagem de dinheiro e organização criminosa. No caso de Dirceu, além de confirmar o veredicto de Moro, os magistrados elevaram a pena de 20 anos para 30 anos de cadeia.

Libertado por decisão da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, Dirceu arrasta uma tornozeleira eletrônica em Brasília. Pode ser devolvido à carceragem de Curitiba a qualquer momento. Aproveita o tempo fora do xadrez para reforçar o coro da hipotética perseguição política a Lula.

Sentenciado no mensalão e no petrolão, escândalos que têm raízes nos dois mandatos de Lula, Dirceu vive no Brasil alternativo criado pelo PT. Um país onde nada aconteceu. “Vamos juntos em 2018 combater para garantir Lula candidato, fazer a campanha, elegê-lo, dar posse a Lula, e de novo governar com o povo, pelo povo”, pregou 0 ex-chefão da Casa Civil de Lula.

Em outubro de 1968, quando foi preso pelas forças da ditadura, Dirceu, à época com tenros 22 anos, considerava-se um revolucionário. Hoje, septuagenário, três condenações criminais sobre os ombros —uma no mensalão e duas no petrolão—, o ex-líder estudantil consolidou-se como protótipo da perversão que marcou a passagem do PT pelo poder federal.

No livro ''Abaixo a Ditadura'' (Ed. Garamond, 1998), que tem Vladimir Palmeira como coautor, Dirceu escreveu: ''É difícil reproduzir o que foi o espírito de 68, mas posso dizer que havia uma poderosa força simbólica impulsionando a juventude (…). O mundo parecia estar explodindo. Na política, no comportamento, nas artes, na maneira de viver e de encarar a vida, tudo precisava ser virado pelo avesso. Para nós, o movimento estudantil era um verdadeiro assalto aos céus''.

Ao conquistar a chave do cofre, o pedaço do petismo simbolizado por Dirceu esqueceu toda a noção de ética que possa ter existido um dia. Na política, no comportamento, nas artimanhas, na maneira de viver e de encarar a vida, tudo foi virado do avesso. Assaltaram-se não os céus, mas as arcas da República. Resta saber o que Dirceu planejava fazer para virar a mesa na hipótese de o TRF-4 deixar Lula mais perto da cadeia do que das urnas.

A doce Ella

Ano novo com sujeira de décadas

Tá aí o que se queria. Um ano estalando de novo para se pintar o sete. Os prognósticos de comentaristas políticos, analistas econômicos, pajés e profetas já fizeram as apostas mais esdrúxulas. Todos apontam para a incerteza, porque há bilhões de anos, na Terra, o sol continua a nascer no Leste e adormecer no Oeste. O que ocorrer nesse período de tempo é coisa nossa não tem profecia que acerte.

O ano, quando começa, vem meio torto, um pouco sujo e, às vezes, mais do que esfarrapado. É o caso de 2018. Chega com todos os vícios, as malandragens, os jeitinhos e os criminosos que marcaram o ano passado. Inclusive até com as mesmas promessas e a armação ilimitada de estancar prisão dos privilegiados. 

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Não há nada novo debaixo do sol deste ano. A novidade, se acontecer, estará nas mãos dos cidadãos que resolverem rechaçar a pilantragem. A tomada das ruas e o clamor das redes sociais, sem ideologias e partidos, que seja passar o país a limpo, é que será o novo tão esperado.

Sem a revolta dos desesperançados, o ano acabará tão velho quanto os passados. Se verá o replay da tradicional injustiça brasileira que tem dois pesos e duas medidas, a economia dos menos favorecidos para bolsos ricos e o descaso medieval para com os que verdadeiramente sustentam o país no lombo.

De novo, neste ano, só haverá o que se plantar para o futuro, pois o que se colhe e colherá nesses 365 dias será, em grande parte, fruto podre de árvores venenosas há muito crescidas e vicejando.
Luiz Gadelha  

Há juízes pintados para a guerra

Numa entrevista ao repórter Fausto Macedo, o presidente da Associação de Juízes Federais, Roberto Veloso, defendeu o auxílio-moradia de R$ 4.300 mensais livres de impostos pago aos seus pares e aos procuradores. Uma parte de sua argumentação é sólida, pois, se o magistrado ou o procurador é transferido para outra cidade, faz sentido que receba algum auxílio. Quando Macedo levantou o tema do servidor que recebe o auxílio tendo casa própria na cidade em que vive há anos, Veloso respondeu que “não há uma ilegalidade no pagamento”.

“Eu me referia a uma preocupação de caráter moral”, esclareceu Macedo.

“Não estamos com essa preocupação. Não é uma pauta nossa”, respondeu o presidente da Ajufe.

 Alô, alô, Brasil, quando um juiz tem um pleito em nome de sua classe e diz que não se preocupa com a sua moralidade, a coisa está feia.



Segundo a Advocacia-Geral da União, o auxílio-moradia custa R$ 1 bilhão por ano. Dentro da lei, somando-se todos os penduricalhos dos servidores do Judiciário da União e dos Estados, chega-se a cifras assustadoras. Um relatório divulgado pelo Conselho Nacional de Justiça em janeiro passado estimou que em 2015 eles custaram R$ 7,2 bilhões. (As 30 toneladas de ouro tiradas de Serra Pelada valeriam R$ 4,6 bilhões em dinheiro de hoje.)

O problema dos penduricalhos volta para a pauta quando se sabe que 7 em 10 juízes ganham acima do teto constitucional de R$ 33 mil.

Na ponta do realismo fantástico, um juiz paulista que foi aposentado e cumpre pena de prisão em regime semiaberto por crime de extorsão recebeu em agosto passado um contracheque de R$ 52 mil. Tudo dentro da lei.

Os penduricalhos e os salários que produzem estão corroendo a imagem do Judiciário, logo a dele, onde uma centena de magistrados e procuradores fazem a grande faxina iniciada pela Lava Jato.

Essa questão pecuniária caiu no meio de um pagode, no qual ministros do Supremo se insultam, Gilmar Mendes descascou a Procuradoria-Geral de Rodrigo Janot e foi por ele acusado de “decrepitude moral”.

Desde maio está no gavetão da presidente do STF, ministra Cármen Lúcia, um pedido de Janot para que o ministro seja impedido de julgar casos envolvendo o empresário Eike Batista.

Nas razões que apresentou para desqualificar o pedido de Janot, Gilmar Mendes incluiu um provérbio português como epígrafe: “Ninguém se livra de pedrada de doido nem de coice de burro”. Não deu outra.

Caiu na rede um áudio atribuído ao juiz Glaucenir Oliveira, titular da Vara Eleitoral de Campos (RJ), que mandara prender o ex-governador Anthony Garotinho, solto por Gilmar. Em inédita baixaria, o juiz disse que “eu não quero aqui ser leviano, estou vendendo peixe conforme eu comprei, de comentários ouvidos aqui em Campos hoje. […] O que se cita aqui dentro do próprio grupo dele [Garotinho] é que a quantia foi alta. […] A mala foi grande.”

Esse é o preço cobrado ao espírito de corpo do Judiciário. Em 2011 o juiz Glaucenir dirigia sem cinto e viu que estava sendo multado por uma guarda municipal. Deu ré, carteirou-a e insultou-a.

Quando ela disse que o levaria à delegacia, o magistrado informou: “Quem vai te conduzir sou eu”. Se ele não pagou a multa, a conta ficou para Gilmar Mendes. Ninguém se preocupa quando uma guarda municipal leva uma pedrada.
Elio Gaspari

Paisagem brasileira

Não mintam sobre a minha geração

Há poucos dias fiz aniversário. Embora costume brincar sobre o tema da minha idade dizendo que tenho 73 anos, mas "de banho tomado fico como novo", o fato é que algumas coisas mudaram na percepção que tenho da minha realidade existencial. Assim: quando eu era jovem, contemplava o futuro como um horizonte móvel. Ele se ampliava e se distanciava a cada passo dado. Agora, eu o percebo fixo. A distância entre mim e ele encurta a cada velinha soprada.

Um dos fascínios da vida, aqui de onde eu a vejo, é a possibilidade de ouvir o que os jovens falam e o que alguns dizem aos jovens. Nessa tarefa instigante de ouvir, comparar e meditar volta e meia me deparo com a afirmação de que os anos 60 e 70 produziram uma geração de jovens alienados. Milhões de brasileiros teriam sido ideologicamente castrados em virtude das restrições impostas pelos governos militares que regeram o Brasil naquele período. Opa, senhores! Estão falando da minha geração. Esse período eu vivi e as coisas não se passaram deste modo.

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Bem ao contrário. Nós, os jovens daquelas duas décadas, éramos politizados dos sapatos às abundantes melenas. Ou se lutava pelo comunismo ou se era contra o comunismo. Os muitos centros de representação de alunos eram disputados palmo a palmo. Alienados, nós? A alienação sequer era tolerada na minha geração! Havia passeata por qualquer coisa, em protesto por tudo e por nada. Surgiu, inclusive, uma figura estapafúrdia - a greve de apoio, a greve a favor. É sim senhor. Os estudantes brasileiros dos anos 70 entravam em greve por motivos que iam da Guerra do Vietnã à solidariedade às reivindicações de trabalhadores. Havia movimentos políticos organizados e eles polarizavam as disputas pelo comando da representação estudantil. O Colégio Júlio de Castilhos foi uma usina onde se forjaram importantes lideranças do Rio Grande do Sul. As assembléias estudantis e os concursos de declamação e de retórica preparavam a moçada para as artes e manhas do debate político. Na universidade, posteriormente, ampliava-se o vigor das atuações. O que hoje seria impensável - uma corrida de jovens às bancas para comprar jornal -, era o que acontecia a cada edição semanal de O Pasquim, jornal de oposição ao regime, que passava de mão em mão até ficar imprestável.

Agora, leitor, compare o que descrevi acima com o que observa na atenção dos jovens de hoje às muitas pautas da política. Hum? E olhe que não estou falando de participação. Estou falando apenas de atenção, tentativa de compreensão. Nada! As disputas pelo comando dos diretórios e centros acadêmicos, numa demonstração de absoluto desinteresse, mobilizam parcela ínfima dos alunos. Claro que há exceções nesse cenário de robotização. Mas o contraste que proporcionam permite ver o quanto é extensa a alienação política da nossa juventude num período em que as franquias democráticas estão disponíveis à vitalidade da dimensão cívica dos indivíduos.

Em meio às intoleráveis dificuldades impostas à liberdade de expressão nos anos 60 e 70, a juventude daquela época viveu um engajamento que hoje não se observa em quaisquer faixas etárias. Nada representa melhor a apatia política da juventude brasileira na Era Lula do que os fones de ouvido.

Percival Puggina

O direito a um julgamento rápido

No ano de 2004, as bancadas do PT no Congresso aprovaram a inserção da seguinte emenda no art. 5º da Constituição Federal: “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”. A bem da verdade, não se tratava de novidade alguma. Esse texto é uma ampliação da Emenda 6 à Constituição dos Estados Unidos, de 1791, pela qual é assegurado a qualquer réu, no processo penal, o direito a um julgamento rápido.

Curiosamente, agora, os petistas alegam que o cumprimento, pelo Poder Judiciário, do mandamento constitucional de julgamento célere – no caso da apelação de Lula ao Tribunal Regional Federal da 4ª Região –, seria uma manifestação de perseguição política ao ex-presidente da República pela magistratura. Argumentam: ninguém tem sido julgado tão rapidamente assim no Brasil e, portanto, esse expediente seria discriminatório.

Nenhum texto alternativo automático disponível.

Suponhamos que a afirmação seja verdadeira. A questão que se põe, então, é: por que querem, agora, fazer tábula rasa daquilo que seria uma garantia fundamental do cidadão, ou seja, a possibilidade de uma eventual inocência ser confirmada o mais breve possível, garantia que antes fora aprovada por todos os parlamentares petistas? E, se, de fato, o tratamento dado a Lula não é isonômico, frente a milhares de brasileiros que se veem às voltas com a Justiça criminal, o que se indaga é o seguinte: quais foram as contribuições dos governos de Lula e Dilma para minimizar a tragédia brasileira que consiste em termos, hoje, mais de 40% dos mais de 720 mil internos de nosso sistema prisional encarcerados provisoriamente, à espera de um julgamento sem data marcada? Não custa lembrar que esses números dobraram de 2005 para cá.

Pode até ser que Lula esteja a servir de “bode expiatório” e que sua condenação tenha um sentido hipocritamente pedagógico. Já rola jocosamente entre os círculos jurídicos que o sonho de todo advogado é que um processo corra “com a rapidez do caso Lula e com as garantias do caso Aécio”. O que não se concebe é que alguém, por sua origem miserável, por seu passado de lutas e pelas esperanças de renovação que suscitou, tenha se deixado levar pelas delícias do poder, tenha sido seduzido pelos “mimos” de capitalistas astuciosos e tenha acreditado na sinceridade de elogios dos áulicos de plantão: as oligarquias carcomidas, as corporações estatais egoísticas, a imprensa interesseira. Especialmente por tudo que algum dia representou, ninguém mais do que Lula deveria ter atentado para o que dizia a radialista Glória Lopes: “Se você não quer aparecer, não deixe o fato acontecer”.

São as voltas que a vida dá. Lula foi ingênuo demais ao acreditar que a elite econômica o aceitaria com suas promessas de poder harmonizar o capital e o trabalho no Brasil. A sanha do capitalismo financeiro não dá espaço para devaneios. Deu no que deu. Poderia ter feito como as raposas políticas mineiras que aprenderam com a leitura do Eclesiástico: “A esperteza, quando é muita, engole o esperto”.