domingo, 14 de agosto de 2016

AUTO_samuca

Nem vira-lata nem Brasil potência

Nelson Rodrigues criou a expressão “síndrome de vira-lata” para se referir ao sentimento de inferioridade que abatia os jogadores brasileiros em confrontos internacionais, só superado depois da conquista do primeiro título mundial, em 1958, na Suécia. Com o tempo, a expressão ultrapassou as quatro linhas do gramado e passou a ser empregada para designar uma descrença atávica na possibilidade de o País realizar grandes feitos em outros campos da atividade humana.

No polo oposto da síndrome de vira-lata surgiu a mania do “Brasil potência”, resultado do cruzamento do nativismo romântico (“gigante pela própria natureza”) com o nacionalismo autoritário (“ninguém segura este país”). Ao longo dos últimos 40 anos, pelo menos, oscilamos entre um extremo e outro da autoestima nacional, numa ciclotimia que produziu um enorme desperdício de recursos produtivos, ambientais e financeiros.

É verdade que o primeiro laivo de “Brasil potência” apareceu com os “50 anos em 5” de Juscelino Kubitschek. No entanto, apesar da expansão monetária excessiva e da inflação acelerada, JK deixou sua marca de político democrata, presidente “bossa nova”, símbolo de um Brasil criativo e conectado ao mundo.

O auge do ufanismo do “Brasil potência” deu-se na ditadura militar, a partir do chamado “milagre brasileiro”, período, entre 1968 e 1973, em que o produto interno bruto (PIB) cresceu à média de 10% ao ano, mas a renda se concentrou como nunca antes, em meio à mais dura repressão política. Houve progresso material, sim, mas social e regionalmente mal dividido e ambientalmente custoso, pelo inchaço das grandes cidades e pela ocupação desordenada da Amazônia. Pior, a censura e a tortura tornaram-se políticas de Estado.

Para dar sobrevida ao “milagre”, quando as condições internas e, sobretudo, as externas não mais o permitiam, o Brasil redobrou a aposta no projeto do país potência. Diante do primeiro “choque do petróleo”, mergulhamos na ilusão de que éramos “uma ilha de prosperidade num mundo em crise”. A prosperidade viria de um grande programa de investimentos estatais financiado pelos petrodólares reciclados nos bancos internacionais. A ilusão, como sempre, terminou mal: o endividamento temerário na segunda metade dos anos 70 levou-nos à crise da dívida externa e à inflação alta, crônica e crescente nos anos 80.

Em uma década perdida do ponto de vista econômico, só não afundamos em mais uma fase aguda da “síndrome de vira-lata” porque a força de uma nova sociedade civil e a sabedoria de líderes políticos produziram o fim da ditadura militar e a transição para a democracia. Apesar de seus equívocos, a Constituição de 1988 condensou as aspirações de um País democrático e mais justo. Se as liberdades civis e políticas logo se fizeram sentir em sua plenitude, os avanços sociais e econômicos só puderam passar a ocorrer de fato depois que o Plano Real pôs fim à super-inflação e as reformas subsequentes modernizaram parcialmente o Estado e a economia.

Parecíamos inaugurar uma nova fase, assentada na ideia de que o progresso de um país depende fundamentalmente do contínuo aperfeiçoamento de suas instituições, da melhoria da eficiência e eficácia das ações do governo, notadamente na área social, da previsibilidade e transparência de suas ações, da regulação adequada do setor privado, da manutenção de uma inflação baixa e de contas públicas sob controle. Muito bem feita a transição de poder de Fernando Henrique Cardoso para Lula, o primeiro governo do líder petista nos deu a impressão de que a ciclotimia do passado era página virada.

Mas eis que os ganhos obtidos com a condução prudente da política econômica, o boom das commodities, a “descoberta” do pré-sal, os bons resultados da resposta inicial à crise financeira global em 2008, a badalação internacional de mercados e governos em torno do Brasil e do presidente Lula, o apetite do PT por permanecer no poder, tudo isso se somou para atiçar o imaginário do Brasil potência, não apenas econômica, mas agora também geopolítica, com projeção de poder militar, sob a égide de um capitalismo de Estado socialmente includente e o comando de um partido hegemônico cujo líder maior era considerado “o cara” pelos grandes do mundo.

Embalados em certo delírio de grandeza, chegamos à crise atual. Que a estejamos atravessando dentro da normalidade institucional e com avanços no combate democrático à corrupção é motivo para não recairmos em mais uma fase aguda da “síndrome de vira-lata”. Mas não basta.

Está mais do que na hora de encontrarmos um ponto de equilíbrio mais estável e de definirmos melhor o tamanho e, sobretudo, a natureza das nossas aspirações como país. Não se trata apenas de melhor adequar meios e fins ao longo do tempo, reconhecendo que os meios são finitos e a vontade política não tem o condão de expandi-los da noite para o dia, mas também de discutir os próprios fins.

Para construir uma boa sociedade, coisa bem diferente de um país potência, o que é prioritário: erguer refinarias de petróleo e dispor de submarinos a propulsão nuclear ou aumentar a cobertura do saneamento básico e melhorar a qualidade da educação? Para melhorar a educação, o que é preferível: aumentar o investimento e o subsídio na educação superior ou fortalecer a educação básica? E para melhorar a qualidade da educação básica: é mais importante edificar escolas ou investir na formação dos professores?

Na resposta a essas perguntas devemos lembrar-nos de que a potência de um país consiste na capacidade dos seus cidadãos para desenvolver, por competição e cooperação, o máximo de seu potencial individual e coletivo para a criação de riquezas em sentido amplo. Como no futebol, o Brasil deve aspirar ao jogo competitivo e eficiente, mas também ao jogo bonito, a exemplo do que fizemos pela primeira vez em 1958, na Suécia.

Sergio Fausto

Escola deve ser sem partido, mas também sem Igreja

Lula emerge como herói do povo em livros didáticos de diversos autores – e já se editam os que narram o impeachment de Dilma como um "golpe das elites". Sobram livros escolares que encontraram na Cuba castrista o paraíso terreno. Numa questão do Enem, aparece uma justificação "moral" para o terror jihadista. Textos pedagógicos pregam a censura à imprensa, na forma ritualizada do "controle social da mídia". A linguagem sectária do racialismo perpassa inúmeros materiais escolares. Livros e textos destinados a jovens estudantes apresentam a família nuclear como ferramenta de opressão da mulher. Na versão original das bases curriculares do MEC, abolia-se o ensino da história "ocidental". A marcha dos militantes políticos sobre a escola produziu, como contraponto, o movimento Escola Sem Partido. Contudo, as aparências (e os nomes) enganam: nesse caso, o antídoto é, ele também, um veneno.

O Escola Sem Partido patrocina um projeto de lei destinado a afixar nas escolas um cartaz com os "deveres do professor" que protegeria os estudantes da doutrinação ideológica e da propaganda partidária. Por si mesma, a ideia de uma intervenção estatal explícita, ameaçadora, contaminaria as relações entre alunos e professores no ambiente escolar. Dos seis itens do cartaz, quatro parecem óbvios a mentes não hipnotizadas pelo espírito doutrinário –mas, efetivamente, abrem espaço para infinitas interpretações subjetivas. Nos dois outros, revela-se um projeto tão nocivo quanto o dos militantes políticos das mil e uma causas.

O item quatro determina que, "ao tratar de questões políticas, socioculturais e econômicas", o professor exibirá, "com a mesma seriedade", as "versões concorrentes". Há, aí, sobretudo, uma incompreensão da natureza do processo de ensino e aprendizagem. Embora a polêmica sobre valores tenha seu lugar na sala de aula, a escola não existe para cotejar as contraditórias "respostas certas" a temas desse tipo. Substituir a "verdade" autoritária do doutrinador pelo "Fla-Flu ideológico" pode até funcionar na imprensa pluralista, mas nada resolve no campo da educação. De fato, a missão do professor é ensinar a formular as perguntas pertinentes –isto é, a inscrever os dilemas humanos nos contextos históricos e sociais apropriados.

Isso não é tudo. O que significa cotejar versões quando se trata de uma "questão sociocultural" como a teoria da evolução? Na esfera da ciência, nem tudo é polêmica. Será que o Escola Sem Partido almeja que se ensine, "com a mesma seriedade", a "versão concorrente" que é o criacionismo?

O véu cai quando se examina o item cinco. De acordo com ele, "o professor respeitará o direito dos pais a que seus filhos recebam a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções". Como "os pais" formam um universo muito heterogêneo, a regra proporcionaria um "direito de veto" à família mais tradicionalista. Na prática (oh, surpresa!), o padre ou pastor locais exerceriam um poder censório absoluto sobre os professores, subordinando a escola aos mais rudimentares anacronismos e preconceitos.

Na democracia e na república laica, o compromisso essencial da escola não é com os chamados "valores da família", mas com o direito dos alunos à cidadania. O alicerce de princípios da escola são os direitos humanos universais, inscritos na Declaração de 1948, que inspiram as constituições democráticas. A igualdade de direitos entre homens e mulheres, o respeito a diferentes orientações sexuais, o repúdio a preconceitos raciais e a proteção de minorias religiosas não devem ser descritos como "doutrinação ideológica" –e não são artigos negociáveis no balcão das "convicções dos pais".

Previsivelmente, a fúria dos militantes políticos irriga as sementes de uma fúria simétrica. Escola Sem Partido, sim. Mas, ao mesmo tempo, Escola Sem Igreja.

O PT e a crise da esquerda

O declínio do PT aponta para uma trajetória em direção à esquerda do arco ideológico, onde espera um convívio com movimentos sociais de viés radical. Continuará a proximidade com sua tradicional base de trabalhadores, principalmente de contingentes das frentes metalúrgica e bancária. Trata-se da estratégia de sobrevivência. Na busca do traçado que marcou sua origem, procurará também o apoio de parcelas da intelectualidade, remanescentes dos tempos pré-Muro de Berlim, que continuam a acreditar na luta de classes, a condenar o neoliberalismo e a elevar aos céus da América Latina a bandeira bolivarianista. Quem desbravará essa tortuosa trilha será ele mesmo, Luis Inácio, o ícone do petismo, agora com a missão de juntar alas divididas que querelam pelo domínio do poder no partido que, há três décadas, despontava como referência ética da política. 


O primeiro obstáculo de Lula será a ocupação de espaço no arco ideológico. Na extremidade esquerda, o PT haverá de deparar com nichos ocupados por entes como PSOL e PSTU. O primeiro quer se firmar como opção da esquerda, contando com a contundência de perfis como o de Ivan Valente e a verve do carioca Chico Alencar. Que matiz o PT defenderá para se distinguir? Mais à direita dessa esquerda, esbarrará no PC do B, cujo ideario tem se diluído, eis que sua representação é difusa (e confusa), como denotam os discursos da senadora amazonense Vanessa Grazziotin e do nacionalista ex-ministro da Defesa Aldo Rebello. O que distinguiria o PT desses protagonistas?

Perdendo charme

O fato é que a esquerda tem se tornado um verbete que funciona mais como graxa para lustrar a cara de figuras que não adentraram as largas vias do século XXI. Perde charme, enquanto a direita engrossa suas fileiras. Patrocina com reservas o socialismo marxista, inspirado na análise do velho Karl Marx sobre a formação do capitalismo e a previsão de sua catastrófica evolução. A “violência como parteira da História”, dogma apregoado por Engels e que se firmou na segunda metade do século 19, até que tentou fa­zer escola entre nós nos idos de 1960. Foi repelida pela ditadura militar. A redemocratização do País abriu espaço para outros espaços no arco ideológico. Formou-se um novo território para acomodar as estacas do alquebrado socialismo revolucionário e os ti­jolos do liberalismo político e econômico.

Os novos partidos de esquerda afastaram jargões carcomidos, como exploração capitalista, Estado burguês, classe dominante, submissão a interesses do capital financeiro. Uma nova teia passou a ser costurada com a agulha de programas de distribuição de renda e uma equação que conjuga as bases de Estado mínimo e Estado máximo. O socialismo clássico alterou sua fisionomia para juntar posições até então inconciliáveis, gerando novos conceitos como “capitalismo de face humana” e “socialismo de feição liberal”. Batizou-se essa combinação de social-democracia. Que aportou no Brasil em fins dos anos 1980, ganhando do PSDB densa interpretação, como se vê no texto Os desafios do Brasil, que engloba abordagens sobre as crises da contemporaneidade, a textura da demo­cracia social na Europa, as estratégias de crescimento e as políticas para o desenvolvimento.

Emergia a receita do Estado de bem-estar social (base­ado na universalização dos direitos sociais e laborais e financiado com políticas fiscais progressistas), com o aumento da capacidade aquisitiva da população. Essa meta tinha como alavanca o aumento dos rendi­mentos do trabalho e a intervenção do Estado nas frentes de gastos e regulação de atividades-chave para a expansão econômica. A partir dos anos 70 a 80 os partidos social-democratas incorpo­raram princípios neoliberais, impregnando a ideologia dominante da União Europeia. A doutrina ganhou no­vos contornos na esteira da globalização. As siglas mudaram, trans­formando bases eleitorais (categorias trabalhadoras) em classes médias, mais conservadoras e com certo acesso ao capital financeiro.

Social-democracia

No Brasil, por tentativa e erro, nosso arremedo social-democrata adentrou no terceiro milênio, ganhou o centro do po­der, sendo acusado de se curvar ao Consenso de Washington. A crítica saiu da artilharia do próprio PT e pequenos satélites. Deu certo. De tanto bater, as “esquerdas” alcançaram a alforria e tomaram assento no Palácio do Planal­to. E o que ocorreu? As linhas gerais da tal política neoliberal foram preservadas e recriadas, agora com nova roupagem de traços nacionalistas. Luiz Inácio, mesmo jorrando um verbo duro contra a crueldade neocapitalista, acolhia a banca e os vetores do mercado. Na expressão de palanque, o appartheid social foi uma constante: nós e eles. A luta de classes emergia na expressão escandida com suor e ódio. Coisa de palanque.

Até que emergiu das sombras o fantasma do “mensalão”. A casa desmoronou. As últimas pilastras leninistas-marxistas “foram pro brejo”. Bandeiras da esquerda, do centro e da direita, todas juntas, sujaram-se no pântano. Os intelectuais que ainda brandiam a foice e o martelo tiveram de recolher suas armas. Uns poucos continuaram a berrar. Sindicalistas, atrelados ao Estado, buscaram nova modelagem para sua ação, entoando o refrão de defesa de conquistas trabalhistas. Qual a cor da esquerda no meio do la­maçal? O vermelho ficou sujo. Sobraram indistintos traços de uma ou outra sigla nanica de entonação trotskista. O velho PC do B tem dificuldade de se posicionar no olimpo da esquerda. As siglas afundaram na lama.

Ao mensalão, seguiu-se o petrolão, este com formação de tsunami. Jogado de um lado para outro por suas ondas, o PT vai tentar achar um rumo. Lula será o condutor desta empreitada. A ele, a missão de encontrar a tábua do náufrago. E, claro, sair-se bem dos dutos da Lava Jato. Dará certo?

Imagem do Dia

PT tenta aprender o ofício do oposicionismo

Com início marcado para 25 de agosto, a deposição de Dilma Rousseff tornou-se um mal necessário até para o Partido dos Trabalhadores. É crescente o número de petistas que, em privado, reconhecem que Dilma virou um fardo pesado demais para ser carregado até 2018. Paradoxalmente, constatam que há males que vêm para pior. O PT havia se equipado para desfrutar dos confortos do poder ininterrupto por pelo menos 16 anos. Agora, sofre para reaprender a fazer oposição.

Desde a sua fundação, há 36 anos, o PT é uma congregação monoteísta. Lula, o fundador, jamais admitiu o culto a outro deus. Em termos doutrinários, o PT construiu durante sua existência oposicionista uma pregação escorada na ética. Dessacralizado pela Lava Jato, Lula está prestes a ser denunciado pela força-tarefa de Curitiba. Os procuradores convenceram-se de que foi com o seu permanente beneplácito que o PT se converteu de templo da moralidade em centro de coleta de fundos ilícitos.

Assim, o PT toma o caminho de volta para a oposição diante de uma conjuntura que expõe os pés de barro de sua divindade e sonega à legenda o papel que ela melhor desempenhava quando era estilingue. O PT já não pode jogar pedras nos telhados de vidro dos outros sem parecer ridículo. Metidos em roupas de vidro, seus líderes apenas ecoam o Lula de 2005, pós-mensalão: “O que o PT fez é o que é feito no Brasil sistematicamente.”

Lula passou novamente por Brasília na semana passada. Dessa vez, seus devotos abstiveram-se trombetear a lorota segundo a qual ele voara à Capital para socorrer Dilma. Queria salvar a si próprio. Em reunião com congressistas do PT, aconselhou-os a apertar os cintos, porque o partido está pousando na sua nova realidade. Encomendou a defesa do seu legado. É como se não tivesse percebido que a ruína de Dilma aniquilou o Brasil grande do pré-sal e do pleno emprego.

O PT busca o que os devotos de Lula chamam de “narrativa” para o pós-impeachment. Algo que permita ao partido reconstruir o seu discurso. O problema é que Dilma amou tanto o caos —e foi tão correspondida— que o discurso do “golpe” perdeu a funcionalidade. Lula, Dilma e o PT já não conseguem culpar os outros pelos erros que cometeram. Seus herois estão presos em Curitiba. E o marqueteiro João Santana, mestre na composição das narrativas do PT, reivindica agora o papel de delator. Ajudará a empurrar Dilma para dentro do petrolão.

Devolvido à oposição por sua ambição desmedida, o PT terá de descer do sonho do poder hegemônico para o pesadelo da impotência minoritária. Enfrentará certa dificuldades para se opor às propostas de Michel Temer, já que o ajuste fiscal havia sido assumido por Dilma como uma prioridade retórica. Madame defendeu da reforma da Previdência à recriação da CPMF.

No mais, o petismo terá de incluir em sua narrativa um lote de explicações sobre os confortos de Lula. Os brasileiros estão curiosos para saber como um certo homem, confundido com o homem certo, apropriou-se de um cobiçado imóvel, tomando um dado sítio por um sítio dado.

Confesso

O padre disse que não era para fazer, mas não só eu fiz, como desconfiava que ele também fazia. Roubei marzipã da loja sem saber o que era, para depois descobrir que não gosto de marzipã nem levo jeito para o crime.

Não matei passarinho com estilingue – não por bondade, porque era míope feito uma porta e ruim de pontaria. A campanha dizia para não dirigir depois de beber e não lembro qual das duas coisas fiz primeiro. O suco estava vencido e eu o servi às visitas. Só respeitei o limite de velocidade perto do radar.

Fiz piada com gago e fanho e, quando não fui eu, dei a risada mais alta. O prefeito mandou economizar água e levei meia hora no banho para melhorar da ressaca. Minha filha pediu minha opinião e eu não tinha nenhuma. Comecei a gostar de Português porque a professora sorria com todos os predicados. O médico pediu para evitar queijo e comi até com banana.

Ensaiei o que dizer trinta dias e noventa noites e, quando foi preciso, fiquei mudo. As tábuas da lei mandavam não cobiçar a mulher do próximo e, sinceramente, achei exagero – só olhar, admirar, ô gente, que mal tem? Gaguejei feio na apresentação e me despediram por justa causa.

Deixei para a última hora, não contei a verdadeira história, não medi as consequências nem cedi o lugar no metrô ao idoso. Não me comovi com o malabarista no sinal, não achei Maceió essa coisa toda, não dei os 10% ao garçom (ele mereceu, ou melhor, não mereceu). Não marquei o gol feito por displicência e afundei o time.

Reconheço que umas vezes gostei de quem não podia e não devia – o verbo me é incerto, talvez tenha sobrado um pouco da tontura.

Vi o holerite do colega escondido para descobrir quanto ele ganhava e se era mais do que eu. Fiquei contando os lustres nas paredes no discurso de formatura. Peidei disfarçando no elevador e olhei indignado para o moleque ao lado, que era inocente. Uma vez fiquei na dúvida se aquilo era amizade ou coisa maior, tinha uns olhares.

Já me disse doente para escapar de prova, de encontro, de reunião. Menino, ajudei a vizinha a subir as compras com um olho nela, outro na melancia. Nunca decorei como é quinhentos em algarismos romanos, nem entendi para que serve saber isso a não ser nas palavras cruzadas. Tive vergonha da inocência de um amigo e vejo hoje que o ridículo era eu.

O síndico proibiu a gente de jogar bola e esvaziamos todos os extintores em represália. Recusei emprego por preguiça e ser par de valsa de debutante por vergonha. Chamei de canastrão o ator sem ter assistido ao filme. Criei campanha beneficente em meu único benefício. Não escondi direito o lança-perfume, a revistinha de sacanagem, essa timidez danada e acabei descoberto.

Confesso que não me confesso desde que os pecados eram inocentes.

De tudo sinto orgulho e durmo feito um bebê.

Procura-se desesperadamente a direita (ou a esquerda) na política brasileira

O exemplo clássico de que na política brasileira não existe mais esquerda ou direita (e toda a papagaiada que as acompanha) pode ser demonstrado pela politicalha de São Paulo. Pedestramente falando, como diz o comentarista Mário Assis Causanilhas, vamos fazer uma salada russa para que se consiga ver que ponto chegou a política brasileira, em que a ideologia é apenas um detalhe.

Dona Marta Suplicy fez carreira no PT, hoje navega no PMDB, atolado até o pescoço junto com o PT na Lava-Jato. O vice da Marta, Andrea Matarazzo, seu contra-parente, já foi do PSDB e está agora no partido incolor do Gilberto Kassab, o PSD.

O ex-tucano Andrea Matarazzo reclama que a Ca$a Grande tenta apoiado a candidatura do famoso milionário maçônico João Dória, que nas horas vagas faz bico de apresentador na TV dos Sayads.

Pior foi outro companheIro de PSDB, o ex-comunista-marxista-leninista Alberto Goldman, agora um guerreiro neoliberal, mas que adora meter a mão nas tetas públicas (coitado do Metrô de SP). Goldman ficou muito nervoso, chegou a bater o martelo e a foice na mesa, devido à indicação pela Ca$a Grande do milionário João Dória. E como faz parte da ala do José Serra, também declarou que vai votar na Marta por causa do seu parceiro Andrea Matarazzo.
Dona Luiza Erundina foi do PT, da ala mais radical do partido, depois foi chorar suas mágoas troktistas no PSB, neste partido que hoje abriga “esquerdas”, “direitas”, “liberais” e “ladrões do dinheiro público”, mas deu as costas, saiu e nem fechou a porta, desembarcou de mala e cuia no PSOL, hoje candidata a prefeita (de novo) pelo partido..

Fernando Haddad continua do mesmo partido, o PT, candidato a reeleição. Misturando alhos com bugalhos, como vai se defender dos ataques de seu próprio partido?… E entra na disputa com uma novidade. Lançou como vice, nada mais nada menos, um ex-tucaviar do PSDB, Gabriel Chalita, com várias mudanças de partidos (não sabe o que quer). Esteve no PSDB, PSB, PMDB e agora vai de PDT, partido do Brizola.

Celso Russomano é um caso á parte. Era defensor dos fracos e oprimidos consumidores deste país, agora está ao lado de um dos maiores estelionatários e charlatões, o autoproclamado “bispo” Edir Macedo, famoso vendedor de terrenos no céu. Será que Russomano vai defender os consumidores que compraram terrenos no céu por preço maior do que o mercado?

E o João Dória no PSDB? O que é este ser? Dizem que, se for prefeito de são Paulo, vai privatizar tudo, conforme defendem vários comentaristas aqui da Tribuna da internet.

Bem, se alguém viu alguma coisa chamada direita ou esquerda nessa confusão política e eleitoral, faça o favor de nos comunicar.

As faixas e as vaias da discórdia

Mal os brasileiros haviam enxugado lágrimas de emoção verde-amarela pela abertura olímpica que exaltava a tolerância e celebrava “nossas diferenças”, duas polêmicas mostraram que nós não somos bem assim. As faixas políticas e as vaias esportivas revelaram o que já sabemos. Nossas paixões transcendem regras, leis e padrões de conduta. Somos indisciplinados, metidos e provocadores.

Torcedores com faixas e camisetas “Fora, Temer” foram retirados dos estádios por policiais ou ameaçados de prisão por agentes com uniformes camuflados da Força Nacional de Segurança, caso não enrolassem as faixas ou mudassem de camisa. Gritos de “abaixo a ditadura” e “fora, censura” agitaram vídeos nas redes sociais. Ironicamente, a base para a repressão era uma lei sancionada por Dilma Rousseff em 2014, no ano da Copa, e referendada em maio deste ano para a Olimpíada, pouco antes de ela ser afastada.


A lei dizia: “Não utilizar bandeiras para outros fins que não o da manifestação festiva e amigável”. Mas não mencionava política. A partir daí, todas as interpretações são possíveis. “Fora, Temer” é festivo e amigável? “Tchau, querida” é festivo e amigável? Depende do time para o qual você torce. O debate não tem fim entre juristas. Até os ministros do Supremo Tribunal Federal discordam entre si. O STF apoiou a constitucionalidade da lei de 2014, por acreditar que faixas e bandeiras que possam incitar a conflitos não combinam com estádios esportivos.

Só a intolerância, ou a burrice, ou ambas explicam que alguém possa considerar ofensivo um cartaz “Fora, Temer”, ou “Tchau, Dilma”, ou “Adeus, Lula”. Bandeira racista, machista ou xenófoba é claramente um crime contra os direitos humanos e deve ser reprimida. Mas por que raios censurar a manifestação pacífica de um desejo político? Desde quando a paz é ameaçada por algum desses cartazes? Só acho estranho não ter visto nenhuma faixa “Volta, Dilma”. Onde estão os dilmistas? Cadê os que torcem pela volta de Dilma ao Poder?

Parece errado o Comitê Olímpico Internacional ir contra a Constituição de 1988, que diz ser “livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”. Onde está o espírito olímpico, minha gente? O COI se explica. Diz que a regra 50 da Carta Olímpica “tem como objetivo separar esporte de política, honrar o contexto dos Jogos Olímpicos e garantir a reunião pacífica de atletas, dirigentes e espectadores de diferentes culturas, crenças e origens”. Mario Andrada, diretor de comunicação da Rio 2016, explicou o veto aos cartazes. “Queremos arenas limpas.” Mas vaias e gritos políticos estão permitidos. Senão, “metade do Maracanã teria sido esvaziado”.

Não foram só as vaias a Temer na abertura. Mas os urros contra atletas adversários. Tem gente que detesta o exorcismo explícito do torcedor brasileiro. Quem adora são os atletas empurrados pelo amor transbordante e pelos aplausos, a outra face da moeda. Eles se jogam nos braços da torcida, dizem que “nunca viram nada parecido”. A plateia às vezes adota como seu um atleta ou uma equipe de outro país. Nunca da Argentina. Estamos fazendo escola: algumas torcidas estrangeiras, mais frias e educadas, passaram a urrar também, para não ficar para trás no amor a seus atletas.

Não durou muito a repressão oficial às faixas políticas. Um juiz federal, João Augusto Carneiro Araújo, gastou 23 minutos para conceder liminar pedida por uma procuradora da República. E proibiu a proibição à “manifestação pacífica de cunho político” com uso de cartazes, camisetas “e outros meios lícitos nos locais oficiais” da Olimpíada. Quem reprimir pagará multa de R$ 10 mil. O COI prometeu recorrer. Mas melhor cair em si e esquecer o assunto.

Entendo que a finalidade da Olimpíada seja outra. Com o “liberou geral”, há o risco de poluir os estádios e incomodar quem só está a fim de torcer por atletas e medalhas. Em seu perfil no Facebook, o jornalista Rogério Simões postou um comentário que assino embaixo: “Agora vai ter faixa contra o Temer, contra a Dilma, contra o Lula, a favor do Lula, contra o Trump, a favor do Bolsonaro, contra o aquecimento global, contra o aborto, a favor de alguma PEC, contra outra PEC, a favor da pena de morte, contra o doping, a favor da Anitta, contra o Luciano Huck, a favor da bomba atômica, a favor da globalização, contra a globalização, a favor do sertanejo universitário, contra o rock, a favor do heavy metal, a favor das drogas, a favor dos jogos de azar, contra a maconha, a favor de Jesus, contra Jesus, a favor do queijo com goiabada, contra a pizza com ketchup, e todo mundo vai ficar feliz. Mas e a disputa do ouro? Já foi? Putz, perdi...”.

Receita para esquecer Fidel

Ligo o rádio e um locutor declama uma breve manchete: “Fidel Castro, o grande construtor”. O homem explica que as obras mais importantes do país saíram desta cabeça que durante décadas foi coberta por uma boina verde-oliva. Cansada de tanto culto à personalidade, decido ver televisão, mas no canal principal um advogado detalha o legado jurídico do Máximo Líder e, ao terminar o programa, anunciam um documentário sobre “o invencível guerrilheiro”.

Durante semanas, os cubanos vivemos um verdadeiro bombardeio de alusões a Fidel Castro, que foi aumentando à medida que se aproximava a data de seu aniversário de 90 anos, completados neste 13 de agosto. Não há pudor nem semitons nesta avalanche de imagens e de epítetos.


Todo este excesso de homenagens e lembretes se trata, sem dúvida, de uma tentativa desesperada de recuperar do esquecimento o ex-presidente cubano, tirá-lo desta zona de abandono midiático em que caiu desde que anunciou sua saída do poder já há uma década.

Ao homem que nasceu no povoado oriental de Birán, em 1926, fomos deixando no passado, condenando-o ao século XX, enterrando-o em vida.

As crianças que cursam o ensino fundamental nunca viram o outrora loquaz orador discursar por horas num ato público. Os agricultores respiraram aliviados de não terem que receber as constantes recomendações do “agricultor em chefe”, e até as donas de casa agradecem que ele não apareça num congresso da Federação de Mulheres Cubanas (FMC) lhes ensinando a cozinhar com uma panela de pressão.

A propaganda oficial sabe que os povos muitas vezes apelam à memória de curto prazo, como uma forma de se proteger. Para muitos jovens, Fidel Castro resulta já tão remoto como um dia foi para minha mãe o ditador Gerardo Machado, que no começo do século passado marcara tão negativamente a vida da geração de minha avó. Nenhum país pode viver com o olhar fixo num só homem... assim que o desenfoque e a distração se interpuseram entre o ex-primeiro secretário do Partido Comunista e a população da ilha.

Os seguidores de sua figura aproveitam as celebrações por suas nove décadas de vida para tratar de erigir a estátua da imortalidade no coração da nação. Endeusam-no, perdoam seus sistemáticos erros e o convertem na cabeça mais visível de um credo. A nova religião tem como premissa a teimosia, a intolerância ao diferente e um ódio visceral — quase como uma batalha pessoal — contra os Estados Unidos.

Os detratores de “Ele”, como o chamam muitos cubanos, preparam os argumentos para desmontar seu mito. Aguardam o momento em que os livros de História o deixem de comparar com José Martí e façam sobre sua trajetória uma análise crua, fria, objetiva. São esses que sonham com a era pós-Castro, com o fim do fidelismo e com a diatribe que cairá sobre sua controversa figura.

Os demais, porém, simplesmente viram a página e encolhem os ombros em sinal de cansaço quando escutam seu nome. São os que desligam a televisão por estes dias e fixam a vista num dia a dia que nega cada palavra que Fidel Castro tenha dito em seus discursos inflamados, naqueles tempos, quando planejava construir a utopia e fazer de nós homens novos.

Eles, os cansados de sua onipresença, são os que darão o ponto final ao mito. E o farão sem agitação ou atos heroicos. Simplesmente deixarão de falar sobre ele a seus filhos, não colocarão as fotos em que ele é visto com um fuzil e uma dragona nas salas de suas casas, nem nomearão seus netos com as cinco letras de seu nome.

A celebração pelo aniversário de 90 anos de Fidel Castro é na realidade sua despedida: desmesurada e angustiante como foi sua vida política.

Yoani Sánchez