Um ano foi encerrado e outro se inicia sem que tenhamos ao certo uma linha divisória entre um e outro. Talvez por décadas seja esta uma experiência única, pois a sensação do não acabou ainda ou a pergunta de quando esse ano de 2020 vai terminar persistem. A humanidade foi severamente atingida por uma pandemia que segue ceifando vidas, as pessoas, acossadas, não sabem mais como responder. Algumas adotam a atitude de estar cansadas e decidem pela imprudência e pela doença, quiçá a morte, enquanto outras procuram se proteger. Vida e morte se entrelaçam de outra maneira, com esta última avançando.
Sinais de vida são fortalecidos mediante uma frenética e, parece agora, bem-sucedida busca por vacinas. Num esforço global gigantesco, 12 meses foram suficientes para que novas formas de combate à covid-19 fossem descobertas. Sinais de morte também encontraram o seu caminho, com governantes irresponsáveis menosprezando a doença, deixando as pessoas morrerem aos milhares. A irresponsabilidade do governo Bolsonaro é gritante, com 200 mil pessoas nos abandonando definitivamente. Nem numa guerra morrem tantas pessoas e, contudo, nem combatentes temos.
Zeram-se os impostos para importação de armas como se se tratasse de uma prioridade nacional, suponha-se, então, para dar uns tiros no coronavírus. Este, porém, não se deixa abater pelos discursos demagógicos. Quanto mais se atira nele dessa maneira, mais se espraia. No seu íntimo, deve estar rindo de nossos governantes. Os verdadeiros tiros, que seriam uma política responsável de combate à pandemia, encontram-se estranhamente ausentes.
O espetáculo nacional é deprimente! Cenas pelo mundo mostram pessoas sendo vacinadas, enquanto as estatísticas da morte em nosso país só aumentam. Um mínimo de bom senso ensejaria a pergunta: por que pessoas são lá vacinadas, enquanto aqui vivemos de uma verborragia de quinta categoria?
Lá fora, em países minimamente responsáveis, quase em outro planeta, e já se contam às dezenas, as campanhas de vacinação começaram. Não importa que seus governantes sejam de direita ou de esquerda, o que deve ser levado a sério é a vacina e as medidas de precaução no combate à doença. Dizendo uma obviedade: as pessoas lutam pela vida, não fazem encenações macabras, como se morrer por descaso fosse normal.
O presidente Bolsonaro, em seus dois anos de mandato, alinhou-se ao presidente Trump e ao primeiro-ministro Netanyahu. Ora, o que fizeram esses governantes? Lançaram grandes campanhas de vacinação, deram prioridade à vida, tudo fazendo para que as pessoas possam proteger sua saúde. Não lhes importou a origem das vacinas, contanto que deem resultados. Pessoas sendo vacinadas, governantes dando o exemplo, nenhum negacionismo! Será que o nosso presidente não poderia alinhar-se a essas políticas, seguindo-as?
Se continuarmos nesse diapasão, a única imunidade que vamos adquirir será a de rebanho, o que levaria pelo menos mais 12 meses. Será que é isso que merecemos, ser tratados como rebanho? Se isso persistir, talvez nos reste procurar uma sociedade de proteção dos animais!
A situação chega às raias do absurdo. O presidente Bolsonaro e o governador Doria polemizam sobre a eficácia de vacinas pelos meios de comunicação. A luta pela vacina tornou-se uma guerra publicitária, não de saúde! Nem um nem outro seguem os protocolos científicos. Para que se comprove a eficácia de uma vacina, há etapas a serem cumpridas, dentre as quais, ressalte-se, a divulgação do relatório de pesquisa com a conclusão de sua fase 3, a publicação dos resultados por uma revista cientificamente reconhecida, submetida a pares independentes, e a submissão de todos esses documentos a uma agência reguladora.
Foi o feito pela Pfizer/BioNTech e pela Moderna, a partir do que, com segurança, começaram as aplicações. Aqui, no Brasil, a vacina da Sinovac/Butantan não cumpriu ainda esses procedimentos, no entanto, o começo de uma campanha de vacinação já foi anunciado! Na verdade, só tivemos anúncios sendo sistematicamente postergados. Melhor não fazer campanha publicitária nenhuma, pois essa já é suficientemente contraproducente! A AstraZeneca/Fiocruz, embora divulgue com maior rigor os seus resultados, apenas agora conseguiu a sua aprovação na agência inglesa, abrindo caminho para a sua aplicação, após erros metodológicos em sua terceira fase. A Anvisa, até agora, não recebeu a documentação completa dessas respectivas pesquisas. Logo, evidentemente, não pode ser responsabilizada por nenhum atraso. O resto é campanha publicitária e luta política.
Em mudanças de ano, habitualmente desejamos um feliz ano novo, expressando com isto um sentimento de amor e de fraternidade. Uma esperança sempre se faz presente, mesmo em modos aparentemente formais. Há um sincero desejo de que as coisas melhorem, deixando eventuais infortúnios para trás. Que assim seja, e oremos, talvez sem muita confiança, para que nossos governantes tomem juízo! Está difícil...
segunda-feira, 4 de janeiro de 2021
Ano Novo
O futuro já não é o que eraBernard Levin
Nas vésperas de um novo ano, é costume dizermos coisas pias, palavras cheias de esperança, optimismos vazios de conteúdo, coisas, enfim, que as pessoas gostam de ouvir. Mas parece-me que se impõem, desta vez, palavras menos complacentes.
Temos andado a abusar do planeta, como quem se suicida sem dar por isso. O capitalismo selvagem, boçal e criminoso tem-se posto a depredar o planeta, destruindo tudo o que é vital e poluindo tudo o que é essencial à vida.
Acredita-se hoje muito na inteligência infalível de quem sabe enriquecer, mas a verdade é que não há ninguém tão pouco inteligente e tão pouco sábio como, em geral, o milionário. Não é preciso grande inteligência, para se enriquecer – basta ter uma boa dose de falta de escrúpulos – mas é preciso uma enorme sabedoria para que a vida prevaleça na Terra.
A ideia de que um milionário é o ideal condutor de nações ou o ideal conselheiro a ter em conta é um dos preconceitos mais perigosos para a continuação da vida no nosso planeta. Enriquecer a todo o custo, não olhando às consequências, pode levar-nos direitinhos ao apocalipse. O homem que insensatamente acumula biliões, sem olhar ao que isso custa à saúde do planeta, é, frequentemente o maior inimigo da vida, no futuro. O milionário tem pressa, atropela etapas, porque lhe interessa o seu paraíso, no curto período da sua vida, não pensando nas gerações futuras. É um genocida-a-haver. O milionário é, quase sempre, um idiota perigoso e sem visão: só sabe fazer aquela coisa pequenina que é ganhar muito dinheiro.
Precisamos, todos, de encontrar uma visão nova e lúcida e não egoísta, com vista a um futuro diferente, em que vivamos com mais sabedoria e menos pompa (para alguns). O grande escritor inglês, G. K. Chesterton, criador desse personagem inesquecível de candura e perspicácia, que foi o Padre Brown, deixou-nos esta pérola de sabedoria, que vale bem mais do que um milhão de milionários boçais: “O objectivo de um ano novo não é termos um ano novo. É termos uma alma nova.”
Se quisermos que o futuro volte a ter futuro, tenhamos a coragem de mudar radicalmente de vida e de aprender a andar mais devagar e com mais ponderação. O sábio Buda deixou-nos uma pequena folha do seu livro de sabedoria, quando disse: “Não importa o quanto tu vás devagar, desde que não pares.” Não estar parado é uma virtude. Desatar a correr, atropelando tudo no caminho, é um crime.
Eugénio Lisboa, dezembro de 2020
Acredita-se hoje muito na inteligência infalível de quem sabe enriquecer, mas a verdade é que não há ninguém tão pouco inteligente e tão pouco sábio como, em geral, o milionário. Não é preciso grande inteligência, para se enriquecer – basta ter uma boa dose de falta de escrúpulos – mas é preciso uma enorme sabedoria para que a vida prevaleça na Terra.
A ideia de que um milionário é o ideal condutor de nações ou o ideal conselheiro a ter em conta é um dos preconceitos mais perigosos para a continuação da vida no nosso planeta. Enriquecer a todo o custo, não olhando às consequências, pode levar-nos direitinhos ao apocalipse. O homem que insensatamente acumula biliões, sem olhar ao que isso custa à saúde do planeta, é, frequentemente o maior inimigo da vida, no futuro. O milionário tem pressa, atropela etapas, porque lhe interessa o seu paraíso, no curto período da sua vida, não pensando nas gerações futuras. É um genocida-a-haver. O milionário é, quase sempre, um idiota perigoso e sem visão: só sabe fazer aquela coisa pequenina que é ganhar muito dinheiro.
Precisamos, todos, de encontrar uma visão nova e lúcida e não egoísta, com vista a um futuro diferente, em que vivamos com mais sabedoria e menos pompa (para alguns). O grande escritor inglês, G. K. Chesterton, criador desse personagem inesquecível de candura e perspicácia, que foi o Padre Brown, deixou-nos esta pérola de sabedoria, que vale bem mais do que um milhão de milionários boçais: “O objectivo de um ano novo não é termos um ano novo. É termos uma alma nova.”
Se quisermos que o futuro volte a ter futuro, tenhamos a coragem de mudar radicalmente de vida e de aprender a andar mais devagar e com mais ponderação. O sábio Buda deixou-nos uma pequena folha do seu livro de sabedoria, quando disse: “Não importa o quanto tu vás devagar, desde que não pares.” Não estar parado é uma virtude. Desatar a correr, atropelando tudo no caminho, é um crime.
Eugénio Lisboa, dezembro de 2020
A esperança é teimosa
Pela primeira vez em tantos anos, não molhei os pés no mar. Vi entrar o ano sem fogos de artifício, sem as lágrimas de ouro que caem do céu de Copacabana. A Floresta da Tijuca é assim, silêncio e mistério. Como o ano que se anuncia. Tanto silêncio e mistério nas coisas e nas pessoas.
No mundo, milhões já foram vacinados, e em breve — prioridade máxima — chegará a vez dos brasileiros. Vacinados, ainda teremos diante de nós um inventário de perdas: pessoas amadas, empregos, gente alegre que se fez amarga.
O mesmo presidente, cada dia mais cruel e pernicioso, que aplaude a tortura e debocha da pandemia, um sádico que se compraz com a dor e a morte. E a incompetência que fez e fará milhares de vítimas, se continuar sua tarefa de destruição.
No mundo, milhões já foram vacinados, e em breve — prioridade máxima — chegará a vez dos brasileiros. Vacinados, ainda teremos diante de nós um inventário de perdas: pessoas amadas, empregos, gente alegre que se fez amarga.
O mesmo presidente, cada dia mais cruel e pernicioso, que aplaude a tortura e debocha da pandemia, um sádico que se compraz com a dor e a morte. E a incompetência que fez e fará milhares de vítimas, se continuar sua tarefa de destruição.
Os mesmos maridos assassinos que se multiplicam e, com facadas ou tiros, sempre miram no rosto. Preferem os domingos e feriados para melhor odiar à morte suas mulheres. Foram seis só no Natal. A pandemia não mata só com o vírus. Isoladas, as mulheres ficam entregues a esses monstros.
A mesma pobreza trágica e suas causas perversas, a indiferença, a roubalheira e o racismo.
Tudo isso é real, mas não é toda a realidade.
Os que sobrevivermos ao maior massacre de nossa história, terá sido para fazer alguma coisa que preste neste ano que chega. É o que devemos aos mortos.
Fazer da saúde pública uma prioridade estratégica na luta contra a desigualdade e a pobreza, dever do governo e responsabilidade de todos, inclusive com a solidariedade de recursos privados.
Defender sem concessões a civilização, combatendo dia a dia o aviltamento das mulheres — e viva as argentinas —, dos negros e das minorias.
Construir uma frente democrática que olhe para o futuro e nos prepare para ganhar a eleição de 2022 com a energia de que precisaremos para reconstruir o Brasil.
A esperança é teimosa. Sem ela, ninguém se move.
Nas pessoas de duas mulheres combatentes vitoriosas em tempos de pandemia, Margareth Dalcolmo e Nísia Trindade, desejo a todos um Ano Novo mais feliz.
A mesma pobreza trágica e suas causas perversas, a indiferença, a roubalheira e o racismo.
Tudo isso é real, mas não é toda a realidade.
Os que sobrevivermos ao maior massacre de nossa história, terá sido para fazer alguma coisa que preste neste ano que chega. É o que devemos aos mortos.
Fazer da saúde pública uma prioridade estratégica na luta contra a desigualdade e a pobreza, dever do governo e responsabilidade de todos, inclusive com a solidariedade de recursos privados.
Defender sem concessões a civilização, combatendo dia a dia o aviltamento das mulheres — e viva as argentinas —, dos negros e das minorias.
Construir uma frente democrática que olhe para o futuro e nos prepare para ganhar a eleição de 2022 com a energia de que precisaremos para reconstruir o Brasil.
A esperança é teimosa. Sem ela, ninguém se move.
Nas pessoas de duas mulheres combatentes vitoriosas em tempos de pandemia, Margareth Dalcolmo e Nísia Trindade, desejo a todos um Ano Novo mais feliz.
Na marca do pênalti
Bolsonaro fez parte de um seleto grupo de estadistas que negaram a pandemia. Em seguida, foi o único no mundo, ressalta o jornal “Le Figaro”, que se colocou negativamente diante da vacinação.
Ele foi escolhido como o pior corrupto do ano, pelo Organized Crime and Corruption Reporting Project. Coisa de comunistas? Os escolhidos anteriormente foram Putin, Maduro e Duterte.
Bolsonaro chegou ao fim de 2020 com 24 pedidos de impeachment acumulados na gaveta. Alguns comentaristas acham que ele zombou da tortura em Dilma Rousseff para desviar a atenção de seu fracasso diante da pandemia.
Mas é uma tática estúpida. Não se disfarça a morte com cheiro de morte, muito menos se esconde a desumanidade contra muitos, concentrando-a numa só pessoa.
O conjunto de declarações de Bolsonaro está registrado. Uma pandemia com quase 200 mil mortos não desaparece na história como um relâmpago no céu.
Ele contribuiu para que uma parte do povo brasileiro desafiasse o perigo da pandemia e colocasse em risco a própria vida e a dos outros.
Bolsonaro ignorou os apelos para que o Estado protegesse as populações indígenas. Por duas vezes, o STF devolveu ao governo a lição de casa que não consegue realizar: um plano eficaz para protegê-las.
No governo, Bolsonaro aumentou a destruição da Amazônia, queimou um terço do Pantanal, e o Cerrado perdeu 13 % de sua vegetação. No seu prontuário, não pesam apenas vidas humanas, mas espécies animais, plantas, enfim, todos os componentes da riqueza do Brasil.
Sua política arruína as chances de nos apresentarmos como uma potência ambiental, atraindo energias, capitais, poderosos governos, todos ansiosos por trabalhar conosco numa nova etapa da luta mundial pela sobrevivência das novas gerações.
Ele foi escolhido como o pior corrupto do ano, pelo Organized Crime and Corruption Reporting Project. Coisa de comunistas? Os escolhidos anteriormente foram Putin, Maduro e Duterte.
Bolsonaro chegou ao fim de 2020 com 24 pedidos de impeachment acumulados na gaveta. Alguns comentaristas acham que ele zombou da tortura em Dilma Rousseff para desviar a atenção de seu fracasso diante da pandemia.
Mas é uma tática estúpida. Não se disfarça a morte com cheiro de morte, muito menos se esconde a desumanidade contra muitos, concentrando-a numa só pessoa.
O conjunto de declarações de Bolsonaro está registrado. Uma pandemia com quase 200 mil mortos não desaparece na história como um relâmpago no céu.
Ele contribuiu para que uma parte do povo brasileiro desafiasse o perigo da pandemia e colocasse em risco a própria vida e a dos outros.
Bolsonaro ignorou os apelos para que o Estado protegesse as populações indígenas. Por duas vezes, o STF devolveu ao governo a lição de casa que não consegue realizar: um plano eficaz para protegê-las.
No governo, Bolsonaro aumentou a destruição da Amazônia, queimou um terço do Pantanal, e o Cerrado perdeu 13 % de sua vegetação. No seu prontuário, não pesam apenas vidas humanas, mas espécies animais, plantas, enfim, todos os componentes da riqueza do Brasil.
Sua política arruína as chances de nos apresentarmos como uma potência ambiental, atraindo energias, capitais, poderosos governos, todos ansiosos por trabalhar conosco numa nova etapa da luta mundial pela sobrevivência das novas gerações.
Numa das suas últimas lives, Bolsonaro afirmou que não seria retirado da Presidência sem um motivo justo. Ninguém faria isso. Mas a situação muda de figura quando se consideram 200 mil mortes diante de um governo negacionista. Se isso não for um motivo justo para milhares de famílias que perderam seus entes queridos, o que será?
O auxílio emergencial aprovado pelo Congresso atenuou o impacto da posição inicial na imagem de Bolsonaro. A má vontade com a vacina atualizou sua culpa.
O general Pazuello tem responsabilidade, mas obedece a Bolsonaro. Só é formalmente um Sancho Pança.
Sancho seguia Dom Quixote, um símbolo permanente da humanidade. Assim mesmo, era capaz de alertar: olha mestre, olha o que senhor está falando.
Juntos, capitão e general arrastaram as Forças Armadas para uma política que nega sua proximidade com a ciência, lança dúvida sobre sua capacidade e chega a nos fazer duvidar dos critérios que levam alguém ao generalato.
A aventura da hidroxicloroquina, justificada pelo Exército como um conforto à população assustada, é um argumento religioso. Remédios são feitos para curar.
A pandemia revelou o abismo da desigualdade social. Entramos em 2021 sem resposta para milhares de pessoas necessitadas. Não só estamos longe de um contrato social, mas sendo cada vez mais empurrados para a barbárie.
Bolsonaro é a barbárie de que o capitalismo escapou no século passado, com a ajuda da social-democracia e de políticas sociais. E de que a globalização procura escapar, no século XXI, com as diretivas de governança sustentável e socialmente responsável.
No seu governo, vigora a tese de que o homem é o lobo do homem, de que os fortes sobrevivem de armas na mão. Não há chances de construir um país com essas ideias. A esperança em 2021 passa por nos livrarmos desse pesadelo, em condições ainda difíceis de movimento e contato físico.
Quando os valores humanos são negados tão radicalmente por um líder e seus fiéis que riem da tortura, é fácil compreender que a luta não é apenas por um país, mas pela sobrevivência da espécie.
No Brasil, a humanidade está em jogo. Muitos já compreendem, mesmo vivendo fora daqui, o potencial destrutivo dessa ameaça.
O auxílio emergencial aprovado pelo Congresso atenuou o impacto da posição inicial na imagem de Bolsonaro. A má vontade com a vacina atualizou sua culpa.
O general Pazuello tem responsabilidade, mas obedece a Bolsonaro. Só é formalmente um Sancho Pança.
Sancho seguia Dom Quixote, um símbolo permanente da humanidade. Assim mesmo, era capaz de alertar: olha mestre, olha o que senhor está falando.
Juntos, capitão e general arrastaram as Forças Armadas para uma política que nega sua proximidade com a ciência, lança dúvida sobre sua capacidade e chega a nos fazer duvidar dos critérios que levam alguém ao generalato.
A aventura da hidroxicloroquina, justificada pelo Exército como um conforto à população assustada, é um argumento religioso. Remédios são feitos para curar.
A pandemia revelou o abismo da desigualdade social. Entramos em 2021 sem resposta para milhares de pessoas necessitadas. Não só estamos longe de um contrato social, mas sendo cada vez mais empurrados para a barbárie.
Bolsonaro é a barbárie de que o capitalismo escapou no século passado, com a ajuda da social-democracia e de políticas sociais. E de que a globalização procura escapar, no século XXI, com as diretivas de governança sustentável e socialmente responsável.
No seu governo, vigora a tese de que o homem é o lobo do homem, de que os fortes sobrevivem de armas na mão. Não há chances de construir um país com essas ideias. A esperança em 2021 passa por nos livrarmos desse pesadelo, em condições ainda difíceis de movimento e contato físico.
Quando os valores humanos são negados tão radicalmente por um líder e seus fiéis que riem da tortura, é fácil compreender que a luta não é apenas por um país, mas pela sobrevivência da espécie.
No Brasil, a humanidade está em jogo. Muitos já compreendem, mesmo vivendo fora daqui, o potencial destrutivo dessa ameaça.
Ainda faltam 17,5 mil horas
O Brasil conta as horas para o fim do governo de Jair Bolsonaro. A partir de hoje, quando se completa a primeira metade do mandato, faltarão cerca de 17,5 mil – uma eternidade, considerando-se que se trata do pior governo da história nacional.
Se os dois primeiros anos da gestão de Bolsonaro servem de parâmetro para o que nos aguarda na segunda parte do mandato, o Brasil nada pode esperar senão mais obscurantismo, truculência e incapacidade administrativa, pois essa é a natureza de um governo cujo presidente não se elegeu para governar, e sim para destruir.
Não se tem notícia de que alguma das promessas formais de campanha de Bolsonaro tenha sido cumprida. Ele e seu “superministro” da Economia, Paulo Guedes, passaram quase toda a primeira metade do mandato a anunciar privatizações em massa, desenvolvimento econômico, criação de empregos, modernização do Estado e competitividade internacional. A frustração de todos esses retumbantes compromissos levou o ministro Paulo Guedes a anunciar: “Acabou. Não prometo mais nada”.
Se os dois primeiros anos da gestão de Bolsonaro servem de parâmetro para o que nos aguarda na segunda parte do mandato, o Brasil nada pode esperar senão mais obscurantismo, truculência e incapacidade administrativa, pois essa é a natureza de um governo cujo presidente não se elegeu para governar, e sim para destruir.
Não se tem notícia de que alguma das promessas formais de campanha de Bolsonaro tenha sido cumprida. Ele e seu “superministro” da Economia, Paulo Guedes, passaram quase toda a primeira metade do mandato a anunciar privatizações em massa, desenvolvimento econômico, criação de empregos, modernização do Estado e competitividade internacional. A frustração de todos esses retumbantes compromissos levou o ministro Paulo Guedes a anunciar: “Acabou. Não prometo mais nada”.
Também as alardeadas reformas foram ou esquecidas ou sabotadas por Bolsonaro justamente na época mais propícia para sua aprovação. Somente a reforma da Previdência foi aprovada, mas como resultado do esforço da liderança do Congresso, muitas vezes à revelia do presidente da República.
Será uma surpresa se a pauta de reformas avançar na segunda metade do mandato, em meio ao previsível clima de campanha eleitoral alimentado pelo próprio presidente. Não há motivo para otimismo – e não há porque Bolsonaro não se mostrou competente nem mesmo para encaminhar as pautas ditas “de costumes”, tão caras ao bolsonarismo. Assim, como se vê, o governo do ex-deputado do baixo clero não se define pela capacidade de formular políticas – qualquer uma –, restando-lhe exclusivamente o discurso ideológico.
Nisso, Bolsonaro foi competente. Durante dois longos anos, conseguiu entreter o País com um misto de violência e escárnio pelas instituições, tão ao gosto de uma parcela reacionária da população para a qual a política não presta e democracia equivale a balbúrdia.
Bolsonaro passou a primeira metade de seu mandato a fazer o elogio do homem medíocre, menosprezando a respeitabilidade e rejeitando qualquer autoridade que não fosse a sua. Elevou a crueldade à categoria de virtude, contrariando valores humanitários, considerados hipócritas por ele e seus devotos. Ao fazê-lo, ofereceu a seus ressentidos eleitores a possibilidade excitante de mudar a história por meio do autoritarismo messiânico de seu “mito”.
Como em todo regime autoritário, programas partidários são irrelevantes – e Bolsonaro nem partido tem. O que interessa é a palavra do “mito”, que muda ao sabor das circunstâncias, tornando irrelevante até mesmo a assinatura de Bolsonaro em leis e decretos que ele não se envergonha de renegar ou esquecer quando lhe é conveniente.
Até aqui, Bolsonaro dedicou-se a criar um discurso em que todos são responsáveis pelos problemas, menos ele. E, como se trata de ideologia, pouco importa se o discurso é baseado em falsas premissas, como quando reitera a mentira segundo a qual não tem responsabilidade no combate à pandemia porque o Judiciário a atribuiu a Estados e municípios. O que importa é disseminar a impressão de que não o deixam governar, numa imensa conspiração.
Para que esse discurso funcione, é preciso desqualificar a imprensa profissional, que trabalha para revelar fatos concretos, e valorizar as redes sociais, que criam “fatos” sob encomenda. É o que Bolsonaro faz a todo momento. Nesse ambiente, todo aquele que é capaz de pensar e questionar torna-se automaticamente suspeito. Nada do que a experiência científica oferece é válido, pois tudo o que é preciso saber será revelado pelo “mito”, de acordo com a lógica de suas, digamos, ideias.
Nas 17,5 mil horas desse pesadelo que ainda temos pela frente, é preciso que a sociedade e as instituições democráticas impeçam Bolsonaro de completar sua obra deletéria. Se não se pode esperar que Bolsonaro se emende, ao menos é possível tentar reduzir os danos de sua catastrófica passagem pelo poder.
Será uma surpresa se a pauta de reformas avançar na segunda metade do mandato, em meio ao previsível clima de campanha eleitoral alimentado pelo próprio presidente. Não há motivo para otimismo – e não há porque Bolsonaro não se mostrou competente nem mesmo para encaminhar as pautas ditas “de costumes”, tão caras ao bolsonarismo. Assim, como se vê, o governo do ex-deputado do baixo clero não se define pela capacidade de formular políticas – qualquer uma –, restando-lhe exclusivamente o discurso ideológico.
Nisso, Bolsonaro foi competente. Durante dois longos anos, conseguiu entreter o País com um misto de violência e escárnio pelas instituições, tão ao gosto de uma parcela reacionária da população para a qual a política não presta e democracia equivale a balbúrdia.
Bolsonaro passou a primeira metade de seu mandato a fazer o elogio do homem medíocre, menosprezando a respeitabilidade e rejeitando qualquer autoridade que não fosse a sua. Elevou a crueldade à categoria de virtude, contrariando valores humanitários, considerados hipócritas por ele e seus devotos. Ao fazê-lo, ofereceu a seus ressentidos eleitores a possibilidade excitante de mudar a história por meio do autoritarismo messiânico de seu “mito”.
Como em todo regime autoritário, programas partidários são irrelevantes – e Bolsonaro nem partido tem. O que interessa é a palavra do “mito”, que muda ao sabor das circunstâncias, tornando irrelevante até mesmo a assinatura de Bolsonaro em leis e decretos que ele não se envergonha de renegar ou esquecer quando lhe é conveniente.
Até aqui, Bolsonaro dedicou-se a criar um discurso em que todos são responsáveis pelos problemas, menos ele. E, como se trata de ideologia, pouco importa se o discurso é baseado em falsas premissas, como quando reitera a mentira segundo a qual não tem responsabilidade no combate à pandemia porque o Judiciário a atribuiu a Estados e municípios. O que importa é disseminar a impressão de que não o deixam governar, numa imensa conspiração.
Para que esse discurso funcione, é preciso desqualificar a imprensa profissional, que trabalha para revelar fatos concretos, e valorizar as redes sociais, que criam “fatos” sob encomenda. É o que Bolsonaro faz a todo momento. Nesse ambiente, todo aquele que é capaz de pensar e questionar torna-se automaticamente suspeito. Nada do que a experiência científica oferece é válido, pois tudo o que é preciso saber será revelado pelo “mito”, de acordo com a lógica de suas, digamos, ideias.
Nas 17,5 mil horas desse pesadelo que ainda temos pela frente, é preciso que a sociedade e as instituições democráticas impeçam Bolsonaro de completar sua obra deletéria. Se não se pode esperar que Bolsonaro se emende, ao menos é possível tentar reduzir os danos de sua catastrófica passagem pelo poder.
Bolsonaro reafirma seu desprezo pela vida dos outros
O desprezo pela vida alheia e o achincalhe à reputação dos seus adversários políticos marcaram o primeiro ato público do presidente Jair Bolsonaro à entrada de 2021.
Repetiu a dose em sua última live de 2020 no Facebook: “Tu não sabe o que é povo. Não sabe o que é sentir o cheiro do povo, nunca sabe o que é cheiro do povo. Eu sei”.
Cercado por bons nadadores, ele se meteu no mar de Praia Grande, em São Paulo, provocou aglomerações e ouviu satisfeito o coro dos banhistas mandar o governador João Doria "tomar no c*".
Que presidente da República do Brasil já fez algo semelhante? Não há registro. Bolsonaro, o boca podre, não só fez como postou nas redes sociais o vídeo com o insulto de baixo calão.
Sabe-se da fixação dele nas partes baixas do corpo humano por onde são expelidos os excrementos. E da sua perseguição ao governador de São Paulo a quem trata como inimigo.
Na véspera do Natal, Bolsonaro assim referiu-se a Doria: “Isso não é coisa de homem. Fecha São Paulo e vai passear em Miami. É coisa de quem tem calcinha apertada. Isso é um crime”.
Repetiu a dose em sua última live de 2020 no Facebook: “Tu não sabe o que é povo. Não sabe o que é sentir o cheiro do povo, nunca sabe o que é cheiro do povo. Eu sei”.
Seria pedir demais ao rudimentar ex-capitão que só se destacou como atleta enquanto serviu ao Exército que tivesse bons modos para não desonrar o cargo de presidente do Brasil?
A farda ele desonrou ao planejar atentados terroristas contra quartéis para reivindicar melhores salários, e por isso foi afastado do Exército e proibido de frequentar ambientes militares.
O derradeiro ato oficial de 2020 assinado por Bolsonaro foi também de desdém pela vida: vetou a blindagem que o Congresso tinha garantido aos gastos com vacinação contra a Covid-19.
A decisão foi publicada na calada da noite do dia 31 em edição extra do Diário Oficial da União. A proteção para gastos com o Ministério da Defesa foi mantida, naturalmente.
Sob os escombros
“Nessa situação que vive o Brasil, resta perguntar às instituições e ao povo quem realmente está pensando no bem do país e das gerações futuras e quem está preocupado apenas com interesses pessoais?” (Gal. Eduardo Villa Boas)
A soma dos fatos e dos números não deixa lugar a dúvidas que a resposta do governo brasileiro à pandemia do COVID-19 foi absolutamente desastrosa, quando não criminosa; e seu plano de vacinação massiva da população é um caos, quando não um engodo. Já são 7,5 milhões de brasileiros infectados e aproximadamente 200 mil morreram até agora, e as autoridades seguem batendo cabeça diariamente, como se fossem um bando de palhaços irresponsáveis e debochados.
E apesar de tudo isso, o general Eduardo Pazuello segue ministro da Saúde, sem entender de pandemias, nem de planejamento, nem de logística. Simplesmente porque ele é apenas mais uma nulidade de um governo que não existe, que não tem nenhum objetivo nem estratégia, e que não é capaz de formular políticas públicas que tenham início, meio e fim.
Por isso, o fracasso frente à pandemia se repete monotonamente em todos os planos e áreas de ação de um governo que se contenta em assistir, com ar de galhofa, à desintegração física e moral da sociedade brasileira, enquanto estimula a divisão, o ódio e a violência entre os próprios cidadãos. É o mesmo descaso e omissão com a vida que este governo vem mantendo frente ao avanço da devastação ecológica da Floresta Amazônica, da Região do Cerrado e do Pantanal, com números que vem provocando um levante mundial contra o Brasil.
Basta olhar os números para dimensionar o tamanho do desastre, começando pela economia, que já estava estagnada desde antes da pandemia. A previsão do PIB brasileiro para ao ano de 2020 é de uma queda de cerca de 5%, embora o PIB brasileiro já viesse caindo em 2018 e em 2019, quando cresceu apenas 1,1%. Mas o que é mais importante, a taxa de investimento da economia, que foi de 20,9% em 2013, caiu para 15,4%em 2019 e deve cair muito mais no ano de 2020, segundo as previsões das principais agências financeiras nacionais e internacionais. Para piorar o quadro de desmonte, a saída de capitais do país, que havia sido de R$ 44,9 bilhões em 2019 – a maior desde 2006 –, quase dobrou em 2020, passando para R$87,5 bilhões de reais e sinalizando uma desconfiança e aversão crescente dos investidores internacionais com relação ao governo do senhor Bolsonaro e seu ministro Paulo Guedes, apesar de suas festejadas reformas trabalhista e previdenciária.
Por isso mesmo, em 2019 o Brasil foi simplesmente excluído do Índice Global de Confiança para Investimento Estrangeiro publicado pela A. T. Kearney, consultoria norte-americana que traz o nome dos 25 países mais atraentes do mundo para os investidores estrangeiros, o mesmo índice segundo o qual o Brasil ocupava a terceira posição nos anos 2012/2013. Paralelamente, a participação da indústria no PIB nacional, que era de 17,8% em 2004, caiu para 11% em 2019, e deve cair ainda mais em 2020/2021; e o desemprego, que era de 4,7% em 2014, subiu para 14,3% em 2020, e deve seguir subindo neste ano.
A indústria brasileira está enfrentando escassez de matéria-prima e, segundo o DIEESE, o país já acumula, em 2020, uma taxa de inflação de 12,14% no preço dos alimentos que afetam mais diretamente o consumo das famílias mais pobres. De outro ângulo, os especialistas estão prevendo um apagão elétrico para o ano de 2021, como já aconteceu no estado do Amapá. E agora, no final de 2020, o Brasil está com déficit energético e importa energia do Uruguai e da Argentina, o que explica a Bandeira Vermelha 2 que começará a pesar no bolso dos consumidores em 2021.
Ainda com relação ao estado da infraestrutura do país, a Confederação Nacional dos Transportes vem advertindo que o estado geral das rodovias brasileiras piorou em 2019, e 59% da malha rodoviária pavimentada apresentam hoje sérios problemas de manutenção e circulação. Por fim, como consequência inevitável dessa destruição física, a economia brasileira sofreu uma das maiores reversões de sua história moderna, deixando de ser a 6ª ou 7ª maior do mundo, na década de 2010, para passar ser a 12ª em 2020, devendo cair ainda mais, para o 13º lugar, em 2021, segundo previsão do Centre for Economics and Business Research publicada pelo jornal The Straits Times, de Singapura.
As consequências sociais desta destruição econômica eram previsíveis. Mesmo antes da pandemia, em 2019, 170 mil brasileiros voltaram para o estado de pobreza extrema, onde já viviam aproximadamente 13,8 milhões, número que deverá crescer exponencialmente depois que terminar o “auxílio emergencial”, aumentando ainda mais a taxa de desemprego em 2021. A nova realidade criada pelo fanatismo ultraliberal do senhor Guedes já apareceu imediatamente retratada no novo ranking mundial das Nações Unidas, o IDH, que mede a “qualidade de vida” das populações, no qual o Brasil caiu cinco posições, passando de 79º para 84º lugar entre 2018 e 2020. No mesmo período, o Brasil passou a ser o país com a segunda maior concentração de renda do mundo, atrás apenas do Qatar, e o oitavo mais desigual do mundo, atrás apenas de sete países africanos.
Por fim, é impossível completar este balanço dos escombros deste governo sem falar da destruição da imagem internacional do Brasil, conduzida de forma explícita e aleivosa pelo palerma bíblico e delirante que ocupa a chancelaria. Aquele mesmo que comandou a tragicômica “invasão humanitária” da Venezuela em 2019, à frente do seu fracassado Grupo de Lima; o mesmo que fracassou na sua tentativa de imitar os Estados Unidos e promover uma mudança de governo e de regime na Bolívia, através de um golpe de Estado; o mesmo que já comprou briga com pelo menos 11 países da comunidade internacional que eram antigos parceiros do Brasil; o mesmo que se lançou numa guerra beatífica contra a China, o maior parceiro econômico internacional do Brasil; o mesmo que conseguiu derrotar, em poucas semanas, duas candidaturas brasileiras em organismos internacionais; o mesmo que conseguiu que o Brasil fosse excluído da Conferência Internacional sobre o Clima, realizada pela ONU em dezembro de 2020; e por fim, o mesmo que celebrou com seus subordinados do Itamaraty, o fato de o Brasil ter sido transformado, na sua gestão, num “pária internacional”.
Algo verdadeiramente sem precedentes e que dispensa qualquer tipo de comentário adicional vindo da parte de um rapagão deslumbrado que foi nomeado praticamente por John Bolton e Mike Pompeo – a dupla de “falcões” que comandou durante alguns meses, em conjunto, a política externa do governo de Donald Trump.
Ao final do segundo ano deste governo, compreende-se imediatamente porque a maioria dos que participaram do golpe de Estado de 2016, e que depois apoiaram o governo do senhor Bolsonaro, estejam abandonando o barco e passando para a oposição. Os jovens “cruzados curitibanos”, tendo cumprido a missão que lhes foi encomendada e depois dos seus cinco minutos de celebridade, estão fugindo ou voltando para o seu anonimato, enquanto afundam na lama da sua própria corrupção. A grande imprensa conservadora mudou e hoje se dedica a atacar o governo diariamente, enquanto os partidos tradicionais de centro e centro-direita, que estiveram juntos com o senhor Bolsonaro desde o golpe de 2016, agora se afastam e tentam construir um bloco parlamentar de oposição.
E até mesmo o “mercado” parece cada vez mais insatisfeito com o seu ministro da Economia, que já foi comemorado em outros tempos como a Joana d’Arc da revolução ultraliberal no Brasil. Assim, neste momento o governo só conta com o apoio político do submundo fisiológico do Congresso Nacional, que a imprensa chama delicadamente de “centrão”, o mesmo mundo em que o senhor Bolsonaro vegetou durante 28 anos no mais absoluto anonimato, em nove partidos diferentes.
Esse grupo parlamentar sempre esteve e estará pendurado em qualquer governo que lhe ofereça vantagens, mas nunca teve nem terá capacidade autônoma de constituir ou sustentar um governo por sua própria conta. Por isso, depois de dois anos dessa desgraceira, existe uma pergunta que não quer calar: como se sustenta, afinal, este governo mambembe, apesar da destruição que vai deixando pelo caminho?
Já foi mais difícil, mas hoje a resposta está absolutamente clara, porque na medida em que os demais sócios relevantes foram se afastando, o que sobrou de fato foi um simulacro de governo militar, absolutamente mambembe. Basta olhar para os números, uma vez que todos sabem que o próprio presidente e seu vice são militares, um capitão e o outro general da reserva.
Mas além deles, 11 dos atuais 23 ministros do governo também são militares, e o próprio ministro da Saúde é um general da ativa, todos à frente de um verdadeiro exército composto por 6.157 oficiais da ativa e da reserva que ocupam postos-chave em vários níveis do governo. Segundo dados extra-oficiais, são 4.450 do Exército, 3.920 da Aeronáutica e 76 da Marinha, número que talvez seja até maior do que o dos militantes oficiais do PSDB e do PT que ocuparam postos governamentais durante seus governos em décadas passadas.
Por isso, depois de dois anos fica difícil tapar o céu com a peneira e tentar separar as FFAA do senhor Bolsonaro, não apenas pela extensão e pelo grau de envolvimento pessoal dos militares instalados dentro do Palácio da Alvorada, mas também pelo nível e intensidade dos contatos e reuniões regulares mantidas durante esses dois anos entre generais e oficiais da reserva e da ativa, dentro e fora do governo, sobretudo entre os altos escalões das duas instituições. Depois de tudo isso, seria como querer separar dois ovos de uma mesma gemada.
Isso posto, o fracasso deste governo deverá atingir pesadamente o prestígio e a credibilidade das FFAA brasileiras, colocando uma pá de cal sobre o mito da superioridade técnica e moral dos militares com relação ao comum dos mortais. Agora está ficando absolutamente claro, e de uma vez por todas, que os militares não foram treinados para governar. Uma coisa são seus manuais de geopolítica e exercícios de ginástica e de guerra, outra coisa inteiramente diferente são os conhecimentos e a experiência acumulada indispensável para a formulação de qualquer tipo de política pública, ainda mais para se propor a governar um país com o tamanho e a complexidade do Brasil.
Além disso, também ficou claro na história recente que a presunção da superioridade moral dos militares é apenas um mito, porque os militares são tão humanos e corruptíveis como todos os demais homo sapiens. Basta lembrar o episódio recente da solicitação irregular, por parte de centenas de militares, da “ajuda emergencial” destinada às pessoas mais pobres, na primeira fase da pandemia no Brasil. Estima-se que foram mais de 50 mil casos de irregularidades denunciadas pelo Tribunal de Contas da União e que tiveram que devolver o auxílio aos cofres públicos. Mas mesmo depois da devolução dos valores adquiridos irregularmente, o que esse episódio ensina é que não existe nenhuma razão para acreditar que os soldados estejam acima de qualquer suspeita e que sejam inteiramente infensos às “tentações mundanas”.
Aliás, não existe caso mais exemplar do fracasso desta crença na superioridade do juízo militar do que o que se passou com o próprio ex-Comandante em Chefe das FFAA brasileiras, que autoconvencido de sua “genialidade estratégica” e de sua grande “sabedoria moral” decidiu avalizar em nome das FFA, e tutelar pessoalmente a operação que levou à presidência do país um psicopata agressivo, tosco e desprezível, cercado por um bando de patifes sem nenhum princípio moral, e de verdadeiros bufões ideológicos, que em conjunto fazem de conta que governam Brasil, há dois anos. Que sirva de exemplo para que não se repitam estas pessoas que se consideram superiores e iluminadas, com direito a decidir em nome da sociedade, usem farda, toga, batina ou pijama.
No século XX, os militares deram uma contribuição importante para a industrialização da economia brasileira, mas também contribuíram de forma decisiva para a construção de uma sociedade extremamente desigual, violenta e autoritária. E castraram toda uma geração progressista que poderia ter contribuído para o avanço do sistema democrático instalado em 1946. Assim mesmo, agora no século XXI, a nova geração de militares, bastante mais medíocre, está se dedicando a destruir o que de melhor haviam feito no século passado.
Por tudo e com tudo, parece que está chegando a hora de a sociedade brasileira se desfazer desses “mitos salvadores” e devolver seus militares a seus quartéis e suas funções constitucionais. Assumir de uma vez por todas, com coragem e com suas próprias mãos, a responsabilidade de construir um novo país que tenha a sua cara, e que seja feito à sua imagem e semelhança, com seus grandes defeitos, mas também com suas grandes virtudes. Que seja um país altivo e soberano, mais justo e menos violento, que respeite as diferenças e todas as crenças, e que volte a ser mais humano, fraterno e divertido. E que o Brasil volte a ser aceito, admirado e respeitado pelo resto do mundo. Estes são meus votos para o ano de 2021.
PS.: Em homenagem ao meu grande amigo Luiz Alberto Gomes de Souza, que faleceu no dia 30 de dezembro de 2020, e que foi um grande guerreiro na luta contra a ditadura militar e contra desigualdade e a injustiça da sociedade brasileira.
Por fim, é impossível completar este balanço dos escombros deste governo sem falar da destruição da imagem internacional do Brasil, conduzida de forma explícita e aleivosa pelo palerma bíblico e delirante que ocupa a chancelaria. Aquele mesmo que comandou a tragicômica “invasão humanitária” da Venezuela em 2019, à frente do seu fracassado Grupo de Lima; o mesmo que fracassou na sua tentativa de imitar os Estados Unidos e promover uma mudança de governo e de regime na Bolívia, através de um golpe de Estado; o mesmo que já comprou briga com pelo menos 11 países da comunidade internacional que eram antigos parceiros do Brasil; o mesmo que se lançou numa guerra beatífica contra a China, o maior parceiro econômico internacional do Brasil; o mesmo que conseguiu derrotar, em poucas semanas, duas candidaturas brasileiras em organismos internacionais; o mesmo que conseguiu que o Brasil fosse excluído da Conferência Internacional sobre o Clima, realizada pela ONU em dezembro de 2020; e por fim, o mesmo que celebrou com seus subordinados do Itamaraty, o fato de o Brasil ter sido transformado, na sua gestão, num “pária internacional”.
Algo verdadeiramente sem precedentes e que dispensa qualquer tipo de comentário adicional vindo da parte de um rapagão deslumbrado que foi nomeado praticamente por John Bolton e Mike Pompeo – a dupla de “falcões” que comandou durante alguns meses, em conjunto, a política externa do governo de Donald Trump.
Ao final do segundo ano deste governo, compreende-se imediatamente porque a maioria dos que participaram do golpe de Estado de 2016, e que depois apoiaram o governo do senhor Bolsonaro, estejam abandonando o barco e passando para a oposição. Os jovens “cruzados curitibanos”, tendo cumprido a missão que lhes foi encomendada e depois dos seus cinco minutos de celebridade, estão fugindo ou voltando para o seu anonimato, enquanto afundam na lama da sua própria corrupção. A grande imprensa conservadora mudou e hoje se dedica a atacar o governo diariamente, enquanto os partidos tradicionais de centro e centro-direita, que estiveram juntos com o senhor Bolsonaro desde o golpe de 2016, agora se afastam e tentam construir um bloco parlamentar de oposição.
E até mesmo o “mercado” parece cada vez mais insatisfeito com o seu ministro da Economia, que já foi comemorado em outros tempos como a Joana d’Arc da revolução ultraliberal no Brasil. Assim, neste momento o governo só conta com o apoio político do submundo fisiológico do Congresso Nacional, que a imprensa chama delicadamente de “centrão”, o mesmo mundo em que o senhor Bolsonaro vegetou durante 28 anos no mais absoluto anonimato, em nove partidos diferentes.
Esse grupo parlamentar sempre esteve e estará pendurado em qualquer governo que lhe ofereça vantagens, mas nunca teve nem terá capacidade autônoma de constituir ou sustentar um governo por sua própria conta. Por isso, depois de dois anos dessa desgraceira, existe uma pergunta que não quer calar: como se sustenta, afinal, este governo mambembe, apesar da destruição que vai deixando pelo caminho?
Já foi mais difícil, mas hoje a resposta está absolutamente clara, porque na medida em que os demais sócios relevantes foram se afastando, o que sobrou de fato foi um simulacro de governo militar, absolutamente mambembe. Basta olhar para os números, uma vez que todos sabem que o próprio presidente e seu vice são militares, um capitão e o outro general da reserva.
Mas além deles, 11 dos atuais 23 ministros do governo também são militares, e o próprio ministro da Saúde é um general da ativa, todos à frente de um verdadeiro exército composto por 6.157 oficiais da ativa e da reserva que ocupam postos-chave em vários níveis do governo. Segundo dados extra-oficiais, são 4.450 do Exército, 3.920 da Aeronáutica e 76 da Marinha, número que talvez seja até maior do que o dos militantes oficiais do PSDB e do PT que ocuparam postos governamentais durante seus governos em décadas passadas.
Por isso, depois de dois anos fica difícil tapar o céu com a peneira e tentar separar as FFAA do senhor Bolsonaro, não apenas pela extensão e pelo grau de envolvimento pessoal dos militares instalados dentro do Palácio da Alvorada, mas também pelo nível e intensidade dos contatos e reuniões regulares mantidas durante esses dois anos entre generais e oficiais da reserva e da ativa, dentro e fora do governo, sobretudo entre os altos escalões das duas instituições. Depois de tudo isso, seria como querer separar dois ovos de uma mesma gemada.
Isso posto, o fracasso deste governo deverá atingir pesadamente o prestígio e a credibilidade das FFAA brasileiras, colocando uma pá de cal sobre o mito da superioridade técnica e moral dos militares com relação ao comum dos mortais. Agora está ficando absolutamente claro, e de uma vez por todas, que os militares não foram treinados para governar. Uma coisa são seus manuais de geopolítica e exercícios de ginástica e de guerra, outra coisa inteiramente diferente são os conhecimentos e a experiência acumulada indispensável para a formulação de qualquer tipo de política pública, ainda mais para se propor a governar um país com o tamanho e a complexidade do Brasil.
Além disso, também ficou claro na história recente que a presunção da superioridade moral dos militares é apenas um mito, porque os militares são tão humanos e corruptíveis como todos os demais homo sapiens. Basta lembrar o episódio recente da solicitação irregular, por parte de centenas de militares, da “ajuda emergencial” destinada às pessoas mais pobres, na primeira fase da pandemia no Brasil. Estima-se que foram mais de 50 mil casos de irregularidades denunciadas pelo Tribunal de Contas da União e que tiveram que devolver o auxílio aos cofres públicos. Mas mesmo depois da devolução dos valores adquiridos irregularmente, o que esse episódio ensina é que não existe nenhuma razão para acreditar que os soldados estejam acima de qualquer suspeita e que sejam inteiramente infensos às “tentações mundanas”.
Aliás, não existe caso mais exemplar do fracasso desta crença na superioridade do juízo militar do que o que se passou com o próprio ex-Comandante em Chefe das FFAA brasileiras, que autoconvencido de sua “genialidade estratégica” e de sua grande “sabedoria moral” decidiu avalizar em nome das FFA, e tutelar pessoalmente a operação que levou à presidência do país um psicopata agressivo, tosco e desprezível, cercado por um bando de patifes sem nenhum princípio moral, e de verdadeiros bufões ideológicos, que em conjunto fazem de conta que governam Brasil, há dois anos. Que sirva de exemplo para que não se repitam estas pessoas que se consideram superiores e iluminadas, com direito a decidir em nome da sociedade, usem farda, toga, batina ou pijama.
No século XX, os militares deram uma contribuição importante para a industrialização da economia brasileira, mas também contribuíram de forma decisiva para a construção de uma sociedade extremamente desigual, violenta e autoritária. E castraram toda uma geração progressista que poderia ter contribuído para o avanço do sistema democrático instalado em 1946. Assim mesmo, agora no século XXI, a nova geração de militares, bastante mais medíocre, está se dedicando a destruir o que de melhor haviam feito no século passado.
Por tudo e com tudo, parece que está chegando a hora de a sociedade brasileira se desfazer desses “mitos salvadores” e devolver seus militares a seus quartéis e suas funções constitucionais. Assumir de uma vez por todas, com coragem e com suas próprias mãos, a responsabilidade de construir um novo país que tenha a sua cara, e que seja feito à sua imagem e semelhança, com seus grandes defeitos, mas também com suas grandes virtudes. Que seja um país altivo e soberano, mais justo e menos violento, que respeite as diferenças e todas as crenças, e que volte a ser mais humano, fraterno e divertido. E que o Brasil volte a ser aceito, admirado e respeitado pelo resto do mundo. Estes são meus votos para o ano de 2021.
PS.: Em homenagem ao meu grande amigo Luiz Alberto Gomes de Souza, que faleceu no dia 30 de dezembro de 2020, e que foi um grande guerreiro na luta contra a ditadura militar e contra desigualdade e a injustiça da sociedade brasileira.
Quando fede o poder
Tu não sabe o que é povo. Não sabe o que é sentir o cheiro do povo, nunca sabe o que é cheiro do povo. Eu seiJair Bolsonaro
Lei marcial cabocla
Artigo de lei de 2015 que fixava a obrigatoriedade de impressão do voto foi, em liminar do plenário do STF de 2018, considerado inconstitucional. Tal decisão foi confirmada em setembro passado por unanimidade (ADI 5.889). Após as recentes eleições municipais, o ministro Barroso, presidente do TSE, declarou: “Jamais se comprovou qualquer aspecto fraudulento no sistema, que até hoje se revelou imune à fraude”.
Apesar das decisões do STF, em 29 de novembro, Bolsonaro voltou a insistir na necessidade do voto impresso como garantia de fidedignidade. Agora, nas férias de Natal, em Santa Catarina, Bolsonaro disse: “Se a gente não tiver voto impresso em 2022, pode esquecer a eleição”.
Trata-se de ameaça grave. Como esquecer a eleição de 2022 se não houver voto impresso, já tido por inconstitucional pelo STF? Qual a intenção de Bolsonaro? Prepara-se para contestar derrota em 2022, antecipando a acusação de fraude, como tentou Trump?
Se juntarmos a acusação infundada de fraude em urnas eletrônicas, sem a mínima comprovação, com a principal atividade desenvolvida por Bolsonaro, então se acende a luz amarela do perigo.
E qual é essa atividade? O presidente tem comparecido a solenidades de graus inferiores das Forças Armadas (sargentos da Marinha) e das Polícias Militares, como se deu recentemente ao ir à formatura de soldados da PM do Rio de Janeiro. Nessa solenidade de pequeno relevo, Bolsonaro disse que soldados arriscam a vida na proteção a todos, enquanto a imprensa defende canalhas. E completou: “A imprensa jamais estará do lado da verdade, da honra e da lei. Sempre estará contra vocês”.
O presidente coloca a imprensa como inimiga dos soldados, pois “está sempre contra a lei e a verdade”. Qual a razão de prestigiar cerimônias de soldados da Polícia Militar pregando contra a imprensa livre, esteio da democracia?
A História brasileira dá a resposta. Na República houve participação relevante de forças estaduais nos movimentos sediciosos. Exemplo está na Revolução de 1924, comandada pelo major da Força Pública Miguel Costa, chefe do Regimento de Cavalaria de São Paulo (Juarez Távora, Uma Vida e Muitas Lutas, pág. 140) e depois mentor da Coluna Prestes, que, conforme afirma Leôncio Basbaum, deveria ser denominada Coluna Miguel Costa/Prestes (História Sincera da República, pág. 233).
A Revolução de 1930 teve importante participação das Polícias Militares do Rio Grande do Sul e de Minas Gerais, e também da polícia de São Paulo, que, em conjunto com o Exército, assumiu provisoriamente o governo da província (Helio Silva, Os Tenentes no Poder, pág. 87). Miguel Costa ocupou então o comando geral da Força Pública paulista (Domingos Meirelles, 1930, Os Órfãos da Revolução, pág. 649).
Como ressaltam Lilian Schwarcz e Heloisa Starling, a estratégia das forças rebeldes em 1930 foi a de obter a adesão dos oficiais subalternos e sargentos, o que deu certo, e, principalmente, o apoio das “poderosas Polícias Militares estaduais, pequenos exércitos autônomos, muito bem equipados” (Brasil: Uma Biografia, pág. 359).
Na Revolução Constitucionalista de 32, a participação da Força Pública em São Paulo foi patente, mas também a resistência do governo se deu graças à Polícia Militar de Minas Gerais, que enfrentou e derrotou os paulistas no Túnel da Mantiqueira, na estrada de ferro divisa entre Cruzeiro (SP) e Passa Quatro (MG), ganhando o túnel o nome do coronel da PM de Minas Gerais Fulgêncio de Souza Santos, falecido no confronto.
Em 1964 o general Olímpio Mourão Filho, comandante da 4ª. Região Militar, em Minas Gerais, resolveu caminhar em direção ao Rio de Janeiro à frente de conscritos do Exército mal equipados, mas contando com a Polícia Militar de Minas, então governada por Magalhães Pinto, sendo seus integrantes profissionais treinados. O mesmo se diga do peso da Força Pública do Estado de São Paulo em 1964.
A importância bélica das Polícias Militares, cujos integrantes são profissionais do confronto, verifica-se pela circunstância de o regime militar ter submetido de imediato essas corporações ao controle do Exército. Seu comando na ditadura foi entregue a oficiais-generais, como foi o caso do general João Figueiredo em São Paulo, depois presidente da República.
O governo federal, por intermédio do chefe da Força Nacional, apoiou a greve de soldados no Ceará e Bolsonaro insiste em ampliar a exclusão de crime no caso de violência praticada por policiais militares, revelando sua aliança com forças estaduais de segurança.
A grave menção de que, “se não houver voto impresso, esqueça-se a eleição de 2022”, somada à corte que Bolsonaro faz às Polícias Militares, instigadas contra a imprensa livre, forma um quadro preocupante diante de possível derrota do presidente, que terá preparado o terreno para uma “lei marcial”, tal qual a pensada por Trump, dando fim à democracia, jamais cultuada. E daí?
Apesar das decisões do STF, em 29 de novembro, Bolsonaro voltou a insistir na necessidade do voto impresso como garantia de fidedignidade. Agora, nas férias de Natal, em Santa Catarina, Bolsonaro disse: “Se a gente não tiver voto impresso em 2022, pode esquecer a eleição”.
Trata-se de ameaça grave. Como esquecer a eleição de 2022 se não houver voto impresso, já tido por inconstitucional pelo STF? Qual a intenção de Bolsonaro? Prepara-se para contestar derrota em 2022, antecipando a acusação de fraude, como tentou Trump?
Se juntarmos a acusação infundada de fraude em urnas eletrônicas, sem a mínima comprovação, com a principal atividade desenvolvida por Bolsonaro, então se acende a luz amarela do perigo.
E qual é essa atividade? O presidente tem comparecido a solenidades de graus inferiores das Forças Armadas (sargentos da Marinha) e das Polícias Militares, como se deu recentemente ao ir à formatura de soldados da PM do Rio de Janeiro. Nessa solenidade de pequeno relevo, Bolsonaro disse que soldados arriscam a vida na proteção a todos, enquanto a imprensa defende canalhas. E completou: “A imprensa jamais estará do lado da verdade, da honra e da lei. Sempre estará contra vocês”.
O presidente coloca a imprensa como inimiga dos soldados, pois “está sempre contra a lei e a verdade”. Qual a razão de prestigiar cerimônias de soldados da Polícia Militar pregando contra a imprensa livre, esteio da democracia?
A História brasileira dá a resposta. Na República houve participação relevante de forças estaduais nos movimentos sediciosos. Exemplo está na Revolução de 1924, comandada pelo major da Força Pública Miguel Costa, chefe do Regimento de Cavalaria de São Paulo (Juarez Távora, Uma Vida e Muitas Lutas, pág. 140) e depois mentor da Coluna Prestes, que, conforme afirma Leôncio Basbaum, deveria ser denominada Coluna Miguel Costa/Prestes (História Sincera da República, pág. 233).
A Revolução de 1930 teve importante participação das Polícias Militares do Rio Grande do Sul e de Minas Gerais, e também da polícia de São Paulo, que, em conjunto com o Exército, assumiu provisoriamente o governo da província (Helio Silva, Os Tenentes no Poder, pág. 87). Miguel Costa ocupou então o comando geral da Força Pública paulista (Domingos Meirelles, 1930, Os Órfãos da Revolução, pág. 649).
Como ressaltam Lilian Schwarcz e Heloisa Starling, a estratégia das forças rebeldes em 1930 foi a de obter a adesão dos oficiais subalternos e sargentos, o que deu certo, e, principalmente, o apoio das “poderosas Polícias Militares estaduais, pequenos exércitos autônomos, muito bem equipados” (Brasil: Uma Biografia, pág. 359).
Na Revolução Constitucionalista de 32, a participação da Força Pública em São Paulo foi patente, mas também a resistência do governo se deu graças à Polícia Militar de Minas Gerais, que enfrentou e derrotou os paulistas no Túnel da Mantiqueira, na estrada de ferro divisa entre Cruzeiro (SP) e Passa Quatro (MG), ganhando o túnel o nome do coronel da PM de Minas Gerais Fulgêncio de Souza Santos, falecido no confronto.
Em 1964 o general Olímpio Mourão Filho, comandante da 4ª. Região Militar, em Minas Gerais, resolveu caminhar em direção ao Rio de Janeiro à frente de conscritos do Exército mal equipados, mas contando com a Polícia Militar de Minas, então governada por Magalhães Pinto, sendo seus integrantes profissionais treinados. O mesmo se diga do peso da Força Pública do Estado de São Paulo em 1964.
A importância bélica das Polícias Militares, cujos integrantes são profissionais do confronto, verifica-se pela circunstância de o regime militar ter submetido de imediato essas corporações ao controle do Exército. Seu comando na ditadura foi entregue a oficiais-generais, como foi o caso do general João Figueiredo em São Paulo, depois presidente da República.
O governo federal, por intermédio do chefe da Força Nacional, apoiou a greve de soldados no Ceará e Bolsonaro insiste em ampliar a exclusão de crime no caso de violência praticada por policiais militares, revelando sua aliança com forças estaduais de segurança.
A grave menção de que, “se não houver voto impresso, esqueça-se a eleição de 2022”, somada à corte que Bolsonaro faz às Polícias Militares, instigadas contra a imprensa livre, forma um quadro preocupante diante de possível derrota do presidente, que terá preparado o terreno para uma “lei marcial”, tal qual a pensada por Trump, dando fim à democracia, jamais cultuada. E daí?
Este é um país que vai pra trás
Longe das utopias de qualidade de vida e modernidade que as gerações do século passado acalentaram para o futuro, o Brasil entra na segunda década do século 21 destinado à involução. Sob o patrocínio do presidente Jair Bolsonaro, os anos correm aceleradamente para trás.
Enquanto 50 países iniciaram a vacinação contra a Covid-19 em dezembro, alguns deles ministrando agora a segunda dose, por aqui Bolsonaro anima um time de resistência e contestação – “se você virar um jacaré o problema é seu”. Ao negacionismo sobre a pandemia, que fez o país perder tempo e vidas, somam-se outras birras que podem, por exemplo, nos deixar à margem da tecnologia 5G, pronta para revolucionar o planeta. A indústria nacional quer a participação dos chineses no leilão, não por amor aos olhos puxados, mas porque já usa chips e inteligência dos “comunistas”. Bolsonaro disse não.
Na contramão do país do futuro ou do “país que vai pra frente”, slogan criado para esconder os desmandos da ditadura militar que o presidente tanto admira, sob a égide de Bolsonaro o retrocesso é geral. Na educação, na fiscalização ambiental, na saúde, nos modos, que já foram mais cordiais.
O presidente incentiva ainda práticas da Idade Média, do olho por olho, ao insistir em armar a população para defesa pessoal e “proteção da liberdade”. E quer a volta do voto impresso, proposta que promete aprovar logo depois da eleição da mesa da Câmara, em 1º de fevereiro. “Se a gente não tiver voto impresso em 2022, pode esquecer a eleição”, ameaça.
Não à toa, a eleição do presidente da Câmara dos Deputados tem importância quase dramática. Um eventual êxito do candidato Arthur Lira (PP-AL) abre a porteira para boiadas de propostas retrógradas, conferindo ao presidente uma vitória política incontestável que, no mínimo, coloca um desconfortável cabresto no Parlamento. Tudo absolutamente evitável se os partidos de esquerda tiverem algum juízo, algo a ser conferido nesta segunda-feira quando seus líderes se reúnem novamente com Baleia Rossi (MDB-SP).
Ter um aliado dirigindo a Câmara é desejo de qualquer presidente. É virtuoso quando isso se dá para fazer avançar temas de interesse do país e absolutamente danoso se a pauta estiver longe de ser republicana.
Governistas no Congresso dizem que 2021 será o ano das privatizações e das tão propaladas reformas tributária e administrativa. Mas até as emas do Alvorada sabem que é falácia.
Com muito empenho legislativo - e apoio zero de Bolsonaro - será até possível avançar na reforma tributária, visto que dois projetos de iniciativa de deputados e senadores estão avançados. A administrativa, que o presidente odeia, não tem qualquer chance. Se por milagre andar, só começará a valer em um futuro distante.
As privatizações não passaram de devaneios. Nada, absolutamente nada foi vendido, e nada indica que será. Em recente entrevista nas páginas amarelas de Veja, o incensado ministro das Comunicações, Fábio Faria, preferiu falar em parceria com a iniciativa privada em vez de venda dos Correios, uma das empresas listadas por Paulo Guedes na conta fantasiosa de um trilhão de reais de privatizações prometidas na campanha de Bolsonaro.
Ao contrário de privatizar, Bolsonaro aumentou a conta. Na penúltima semana do ano criou uma estatal para chamar de sua: a NAV Brasil Serviços de Navegação Aérea, projeto de Dilma Rousseff. Também não extinguiu a EPL - Empresa de Planejamento e Logística, inventada pela presidente cassada para tocar o imaginário trem-bala Rio-São Paulo. Tampouco tratou de dar fim ao Canal Brasil, ex-TV Lula e hoje TV Bolsonaro, que se transformou em emissora oficial, com transmissão ao vivo das aglomerações diárias do presidente em plena pandemia.
A distância de Bolsonaro das emergências do país fica ainda mais evidente nos vetos que fez à LDO, cortando a intocabilidade de recursos destinados à pandemia e ao socorro de miseráveis. A necessidade de ter flexibilidade no orçamento, argumento utilizado pelo Ministério da Economia para os vetos, teria lógica se aplicada a todos os itens, mas cai por terra ao não valer para os programas do coração das Forças Armadas, como a compra de caças e o desenvolvimento do submarino nuclear.
Assim como não dá bola para a defasagem do Brasil em relação a outros países no que tange ao acesso à vacina, Bolsonaro não está nem aí para a marcha à ré do país. Parece gostar dela. Sua pauta do ano se resume em livrar-se das investigações sobre os relatórios da Abin em prol do filho Flávio, enroladíssimo com as “rachadinhas”, e do processo de sua comprovada interferência na Polícia Federal, em curso no STF. Além de evitar que pedidos de impeachment ganhem corpo.
No mais, continuará a tergiversar, criar memes, demonizar a imprensa. A pisar fundo nas boçalidades para agradar aos seus, que, inebriados, aplaudem as bestices do “mito”.
Já perdemos tempo demais. A única hipótese de o Brasil turbinar sua velocidade rumo ao futuro é se livrar do capitão do atraso. Quanto mais rápido, melhor.
Mary Zaidan
Hoje é o primeiro dia útil do resto das nossas vidas pandêmicas
Hoje é o primeiro dia útil do resto das nossas vidas pandêmicas e é preciso, sem baixar a máscara, insistir em sorrir. Pairam dúvidas sobre a chegada de um segundo dia, o terceiro é especulação com enorme margem de erro e o dia da vacina, então, este ninguém sabe quando de fato se dará. Nada é certo, tudo a confirmar. Você está no Brasil — o futuro a Deus pertence, o presente a ninguém convence e o passado desde anteontem não se responsabiliza sobre o que doravante passará.
Falta pouco, não se sabe muito bem quanto, as notícias carecem de exatidão, mas chegou o primeiro dia útil do resto de nossas vidas quarentenadas, aquele que ao final dos carimbos da Anvisa, ao terceiro cantar do galo, ao soar do carrilhão com as 12 badaladas, levará os sobreviventes de 2020 à fila de onde recomeçarão suas existências interrompidas.
Ainda não abrace, ainda não sussurre, ainda não aglomere, visto que tudo necessita de aprovação emergencial em duas vias, registro sanitário com firma reconhecida, pelo órgão fiscalizador de saúde pública. O Brasil demora. Enquanto o tempo não ruge com a pressa devida, mentalize o frasquinho congelado a menos de 70 graus, imagine a agulha tatuando numa só picada o dragão da esperança no braço e, relaxa, ouve de novo a canção do Belchior, aquela do ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro na praia.
A qualquer momento, diretamente da cabine refrigerada da memória, o locutor Waldir Amaral vai dar o aviso, “o relógio maaaaaaaaaarca!”, e você será liberado para reabraçar o abraço, rebeijar o beijo e redançar a premonitoriamente feliz “Imunização racional (Que beleza!)”, do Tim Maia, desde já a música do verão 2021. A musa da estação veio de Oxford, residente em Manguinhos, a inglesinha Astrazeneca. Inocula em todos o tesão da nova chance.
Não é mais uma segunda-feira daquelas denunciadas pelo Luis Fernando Verissimo, em que, depois de ter criado o mundo em seis dias e descansado no domingo, Deus costumava se arrepender de tamanha besteira.
Hoje é o primeiro dia útil rumo ao que os mais simples, na dúvida sanitária se optam pela de adenovírus modificado ou RNA mensageiro, julgarão ser apenas uma dose de vacina espetando os braços. Aos mais sofridos, aos corações fora do peito, desgraçados por tanta solidão, será o passaporte de reentrada no futuro que restou de nossas vidas amordaçadas. Falta pouco. É preciso manter distância das tentações, desaglomerar da multidão e esperar, que já se ouve na esquina a nova trombeta dos anjos, o novo tropel da cavalaria salvadora. Os anticorpos estão chegando.
Falta pouco, não se sabe muito bem quanto, as notícias carecem de exatidão, mas chegou o primeiro dia útil do resto de nossas vidas quarentenadas, aquele que ao final dos carimbos da Anvisa, ao terceiro cantar do galo, ao soar do carrilhão com as 12 badaladas, levará os sobreviventes de 2020 à fila de onde recomeçarão suas existências interrompidas.
Isso aqui é o fim do mundo, a ponta da praia, o fim do asfalto civilizatório, o atropelo da razão, mas anunciaram e garantiram, ao contrário do combinado naquela reunião do ministério, que o brasileiro-profissão-esperança não vai mais se acabar. Já teve a live do Caetano, agora vai ter a vacina da Covid. É preciso apenas reforçar o álcool gel nos dedos, botar a mão na consciência e aguardar o momento em que, pelo telefone, pelo Twitter ou soltando morteiros, o chefe da pandemia vai avisar — chegou a hora!
Ainda não abrace, ainda não sussurre, ainda não aglomere, visto que tudo necessita de aprovação emergencial em duas vias, registro sanitário com firma reconhecida, pelo órgão fiscalizador de saúde pública. O Brasil demora. Enquanto o tempo não ruge com a pressa devida, mentalize o frasquinho congelado a menos de 70 graus, imagine a agulha tatuando numa só picada o dragão da esperança no braço e, relaxa, ouve de novo a canção do Belchior, aquela do ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro na praia.
A qualquer momento, diretamente da cabine refrigerada da memória, o locutor Waldir Amaral vai dar o aviso, “o relógio maaaaaaaaaarca!”, e você será liberado para reabraçar o abraço, rebeijar o beijo e redançar a premonitoriamente feliz “Imunização racional (Que beleza!)”, do Tim Maia, desde já a música do verão 2021. A musa da estação veio de Oxford, residente em Manguinhos, a inglesinha Astrazeneca. Inocula em todos o tesão da nova chance.
Não é mais uma segunda-feira daquelas denunciadas pelo Luis Fernando Verissimo, em que, depois de ter criado o mundo em seis dias e descansado no domingo, Deus costumava se arrepender de tamanha besteira.
Hoje é o primeiro dia útil rumo ao que os mais simples, na dúvida sanitária se optam pela de adenovírus modificado ou RNA mensageiro, julgarão ser apenas uma dose de vacina espetando os braços. Aos mais sofridos, aos corações fora do peito, desgraçados por tanta solidão, será o passaporte de reentrada no futuro que restou de nossas vidas amordaçadas. Falta pouco. É preciso manter distância das tentações, desaglomerar da multidão e esperar, que já se ouve na esquina a nova trombeta dos anjos, o novo tropel da cavalaria salvadora. Os anticorpos estão chegando.
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