domingo, 24 de janeiro de 2021

Doentes sufocados e democracia ameaçada: o país de Bolsonaro

O mais incompetente e mais tosco chefe de governo da História do Brasil seria menos danoso se fosse apenas – apenas? – um destruidor do meio ambiente, como parecem considerá-lo alguns estrangeiros. Mas ele é muito pior que isso. Suas ações e omissões afetam a economia, comprometem a saúde e a segurança dos brasileiros, sujam a imagem do País e ameaçam as instituições democráticas. “Quem decide se um povo vai viver na democracia ou na ditadura são as suas Forças Armadas”, disse o presidente Jair Bolsonaro no dia 18, em mais uma arenga de tom golpista, uma de suas atividades mais notórias em janeiro.

Na mesma semana, recém-iniciada a vacinação contra a covid-19 no Brasil, os governos da China e da Índia retardaram remessas de vacinas e de insumos, em clara retaliação a ofensas e a decisões diplomáticas subordinadas à orientação do presidente Donald Trump. O governo brasileiro havia se desentendido com dois dos cinco Brics, sócios do País num banco de desenvolvimento e com alto potencial de cooperação. O reinício dos embarques foi pouco depois anunciado por autoridades indianas e chinesas, mas o recado transmitido nos dias anteriores havia sido inequívoco. Ainda assim, Bolsonaro insistiu em prestigiar publicamente seu desastroso ministro das Relações Exteriores – afinal, um cumpridor das ordens do presidente e de seus filhos.



Enquanto o governo federal se enrolava nos próprios erros, doentes sufocavam e morriam com falta de oxigênio, no Amazonas, por onde o ministro da Saúde havia passado, pouco antes, pregando uso da cloroquina e tratamento precoce. Quando a tragédia virou escândalo nacional, e logo mundial, o governo de Jair Bolsonaro se mexeu para mandar oxigênio a Manaus, onde familiares e amigos de doentes buscavam cilindros, como pudessem, para conter a mortandade.

Os mais crentes poderiam recorrer ao aplicativo TrateCOV, do Ministério da Saúde, com instruções para diagnósticos e tratamento precoce, incluído um kit para náusea e diarreia. Na quinta-feira, 21, o ministério tirou do ar o aplicativo. Segundo alegação ministerial, a plataforma era um projeto-piloto e o aplicativo havia sido invadido e ativado indevidamente.

O sistema, no entanto, havia sido lançado em Manaus, na semana anterior, e o Conselho Federal de Medicina e o deputado Marcelo Freixo (PSOL-RJ) haviam pedido sua retirada.

As mortes por falta de oxigênio compuseram um dos capítulos mais dramáticos da crise sanitária, em janeiro, quando o quadro da pandemia piorou em todo o País e o susto aumentou por causa de novas cepas de coronavírus. Médicos e autoridades apontaram como causas principais as imprudências no período de festas. Em alguns casos, governos estaduais e locais podem ter falhado. Quanto ao presidente, ou se omitiu ou errou, de forma explícita, combatendo a prevenção, menosprezando as mortes e dando os piores exemplos ao aparecer sem máscara e ao frequentar aglomerações.

Alguns desses ajuntamentos foram manifestações golpistas, com pedidos de intervenção militar. Em janeiro, o presidente encontrou inspiração no ataque de trumpistas ao Congresso americano. Algo pior, disse Bolsonaro, poderá ocorrer no Brasil se as eleições de 2022 forem realizadas sem voto impresso.

Foi uma clara ameaça, rechaçada pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia, e por muitos políticos. Mas o presidente insistiu. Dias depois atribuiu aos militares o poder, impensável à luz da Constituição, de decidir sobre democracia ou ditadura. Chegou a usar o pronome “nós”, identificando-se como militar e inventando uma conspiração socialista. “Por que sucatearam as Forças Armadas ao longo de 20 anos? Porque nós, militares, somos o último obstáculo para o socialismo.”

Conspirações imaginárias são mentiras típicas do populismo e do golpismo. Trump falou da covid-19 como doença produzida na China, também acusada de espionagem por meio da tecnologia 5G. Bolsonaro imitou essa patacoada, agravada por atingir o maior cliente externo do agronegócio brasileiro. O presidente falou em “vachina”, fazendo campanha contra a vacina do Butantan e envolvendo Pequim em sua disputa com o governador de São Paulo.

Polimático na incompetência, Bolsonaro errou em quase tudo. Em 2019, omitiu-se e deixou a economia derrapar. Em seguida, no primeiro trimestre de 2020, o produto interno bruto (PIB) foi 1,5% menor que nos três meses finais de 2019. A crise econômica, por aqui, precedeu a covid-19. Houve esforço, como em todo o mundo, para atenuar os efeitos da doença. Mas a política de saúde, enquanto dependeu do poder central, foi catastrófica, a partir da militarização do setor.

Por tantas barbaridades, e principalmente pelos desmandos durante a pandemia, tornou-se muito difícil pensar na recuperação do País sem o impeachment de Bolsonaro. Crimes de responsabilidade, como falhas no combate à pandemia e participação em manifestações golpistas, têm sido apontados por especialistas. Podem faltar condições políticas para o processo. Quanto a bons motivos, sobram e multiplicam-se dia a dia.

Bolsonaro tenta ir à forra

Levado à lona por auto nocaute depois de inventar e alimentar cotidianamente a guerra da vacina que perdeu para o governador paulista João Doria, o presidente Jair Bolsonaro prepara sua volta ao ringue. E pretende fazê-lo de forma gloriosa, elegendo seus candidatos à presidência da Câmara e do Senado. Sem meias palavras, cada voto depositado no senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG) e no deputado Arthur Lira (PP-AL) terá o condão de redimir o pior presidente da República que o país já experimentou.

Pelas contas que os principais candidatos fazem, Pacheco tem vantagem entre seis e sete votos contra Simone Tebet (MDB-MS). Na Câmara, Lira e o opositor Baleia Rossi (MDB-SP) somam mais apoios do que o colégio eleitoral de 513 deputados. Até aí, nada de novo. Sempre é assim: os postulantes contabilizam as traições que o voto secreto estimula.

A existência de um nome governista também faz parte do jogo. A diferença é que desta vez o que está em juízo é o governo Bolsonaro e todo o seu descaso e incompetência para lidar com as crises sanitária, econômica e social.

Bem-apessoado, Pacheco até impressiona com o seu discurso contra extremismos. De um lado acena aos investigados pela Lava-Jato que considera a operação abusiva; por outro, discorda da ampliação da posse de armas, menina dos olhos de Bolsonaro. Mas arrepia até o último fio de cabelo ao dizer que se sente honrado com o apoio do presidente.

Honra de quê? De ter a simpatia de alguém que desonra o país?

E vai além. Diz que os erros do governo na pandemia são “escusáveis”. Ou seja, de antemão, desculpa Bolsonaro pelo incentivo que faz ao tratamento preventivo inexistente para conseguir desovar os milhões de comprimidos de cloroquina que mandou o Exército produzir, que lida com a dor e a morte de milhares com um “e daí?” e considera o Brasil “um país de maricas” acovardados pelo vírus.

Difícil explicar ao eleitor do PT que seu partido apoiará um candidato que se sente honrado com o apoio de Bolsonaro. Se Pacheco vencer, os 6 senadores do PT, alguns do PSDB e do PDT que não se posicionaram publicamente em favor de Tebet, terão sido decisivos para o que pode vir a ser a primeira vitória política do presidente.

Lira é afável e tem feito discursos sob encomenda em cada um dos estados que visita. Em parte deles, evita falar explicitamente do apoio de Bolsonaro, na tentativa de aliciar votos de parlamentares à esquerda. Nessa toada, já conta com dissidências do PSB, incentivado pelo recém-eleito prefeito de Recife, João Campos.

A seu favor, Lira terá ainda a candidatura de Luiza Erundina (PSOL-SP), jogada na disputa para marcar posição. Mais uma vez o PSOL parece ou finge não compreender que a posição fundamental é a de impedir que Bolsonaro vença.

Parlamentares que já declararam apoio a Lira e a Pacheco tentam desvincular a eleição das casas legislativas do Executivo. Uma tarefa impossível por não ter correspondência com a realidade. Na Câmara, o deputado que não abre o voto em Lira vai para o fim da fila na liberação de emendas parlamentares obrigatórias. Se indicou alguém para cargo no governo, ainda que de vigésimo escalão, tem sido notificado da demissão sumária, mesmo quando se trata de quadro técnico competente.

Os métodos são espúrios e a causa degradante.

Longe de ter em vista o país, as angústias de seus cidadãos, as reformas inadiáveis, Bolsonaro quer vencer para proteger a si e aos seus, afastar o fantasma do impeachment - cada vez mais prestes a encarnar - e dar guarida aos filhos Flávio e Eduardo.

Há grita pelo impedimento do presidente e seis dezenas de requisições para tal, ignoradas pelo atual presidente da Casa, Rodrigo Maia (DEM-RJ), sob o argumento da falta de condições políticas para aceitá-las. O caldo para a cassação engrossou com o flagelo de Manaus e a incúria no trato com a pandemia, em especial com as trapalhadas da vacinação. Trata-se de um processo longo e tortuoso, que só agora começa a entrar na mira do Parlamento, podendo ou não vingar no futuro.

Mas nada, absolutamente nada justifica que representantes do povo deem fôlego a um presidente que mente ao sabor de sua conveniência, desrespeita as instituições e incentiva protocolos de morte. Deixá-lo vencer na Câmara e no Senado é endossar sua política genocida.

Democracia lá e cá

Claro que os Estados Unidos têm forte democracia. Claro que Joe Biden assumiria a Presidência. Mas o perigo não é esse. Mora ao lado. A democracia americana não foi forte suficiente para evitar preparadas e planejadas violências: política, digital e física. Sangue no Congresso. Tempos de infâmia, dizem os americanos.

As instituições rotineiras de controle não funcionaram, apesar de toda transparência, sintomas e indícios. Foram hábil e politicamente paralisadas por Trump e seguidores. Ou seja, a democracia americana não está preparada para os novos tempos. De tecnologia intensa, decisões rápidas e soluções complexas.

Denúncias contra a família Trump não foram conclusivas. Mentiras pela Presidência foram permitidas. Interferências externas em eleições estão no ar. Ataques a direitos humanos, de imigrantes, negros, islâmicos, crianças, white americans também.

O tempo da violência e da ilegalidade é instantâneo. O da legalidade, não. A disseminação de fake news proliferou. Decisões da Suprema Corte foram contestadas nas palavras do presidente. A omissão no combate ao vírus é quase assassina. O nepotismo da Casa Branca reunia filhos, filhas, genros, como num cassino.



Há anos, o professor Terry Fischer, de Harvard, me disse: “O Estado de direito americano começou a cair”. Espantei-me. Referia-se ao fato de que Gore perdera para Bush não pelo voto. Mas por envergonhada decisão da Suprema Corte em favor de Bush. Tão envergonhada que a Suprema Corte prometeu a si mesma nunca mais repeti-la. Não vale como precedente.

Será que a injustiça, travestida de justiça, tarda e também não falha? Inexiste o que tanto precisamos: democracia preventiva eficaz. Lá e cá.

Nossas instituições de controle não conseguem tomar decisões claras, urgentes e definitivas. Ministério Público, Polícia Federal, tribunais, Coaf, Ministério da Justiça são sistematicamente abalados para não decidir.

As denúncias contra a família do presidente não são pautadas. Nepotismo na administração pública. Milícias assumem devagar o Estado. A futura contestação das eleições de 2022 já foi previamente ameaçada pelo presidente Bolsonaro: eleição tem que ser em papel.

Bolsonaro afirma ter havido fraude aqui. Haveria crime, diz. Os ministros Roberto Barroso, Edson Fachin e o TSE têm que intimá-lo a provar. O professor Silvio Meira também denuncia essa armação. Bolsonaro não mostra fatos. É anunciada lavagem cerebral da opinião pública.

Espera-se acontecer? Nos Estados Unidos, televisões tiraram o presidente Trump do ar. Twitter também. Facebook e Instagram o bloquearam pelo menos até o fim do mandato. A falta da democracia preventiva fez Trump presidente com poder, mas sem autoridade. Puro risco.

A Bloomberg pediu ao CEO dos Laboratórios Roche, um dos maiores do mundo, conselho nesta pandemia. Respondeu: “Bons hospitais, vacinas, bons médicos e enfermagem são indispensáveis. Mas o essencial mesmo é não ficar doente. Não precisar deles. É a medicina preventiva”.

O mesmo com a democracia. Que os Estados Unidos são uma forte democracia, é uma platitude. Mas vimos que é democracia a posteriori. Curativa. Não foi forte a priori.

A questão decisiva é: por que deixar a democracia chegar às portas do massacre? Depender das Forças Armadas para sobreviver? Do general Mike Pence. Aqui será general Mourão? Liberdade e igualdade precisam imaginar ambas: a democracia curativa e a democracia preventiva. Sem esta, aquela está em perigo.

Pensamento do Dia

 


Bolsonaro é louco?

Como Jair Bolsonaro se sairia numa avaliação psiquiátrica? Ou, numa linguagem mais bolsonariana, ele é doido? Inspirado no livro “The Dangerous Case of Donald Trump”, que já comentei aqui, um grupo de ilustres psiquiatras brasileiros decidiu perscrutar a ficha corrida e as atitudes mais recentes do presidente. Chegou a conclusões que, se não permitem um diagnóstico definitivo, servem de alerta para o perigo que ele representa.

Na opinião desses profissionais, que pediram anonimato (o Código de Ética Médica faz restrições a diagnósticos sem exame direto do paciente), Bolsonaro não pode ser classificado como louco inimputável (ele sabe o que faz), mas apresenta comportamentos compatíveis com critérios de transtornos de personalidade descritos tanto no CID-11 como no DSM-5.

O que se destaca são traços de personalidade narcísica e paranoide, evidenciados por falta de empatia, agressividade, desconfianças (com o sistema eleitoral, por exemplo) e alguma desconexão com a realidade.



Isso basta para inabilitá-lo para a função? É preciso cuidado para não estigmatizar portadores de transtornos mentais. Eventuais inaptidões dependem muito da gravidade dos sintomas e do tipo de função exercida. Um portador de transtorno de controle do impulso pode dar um excelente engenheiro aeronáutico, mas um péssimo piloto comercial.

A questão que se coloca é se um cargo como o de presidente, entre cujas funções está a de promover o entendimento, liderar pelo exemplo e servir de bússola moral em momentos graves, é compatível com alguém incapaz de compaixão e que tem dificuldade para acatar regras.

Não penso que candidatos à Presidência devam ser previamente submetidos a uma junta psiquiátrica, mas creio que as impressões de profissionais da saúde mental devem pesar quando se considera a utilização de remédios constitucionais tarja preta como é o impeachment.

Nossos Bolsuellos

Um bom governo depende do presidente usar sua vontade política e contar com a competência de seus ministros, e realizarem os projetos que o país necessita para caminhar com coesão e rumo. Esta combinação da vontade política com a competência gerencial cria a sinergia necessária para fazer o país avançar deixando legados dos presidentes.

O atual presidente não demonstra vontade política nem conta com ministros que permitam deixar um legado para o Brasil. Ele não se preparou para deixar legado e se rodeou de ministros que se dedicam a bajular e atrapalhar. Estamos sem propostas, sem liderança e sem competência.

O melhor exemplo é a saúde. Bolsonaro não se preparou. Não tinha projeto para superar as dificuldades que recebeu, e não sabe o que fazer diante da epidemia. Ele usa sua vontade política para negar o problema, para recusar o uso da ciência e substituiu os ministros competentes por um que deseja apenas agradar ao chefe e sem competência técnica, nem gerencial.



Em vez de se ajudarem, se atrapalham, porque são atrapalhados. Em vez de sinergia temos uma entropia: um governo autofágico e que engole o Brasil.

Para ameaçar ainda mais o futuro do Brasil, esta situação não é apenas na saúde. Nas relações exteriores tem um ministro antidiplomático, despreparado, capaz de dificultar, no lugar de ajudar, inclusive com BRICS, aliança criada pela vontade do presidente Lula e a competência do ministro Celso Amorim, que agiam com a sinergia de um time Lulamorim, quando agora temos a entropia do Bolsuello. Na economia, o Guedes diz coisas que não deveria e é obrigado a se desdizer, ou a corrigir o presidente depois do estrago feito. No meio ambiente, o ministro é anti-ecológico. Além de fazer o contrário do que o país precisa, agrava as relações internacionais.

Este governo joga contra o Brasil, tropeçando no presente, em vez de caminhar para o futuro. Pior, aue não se vislumbra luz, nem sinergia no lado da oposição, onde o Brasil também tem seus bolssuelos. No final do regime militar, assistiu-se sinergia entre os líderes da época. Ulisses, Arraes, Brizola, Tancredo jogavam com a vontade certa e a competência necessária. Apesar de visões e interesses próprios, jogaram unidos a favor da democracia no país.

Nossos líderes atuais ainda não demonstraram esta vontade, nem competência para o diálogo. Não vemos Ciro, Marina, Lula, Huck, Dória, Dino lutando de forma combinada para livrar o Brasil do governo entrópico dos bolsuellos. Cada um é candidato a ser o próximo presidente, não a barrar os desastres do atual. O resultado é que dificilmente o Brasil conseguirá o impeachment e possivelmente a oposição chegará dividida no primeiro turno, repetindo 2018 e reelegendo um governo sem vontade nem competência para deixar um Brasil melhor.

Impeachment pelo passado e futuro

Dos argumentos contra o impeachment do presidente Jair Bolsonaro, o mais fraco é o de que não podemos “banalizar” esse instrumento. A lei é para ser usada, e em nenhum outro caso anterior a este fez tanto sentido iniciar o processo de punição que é previsto na Constituição e em lei de 1950 para o caso de o presidente cometer crime de responsabilidade. Bolsonaro incorreu em vários crimes, inclusive comuns, desde que assumiu o cargo.

Não é a primeira vez que escrevo isso neste espaço. Em maio do ano passado escrevi que era necessário não ter medo de encarar o impedimento, sempre traumático, mas agora necessário para salvar vidas. Em outras colunas, listei os artigos das leis do país que ele tem ferido constantemente. No ano passado ele escalou nos ataques às instituições justamente quando o Brasil começava o enfrentamento a um vírus mortal. É uma dupla perversidade.

O impeachment da presidente Dilma não foi apenas por um preciosismo fiscal, por uma singela pedalada, como ficou na memória de muita gente, da mesma forma que Collor não foi abatido por um Fiat Elba. Com seus erros de decisão, sequenciais, Dilma desmontou a economia. A recessão destruiu 7% do PIB em dois anos, a inflação voltou a dois dígitos, o desemprego escalou, o déficit e a dívida deram um salto. Tudo isso derrubou sua popularidade e ela não teve sustentação política. Não foi um golpe. Foi o uso do impeachment por crime de responsabilidade fiscal, e num contexto de descobertas de assalto aos cofres da Petrobras para financiamento político.
 
Os crimes de Jair Bolsonaro estão em outro patamar de gravidade, porque atentam contra a vida. A falta de coordenação federal da pandemia matou brasileiros. Ele estimulou o agravamento da pandemia por atos, palavras e omissões. Se permanecer intocado e com o seu mandato até o fim, a história será reescrita naturalmente. O impeachment da presidente Dilma parecerá injusto e terá sido. E isso porque diante de crimes muito mais graves do que os que provocaram a desordem econômica, as instituições cruzaram os braços e lavaram suas mãos deixando Bolsonaro protegido.

O presidente faz seus movimentos ameaçadores diante de instituições inertes ou coniventes. A nota do procurador-geral da República, Augusto Aras, é inconcebível. Ele não apenas diz que não fará seu papel constitucional, como ameaça o país com uma insinuação de estado de defesa. Isso é a antessala de um golpe. Bolsonaro mais uma vez, nos últimos dias, usou as Forças Armadas para intimidar o país. E elas silenciam. Ajudaram desde o início o presidente com seus silêncios, suas palavras ambíguas, e sua presença ao lado de um ex-tenente que virou capitão quando passou, com desonra, para a reserva.

O Congresso é o próximo passo que está sendo dado pelo presidente. Ter políticos submissos na presidência das duas Casas será a etapa final para a blindagem. Bolsonaro avança nesse propósito com a ajuda inclusive dos partidos de esquerda, como PT e PDT, que deram oficialmente seu apoio a Rodrigo Pacheco (DEM-MG), o senador que diz serem “escusáveis” os erros do governo. Que escusa existe para o caso de Manaus? Pessoas morreram sufocadas porque o governo não ouviu os alertas dos próprios funcionários do Ministério da Saúde, numa terrível cronologia da tragédia. O ministro lá esteve e voltou prescrevendo tratamento que a ciência comprovou que é ineficaz. E o estado precisava de oxigênio. Na Câmara também avança o candidato com o apoio do Planalto.

Bolsonaro quer demonstrar superioridade e que tudo está dominado. Tem chances de colocar submissos nas presidências das duas Casas, a PGR já está em suas mãos, as Forças Armadas aceitam ser o espantalho dos democratas. Muitos dizem não ser estratégica a defesa do impeachment agora, porque ele seria barrado pela anomia das instituições. Isso não é argumento para não defender o impeachment do presidente Bolsonaro. Ele cometeu inúmeros crimes e precisa responder por eles. Se a democracia brasileira não tiver forças para tanto, ela mudará o passado. Serão injustos os impeachments anteriores. O mais grave, contudo, não é a mudança do passado, mas a do futuro. Brasileiros estão morrendo hoje pela gestão criminosa da pandemia. Em nome dos sem futuro a democracia brasileira precisa encarar o seu maior desafio.

Covid matou menos que Bolsonaro

A população brasileira representa 2,7% da população mundial. Se o Brasil tivesse tido 2,7% das mortes globais de Covid-19, 56.311 pessoas teriam morrido. Contudo, em 21 de janeiro, 212.893 pessoas já tinham morrido de Covid-19 no Brasil. Em outras palavras, 156.582 vidas foram perdidas no país por subdesempenho.
Pedro Hallal, epidemiologista ex-reitor da Universidade Federal de Pelotas, que coordena a pesquisa Epicovid, referência no mapeamento do avanço da doença no país

Os populistas e seus moinhos de vento

“Procure o inimigo!” Jânio Quadros sacava seu bordão quando tinha que comunicar alguma medida impopular e pedia aos assessores que dourassem a pílula. Ficou famoso o episódio em que, ao anunciar um aumento na gasolina, jogou a culpa nos… Estados Unidos. No Brasil sempre pega bem responsabilizar os “americanos”, embora a maior parte de nossos problemas seja fruto de nossa própria incapacidade em resolvê-los.

Nomear e cultivar inimigos é a estratégia clássica do populista – aquele tipo de governante que, na definição dos cientistas políticos, se apresenta como defensor do “povo” contra as “elites”.

No rótulo de “elites” cabe quase tudo: os “globalistas”, sem levar em conta que a circulação de bens, pessoas e conhecimento é crescente e irreversível no mundo atual; os “comunistas”, embora eles sejam irrelevantes no ocidente desde o fim da União Soviética, há 30 anos; ou os “políticos” – apesar do fato incômodo de que todos os populistas são, antes de tudo, políticos.

Qual cavaleiros medievais, o presidente americano, Donald Trump, e o brasileiro, Jair Bolsonaro, costumam girar suas maças contra esses três moinhos de vento. Ao longo da semana os dois estiveram nas manchetes das plataformas de notícias. Bolsonaro por dizer que o Brasil estava quebrado e ele não podia fazer nada, embora presidentes sejam superpoderosos em regimes presidencialistas. Trump pela proeza de incitar um cara-pintada chifrudo e sua gangue contra o Capitólio – onde um colégio eleitoral homologaria, horas mais tarde, a vitória do democrata Joe Biden.

Em conversa informal com apoiadores, Bolsonaro disse ter acompanhado a façanha de seu contraparte americano (“sou ligado ao Trump, né?”). Afirmou também que, como Trump, desconfiava de fraudes eleitorais, tanto na eleição americana quanto na brasileira – dando a entender que pode usar o mesmo argumento em 2022. Os dois presidentes “ligados” têm um quarto moinho de vento comum: as urnas, sejam elas eletrônicas ou de papelão.

No Brasil ou nos Estados Unidos, parte do apoio a populistas é interesseira ou ocasional. Lucas Berlanza, diretor-presidente do Instituto Liberal, um dos mais tradicionais “think tanks” da direita brasileira, chama isso de “Estratégia Jânio Quadros”. Segundo Berlanza, personagem do minipodcast da semana, foi o que ocorreu quando a UDN de Carlos Lacerda apoiou Jânio, e quando alguns liberais brasileiros endossaram Bolsonaro. Nos dois casos, deu errado. O apoio a Jânio destruiu a UDN. E os liberais, ao perceber que Bolsonaro não era um deles, vão desertando pouco a pouco do time do ministro Paulo Guedes.

O apoio de vários republicanos a Trump segue uma lógica parecida. Chocados com a gangue do chifrudo, muitos desembarcaram da canoa populista ao longo da semana passada. Pilares do partido e alguns de seus líderes mais populares renovaram o repúdio a Trump. O ator Arnold Schwarzenegger e o senador Jeff Flakes, herdeiro da tradição conservadora de Barry Goldwater, publicaram artigos-manifesto na The Economist e no New York Times.

A revoada dos apoiadores ocorre quando eles atentam para uma verdade incontornável. É da natureza dos populistas nomear e combater moinhos de vento. Quando seus seguidores atacam símbolos da República como o Capitólio, fica claro, no entanto, que pelo menos um de seus inimigos nada tem de imaginário: a própria democracia.

A maior parte da sociedade norte-americana, como a de qualquer país bem-sucedido economicamente, respeita de modo ativo e consciente, há muito tempo, as chamadas “instituições” – o Congresso, o Poder Judiciário, a Constituição, o império da lei e por aí afora.

No Brasil não há respeito praticamente nenhum, porque as instituições não se comportam de maneira a serem respeitadas. Na verdade, seus atos comprovam, o tempo todo, que estão fazendo o exato contrário disso. A estima da população pelo Congresso Nacional é zero; pelo Supremo, então, periga ser ainda mais baixa. Se fecharem ambos, pouca gente vai perder cinco minutos de sono. É onde estamos.

Caronte é brasileiro

 


Entre os imbecis e os filhos da puta

Não existe argumento mais forte que o resultado. João Dória fez a parte que lhe cabia e pôs a vacina que batalhou aqui. Jair Bolsonaro não fez a dele. Ou pior, fez a que se atribuiu e resulta em que ha nos centros de saude publica toneladas de falsos remédios e nenhuma ampola do remédio que cura porque, contra todas as evidências, concentrou-se sempre em providenciar uns e nunca em providenciar o outro. Ao contrário, além de menosprezar a virulência da doença, que logo passou a dispensar “comprovação científica” porque estava matando nossos amigos e vizinhos diante dos nossos olhos leigos, dedicou-se a negar o que ha séculos todos os fatos afirmam e confirmam sobre a eficácia da vacinação como única forma de deter epidemias e, para além de salvar vidas, permitir que os países voltem a trabalhar, que é o que ele sempre disse ser a sua prioridade.

Se dos testes resultou que a vacina CoronaVac é menos eficiente do que gostaríamos que fosse, isso nada tem a ver com a parte do trabalho que cabia a João Dória. Assim como Jair Bolsonaro nada teve a ver com o resultado melhor alcançado pelos testes da vacina da Oxford em que algum lúcido do seu governo, meio à revelia dele, conseguiu apostar afinal.

Tudo isso é fato. Tudo isso é história. Nada disso é “fake news”.

Mas nem a monumental estupidez cometida por Jair Bolsonaro, nem a admiração dele pela monumental estupidez de Donald Trump, alteram em um milímetro sequer a monumental cupidez da canalha que chupa o Brasil para além do bagaço.



Os governadores que superfaturam respiradores, que montam e desmontam hospitais de campanha sem usá-los, que desviam vacinas da fila de prioridades, que roubam o ar que a gente respira, continuam sendo o que são.

O mesmo SUS onde o Brasil pobre se foi abrigar da pandemia porque esta é a parte que lhe cabe deste latifúndio, onde pelejam os heróis que perdem sempre sabotados pela multidão dos ladrões que não perdem nunca, continua sendo, como a maior das contas estatais, o maior ralo da República, porque é para comprar barões ao rei e ser eternamente aparelhada e ordenhada que conta estatal existe em todo lugar do mundo, variando apenas o grau de cumplicidade das polícias.

Os vereadores, os deputados, os senadores; os políticos de todos os calibres e de todas as famílias que inflam morbidamente o custo do funcionalismo público num país miserável para fazer “rachadinhas” continuam sendo o que sempre foram.

Os autores do “maior assalto de todos os tempos”, conforme descrito pelo Banco Mundial que mede os efeitos dos cataclismos do gênero no planeta inteiro, continuam sendo os maiores ladrões de todos os tempos, embora soltos.

Os ministros do Supremo Tribunal Federal que dão sentenças contra “atos antidemocráticos” enquanto anulam monocraticamente votações inteiras do Congresso dos representantes eleitos do povo; os ministros que soltam de ladrões eméritos da Republica a chefões do PCC; os ministros que enriquecem com suas redes de “escritórios de advocacia” familiares a ponto de manter segundas casas em euros e em dólares ganhando R$ 39 mil por mês (US$ 7.330 ou E$ 6.037 ao cambio de ontem) continuam sendo exatamente o que os seus atos e os sinais exteriores de riqueza que emitem dizem que são.

Nunca se viu ou sequer ouviu qualquer membro da lista acima propor ou batalhar pela devolução de um privilégio, por menor que fosse, para salvar vidas, para tirar mães da miséria, para resgatar bebês da fome. Os poucos que o fizeram penam o ódio eterno de seus pares. Ao contrário. Agora mesmo, enquanto você lê, passando por cima de supostas “inimizades históricas” entre “direita” e “esquerda” – a divisão horizontal que nunca suplantou o corte vertical “nobreza” x “plebeus” que rege este país – estão tramando às claras, oficialmente, a tomada do comando do Congresso Nacional contra o compromisso solene de agir unidos contra o favelão nacional para não ter, jamais, nenhum dos seus privilégios vencidos.

A máfia que nos faz andar para traz, de década em década perdida, continua sendo a máfia que, sempre por motivo torpe e sem dar chance de defesa à vítima, tem feito o Brasil mergulhar mais fundo na miséria a cada dia que passa desde que escreveu e nos impingiu goela abaixo sem referendo a constituição da privivelgiatura, pela privilegiatura e para a privilegiatura. Só varia o primeiro lugar da fila dos excluídos de qualquer ameaça das eternamente “urgentes reformas” que, afinal, nunca acontecem: ora os marajás do Judiciário e os professores das universidades públicas que comem cada um por 50 professorinhas de pobre, ora os policiais e os militares de todos os denominadores e calibres.

Tudo isso também é fato. Tudo isso também é história. Nada disso, também, é “fake news”.

O Brasil é um país disputado a tapa entre os imbecis e os filhos da puta, com uma imprensa imbecil automaticamente alinhada aos imbecis e uma filha da puta automaticamente alinhada aos filhos da puta, o que faz os imbecis cada vez mais imbecis e os filhos da puta cada vez mais filhos da puta.

É preciso quebrar essa espiral do desastre.

Não, nem um gênio, nem um iluminado nem um salvador da pátria, pelamôr!

O povo, senhoras e senhores! O povo!

Aproveitemos essa rara janela de aplauso amplo, geral e irrestrito à democracia americana antes sempre tão apedrejada. Adotemos, nós também, o remédio que ela ensinou e que todo o mundo que deu certo adotou.

Nós, o povo!

O povo que não é ninguém. O povo que não é nem um grupo em especial. O povo que não é “de direita” nem “de esquerda”. O povo que é média e que é móvel…

Só ele tem legitimidade para ser governo. Só ele tem legitimidade para mandar no governo. O resto, QUALQUER poder desamarrado da prerrogativa de sanção pelo povo por um minuto que seja é, por definição, antidemocrático e invariavelmente predatório.

Bilhete cósmico

Usamos dizer que o mundo fica mais pobre quando vai embora um grande artista, mas, dado o nosso grau de miserabilidade, às vezes dá mesmo é um alívio por certas almas grandes já não circularem aqui embaixo. Penso em Hilda Hilst, que estaria hoje com 91 anos. Daqui a menos de uma semana, completam-se 17 anos desde que ela zarpou para Marduk. Penso na cronista que ela foi, louca de lúcida, escandalizando os leitores do Correio Popular de Campinas no começo dos anos de 1990.

Hilda não desistia, bradava até trair seu pessimismo, não se conformava, ia até a crônica revolver o balaio das sordidezes humanas para lhes fazer subir o cheiro bem na hora em que alguém se debruçasse ali. Funcionava. Uma gente chocada escrevia para o jornal. Hilda apostava em doses cavalares de espanto explícito para tentar acordar a alma do leitor, como numa ressurreição por eletrochoque.



Venha cá ver o país como fede, pornograficamente faminto, ostentando seus revólveres, suas malas cheias de dinheiro e seus esquadrões da morte. Vamos ver até onde o leitor aguenta. Furiosa, a cronista quer ferir pelo riso ácido se é que a dor do horror já não fere nem comove. Quer ser repugnante, quer ser escabrosa, e tão repugnante, tão escabrosa, a ponto de provocar a nostalgia da beleza.

Acontece que fomos e continuamos a ser levados a níveis de repugnância cada vez mais baixos e, às podridões de 1990, juntaram-se incontáveis e inomináveis outras que, no fundo, como reação ao nojo, ou, mais do que ao nojo, como reação à loucura muito próxima, acabam nos provocando é a nostalgia do esquecimento.

Então aqui vai este bilhete para você que é escolada em transcomunicação. Algumas notícias atualizadas do homo maniacus para você, Hilda, onde quer que você agora se ocupe de refulgir na infinita escuridão cósmica:

Atiradores aleatórios no topo de árvores não estão mais apenas dentro de uma página de Hermann Hesse. Lori Lamby também já andou passeando fora do seu caderno rosa e a mulher do verdugo desceu do palco junto com a turba canibal. O teatro de Nelson Rodrigues voltou a ser destaque nas livrarias. A poesia de Primo Levi pela primeira vez publicada no Brasil também tem tido boa saída. E você nem pode imaginar, nem eu quero lhe contar, o que tem acontecido com os bichos no nosso antiparaíso verde-amarelo, os bichos, os poetas, os artistas. Quantos já enlouqueceram e quantos mais andam mal pendurados pelas bordas. Um quadro de Bosch espetacularmente contemporâneo. Mas você já não pode ver nada disso com os próprios olhos. Que bom. Que sorte a sua, Hilda.
Mariana Ianelli

Para além do impeachment

O impeachment de Bolsonaro é absolutamente necessário para cessar o estado de anomia político-moral que ceifa a vida de brasileiros. Cada dia que passa significa a morte de milhares deles. As mãos manchadas de sangue não são mais só as do capitão. São de todas as forças que se movem por interesses políticos, por cálculos estratégicos (“deixa sangrar que ganhamos em 2022” etc.), por interesses pessoais e mesquinhos objetivamente coniventes com a barbárie eugenista do presidente.

É preciso, no entanto, ir além da questão do impeachment. É preciso responder à pergunta: como isso foi possível? Porque Bolsonaro jamais dissimulou. Ao longo de sua abjeta vida e de sua ridícula trajetória política, ele nunca escondeu o culto à morte, o gosto pela tortura, a frustração porque a ditadura não matou 30 mil pessoas em vez de 430, a admiração pelo homem que enfiava ratos e baratas na vagina de mulheres.

Como isso foi possível? A resposta está na compreensão do fascismo. Do que é a sua essência. Bolsonaro jamais escondeu o que era e o que pretendia, tal como Hitler e Mussolini. Hitler cumpriu rigorosamente o programa do Mein Kampf, publicado anos antes de sua ascensão ao poder. Bolsonaro cumpriu seu programa com a contingência da pandemia



A fala do fascista é essencial para levá-lo ao poder. Não se tratam de bravatas ou palavras ao léu como costumeira e ingenuamente se interpreta. O fascista busca se legitimar por meio do apelo a certa massa suscetível ao ressentimento social e por meio do apelo à pequena-burguesia, ou classe média, perdida entre o pavor da proletarização (que se torna pavor dos proletários, de seus partidos e de seus movimentos) e a sua própria representação no imaginário da grande burguesia. O ressentimento transforma-se em ódio. Essa massa cresce com desqualificados, escroques, oportunistas, lúmpens, também amealhados entre os trabalhadores.

O discurso de um líder fascista expressa a ideologia que cimenta o irracional dessa massa. Por isso ele precisa dizê-la. Ele nada fará sem essa torpe legitimidade. Após dizê-la, tem que cumpri-la para que essa legitimidade se transforme em poderosa força social. A liderança e a massa se nutrem reciprocamente da anomia moral que daí surge.

É por isso que o fascismo, em regra, prescinde de golpes dados na calada da noite por tanques que irrompem pelas ruas e tropas que tomam os centros estratégicos do poder. Eles simplesmente chegam ao poder pelo voto, como Hitler e Mussolini, Trump e Bolsonaro. No poder, a sua base de massa paralisa, imobiliza a parcela sadia da sociedade. Uma combinação fatal entre coerção e consenso.

O fascismo é sempre possível porque em toda sociedade há uma massa que pode ser galvanizada pelo apelo à irracionalidade, que pode se mover fascinada pela anomia moral que lhe permite dar vazão a impulsos primários, que lhe permite se situar em uma sociedade que não lhe reserva lugar algum e que não consegue construir a racionalidade que lhe aponte caminhos.

A quem isso tudo serve? O que disse até aqui procura explicar como o fascismo alcança o poder, como ele opera, mas não ainda o que é o fascismo. Não há fascismo sem capitalismo. Horkheimer disse certa vez que “quem não quer falar do capitalismo deveria calar-se sobre o fascismo”. O fascismo é uma das formas de dominação do capitalismo. A ruptura com as instituições clássicas do Estado representativo legitimada por essa combinação de coerção e consenso que o fascismo proporciona resolve crises de acumulação e/ou de dominação.

Não teria havido Bolsonaro, sua massa inculta, selvagem, negacionista, eugenista, assim como não teria havido Hitler, Mussolini ou Trump sem a poderosa força do capital monopolista, do capitalismo financeiro, sem o domínio dos meios de comunicação, sem o aparelhamento ideológico que o poder econômico consegue comprar, cooptar ou impor por seus mecanismos de controle.

Não basta, pois, embora necessário como imperativo categórico, lutar pelo impeachment. É preciso dizer que estamos morrendo não exatamente por causa do vírus, mas pelo que o capitalismo faz com o vírus. Estamos morrendo no Brasil porque o grande capital quis um fascista na presidência da República, porque o grande capital não quer tirá-lo da presidência da República, e não quer porque seu projeto ainda não foi concluído. Se esse projeto está custando 200 mil vidas pouco importa. Chegaremos a 500 mil e não continuará importando.

O desafio arrogante de Bolsonaro

A dor dos asfixiados em Manaus por falta de oxigênio, uma verdadeira tragédia nacional, despertou o “Fora, Bolsonaro!” e fez os panelaços de protesto soarem mais fortes do que nunca. Voltou a surgir assim a possibilidade de um impeachment para arrancar Bolsonaro do poder. Minhas colegas Giovanna Oliveira, Carla Jiménez e Flavia Marreiro nos contaram muito bem em seus textos neste jornal.

Sem dúvida é um primeiro passo para a saída do presidente, que demonstrou, como sempre, sua frieza e indiferença perante a morte. Um presidente que nem se dignou a ir ao lugar da tragédia para confortar as famílias que estão vendo seus entes queridos morrer por asfixia ―a pior das mortes, segundo os médicos.

E no entanto Bolsonaro, que se revelou incapaz de governar um país com a envergadura e a complexidade do Brasil, em vez de concentrar todas as suas energias em tirar da crise um país que “está quebrado”, como ele diz com sadismo, tenta apenas se blindar no poder para se reeleger.

Uma blindagem em várias esferas. A mais arrogante é quando ele afirma: “Só Deus me tira daqui.” E, se por acaso Deus se esquecer dele, buscará outras blindagens mais humanas. Primeiro a dos militares, cuja presença ele garantiu no Governo e em todas as instituições do Estado. É verdade que muitos deles já começam a manifestar um mal-estar em relação ao chefe. E é verdade que não permitiriam que ele tentasse um golpe. Mas esses militares são um escudo para Bolsonaro, pois é a primeira vez na democracia que um presidente lhes dá tanto protagonismo dentro do Governo.


Até mesmo seu vice, o general Mourão, o mais crítico dos militares do Planalto, acaba de excluir a possibilidade de um impeachment ao presidente. Mais do que isso: Mourão avisou que nas próximas eleições Bolsonaro não terá um oponente capaz de vencê-lo nas urnas.

Os militares poderiam ter saído antes do Governo, quando começaram a ver a forma como o presidente tratava até mesmo os generais, além de sua incapacidade de governar. Alguns deixaram o cargo, mas agora é tarde demais. Abandonar o Governo significaria uma confissão de derrota, algo que nunca farão.

Outra blindagem do presidente, talvez ainda mais forte que a do Exército, é a da corporação das polícias militares ―as quais ele está cobrindo de privilégios. Com a polícia, Bolsonaro garante também o apoio das milícias― com quem nutre uma relação umbilical e familiar. Quem assassinou Marielle?

Não só isso. Bolsonaro se sente blindado pelas elites empresariais, que continuam mantendo a miragem do falso apoio do mandatário a uma economia liberal. Isso apesar de que, em seus dois anos de exercício, ele deu provas contundentes do contrário. Essas elites empresariais, juntamente com as classes altas, continuam defendendo o presidente com medo de que a esquerda volte ao poder.

Existe ainda a blindagem, talvez a mais forte, da tomada de poder da Câmara e do Senado, onde, salvo surpresa, Bolsonaro conseguirá impor seus candidatos à presidência. O homem que havia chegado para acabar com a velha política tornou-se o paradoxo de ser seu maior defensor.

Para o Congresso, é uma festa o fato de que Bolsonaro, que havia prometido uma luta implacável contra a corrupção, tenha se transformado no maior inimigo dos que querem continuar apostando na luta contra o saque do dinheiro do Estado por políticos que buscam manter suas campanhas milionárias e enriquecer suas famílias. Bolsonaro tem interesses espúrios em defesa da sua, envolvida também em supostos crimes de corrupção. Com um procurador-geral da República ajoelhado aos seus pés e um STF que parece amedrontado, Bolsonaro se sente blindado.

Some-se a isso o fato de que o presidente, apesar de ter perdido pelo caminho muitos dos que nele votaram e hoje se sentem traídos, ainda conta com 30% de fidelíssimos seguidores, justamente os mais fanáticos e violentos, capazes de se organizar e até de lutar com armas para defender o mito, como ocorreu com Trump nos Estados Unidos. Ao contrário da oposição, que hoje parece incapaz de organizar um protesto nacional.

Por fim, Bolsonaro conta hoje com uma blindagem especial: a da grande massa de evangélicos e seus pastores. É um escudo seguro e forte porque é feito em nome de Deus. Bolsonaro se viu blindado ante um país com mais de 80% de fiéis quando criou seu lema “Deus acima de todos”.

Com todas essas proteções, poder-se-ia dizer que o presidente negacionista e insensível diante da morte pode continuar tranquilo, governando ou desgovernando, e que terá uma reeleição garantida. Mas na política, assim como na vida, nada é imutável e as surpresas são sempre possíveis. Acabamos de ver isso com Trump, o ídolo e amigo de toda a família Bolsonaro, que com sua derrota e sua possível inabilitação política deixou órfão e nu não apenas o mandatário brasileiro, mas também sua política exterior, comandada por um ministro que afirmou, logo após chegar ao Itamaraty, que “Trump e Bolsonaro foram escolhidos por Deus para salvar o Ocidente”.

Diz o ditado que “Deus escreve certo por linhas tortas”. Quem sabe esse Deus, apoderado no Brasil por todos os poderes fáticos, que o roubaram dos pobres e desfavorecidos, ainda dê uma surpresa.

Se Bolsonaro se escudar em Deus para tentar se manter no poder, é possível que acabe sendo abandonado por esse Deus, ao qual tenta monopolizar e instrumentalizar para seus objetivos espúrios. Se esse Deus reverenciado por Bolsonaro existisse, seria preciso buscá-lo hoje, mais que no centro do poder, no leito dos que estão morrendo asfixiados nos hospitais de Manaus por falta de oxigênio que o Governo lhes negou.

Dito em linguagem laica: talvez para o capitão belicista, que conhece e ama as armas como poucos, o tiro saia pela culatra. Ou, como afirmou a escritora e acadêmica Ana Maria Machado em sua coluna de O Globo: “Chega uma hora em que os pés de barro não sustentam mais ídolos, mitos e mentiras.”