domingo, 13 de janeiro de 2019

Pesca de mentira

A recente anulação da multa aplicada em 2012 a Jair Bolsonaro, por pesca ilegal em lugar ilegal, é mais interessante do que a sua notícia sugere.

Com a decisão, datada de dez dias antes da posse do novo presidente —mero acaso, é claro—, Bolsonaro foi retirado do cadastro de devedores da União.

Deu-se que há exatos seis anos o então deputado foi surpreendido por fiscais do Ibama em um bote inflável, no recanto de Angra dos Reis chamado de Tamoios. Deu-se também que Bolsonaro, o bote e seu equipamento de pesca de vara não podiam estar ali, na Estação Ecológica de Tamoios, área sob proteção em que a presença humana é proibida. No caso, eram presença, bote, motor marinho e pesca.

A multa foi de R$ 10 mil. O deputado recusou-se a mostrar documentos. A partir daí, o Ibama desenrolou um colar de inoperâncias muito ilustrativo da defesa ambiental que os governos brasileiros proclamam ao mundo com orgulho.

O auto de infração só foi emitido em 6 de março, dois meses e 12 dias depois do flagrante. O multado só recebeu a respectiva notificação em 6 de outubro. De 2014. Dois anos, oito meses e 12 dias depois da infração. Não pagou a multa.

Seu nome e a dívida foram, por isso, inscritos no cadastro de inadimplentes. Em 16 de outubro. De 2015. Um ano e seis dias depois de encerrado o prazo para pagamento.

Recursos de Bolsonaro fizeram o processo passar por duas instâncias de julgamento do Ibama. Em ambas, recusa dos recursos. Entra no roteiro a AGU, Advocacia-Geral da União, mas nem sempre pró-União. Já é dezembro, dia 7. De 2018.

A AGU se manifesta: Bolsonaro não teve direito a ampla defesa, os julgamentos do Ibama "não analisam os argumentos das peças defensivas e não fundamentam os indeferimentos" (dos recursos). Anule-se a multa, anule-se tudo. Volta ao zero.

Mas Bolsonaro, o bote, o motor e o equipamento de pesca foram apenas vistos e abordados. Foram fotografados pela fiscalização no ambiente da Estação Ecológica. A imagem não foi adulterada. Sua defesa nunca merecerá o qualificativo de ampla, em qualquer sentido. Não pode ser mais do que a negação do óbvio documentado e inquestionável.

Apesar disso, a defesa de Bolsonaro protocolada no dia 22 de março de 2012 baseia-se na afirmação de que, no dia, hora e lugar do alegado flagrante ele, na verdade, decolava no aeroporto Santos Dumont.

Um caso de ubiquidade? O chanceler Ernesto Araújo já delatou a união de Deus e Olavo de Carvalho como autora da eleição de Bolsonaro.

Não seria demais que Olavo intercedesse para santo Antônio ceder a Bolsonaro um pouco de ubiquidade emergencial. Mas um dos dois, que por certo não foi Olavo, falhou. A solução ficou para o próprio Bolsonaro. E não foi tão simplória quanto a AGU, o Ibama e o pouco noticiário aceitaram.

O flagrante e a decolagem puderam coincidir por um jogo de datas. Na argumentação defensiva, a data do flagrante, 25 de janeiro, cede o lugar e a importância factual ao dia 6 de março em que afinal foi lavrada a autuação —impossibilitada na ação fiscalizadora pela recusa de Bolsonaro a dar sua identificação.

Uma burla, portanto. E um exemplo, em se tratando agora de um presidente que promete mudar o exercício da moralidade no país.

Pensamento do Dia

Al Margen

Entre dona Damares e os perigos da filhocracia

O presidente Jair Bolsonaro resolveu só o menor problema, ignorando ou desprezando outro muito mais grave, ao confirmar a demissão de Alecxandro Carreiro, Alex para os amigos, da chefia da Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex). Inspirado talvez por Pepino, o Breve, ele ocupou o cargo por apenas uma semana. Poucos dias bastaram para ele afastar antigos funcionários, abrir espaço para aliados e entrar em conflito com gente de confiança de seu superior imediato, o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo. Sem conseguir um afastamento pacífico, o ministro anunciou a demissão de Carreiro. Um dos motivos indicados foi sua deficiência em inglês, pecado considerado grave numa pessoa encarregada de cuidar de exportações e de atrair capitais. Carreiro recusou a decisão do superior e recorreu ao presidente da República. Este apoiou o ministro e endossou sua decisão. De fato, nada no currículo do efêmero presidente da Apex podia justificar sua nomeação para o posto. Assunto liquidado, portanto? Só para os mais distraídos.

A questão mais séria, e até escandalosa, continua intacta. Essa questão se desdobra em várias perguntas. Quem indicou Alex Carreiro? Por que seu currículo inadequado e seu inglês insuficiente foram ignorados na hora da nomeação? Nada se combinou antes do início de sua atividade?

Parte importante do esclarecimento já saiu na imprensa, mas sem contribuição explícita de fontes oficiais. Alex Carreiro foi indicado por deputados do PSL e pelo senador eleito Flávio Bolsonaro, filho do presidente da República e ex-chefe de Fabrício Queiroz, o das movimentações “atípicas” apontadas pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf). Flávio Bolsonaro e Alex Carreiro apareceram juntos, sorridentes e em pose amigável, numa foto divulgada nos últimos dias.


Falta saber por que o presidente Jair Bolsonaro, responsável pela nomeação de Carreiro, aceitou a indicação sem submeter o candidato a algum controle de sua experiência e de sua capacidade para a função. Nomeações com critérios técnicos foram uma das promessas mais alardeadas pelo presidente durante sua campanha e também depois da eleição. Essa promessa nunca foi estritamente cumprida, mas também nunca foi renegada.

Quanto ao ministro das Relações Exteriores, por que aceitou tão passivamente a nomeação de um funcionário para um posto em sua área de responsabilidade? Por que esperou os desmandos do presidente da Apex e seus atritos com servidores da agência para começar a agir? Se Carreiro fosse mais cauteloso e evitasse conflitos, teria continuado no posto mesmo sem qualificações?

O episódio evidencia mais uma vez a influência dos filhos do presidente na escolha de pessoas para postos importantes. Confirma também a irrelevância de critérios técnicos para as nomeações. Indicações com base meramente ideológica e até religiosa são as únicas explicações para a escolha de vários ministros.

Nenhum argumento profissional ou técnico justifica, apenas para citar alguns casos, a nomeação dos ministros das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, da Educação, Ricardo Vélez Rodríguez, e da estranhíssima pasta da Mulher, Família e Direitos Humanos, a pastora Damares Alves.

A ministra e esses dois companheiros de governo poderiam formar um trio perfeitamente harmônico. Ela ensinou as cores adequadas a meninos e meninas, azul e rosa, e lamentou num vídeo recém-divulgado influência dos cientistas na formação do currículo de ciências das escolas. Mais que isso: lamentou haver-se permitido a inclusão da teoria evolucionista nos programas de ensino. Revelou absoluto despreparo para reconhecer as diferenças entre teorias, sujeitas a severos critérios de elaboração e de controle, e matérias de fé.

São manifestações muito parecidas com as de seus colegas. O ministro da Educação tem-se preocupado com a depuração do ensino, maculado, segundo ele, pela influência marxista e pela insistência em temas inadequados à moralidade, como as chamadas questões de gênero. Enganou-se quem esperava do responsável pela política educacional uma boa discussão sobre, por exemplo, como ingressar na chamada economia 4.0, assunto levado a sério em países bem mais competitivos, mas, muito provavelmente, menos virtuosos.

O ministro das Relações Exteriores chamou a atenção lamentando a decadência do Ocidente e apontando Deus – e logo depois Donald Trump – como única esperança de salvação. Há cerca de um século o historiador alemão Oswald Spengler escreveu sobre o drama ocidental e indicou a Alemanha para a missão salvadora, a mesma agora atribuída pelo chanceler brasileiro aos Estados Unidos da era trumpiana.

Esse ministro rejeita os acordos de preservação ambiental e a cooperação a favor dos migrantes (embora mais pessoas saiam do Brasil do que nele ingressem). Condena o multilateralismo e elogiou o governo chinês por executar suas políticas sem levar em conta limitações externas. Mas, se desse um pouco mais de atenção aos fatos, lembraria a pregação do presidente da China, Xi Jinping, a favor da liberalização comercial e dos compromissos sob as normas multilaterais da Organização Mundial do Comércio, torpedeada por Trump.

Alguns técnicos de boa reputação foram escolhidos para a equipe econômica, mas também nessa área o critério ideológico foi muito importante. O sucesso mesmo parcial do governo dependerá da competência desse pessoal, se o presidente, seus filhos, os ministros políticos e os conselheiros teológicos do Executivo se abstiverem de atrapalhar.

Há nos mercados uma preciosa confiança na implementação dos ajustes e reformas. Mas será preciso mais que essa política para uma dinamização duradoura da economia. Um governo com a cara da ministra Damares Alves poderá proporcionar esse algo mais?

Na prática, a teoria é outra

A palavra populismo causa histeria entre o auditório culto. Entendo. Mas, se ficarmos apenas pela teoria, é perfeitamente razoável defender o populismo em determinadas circunstâncias históricas. Se, como dizem os sábios, o populismo é uma espécie de ideologia em que o líder defende os verdadeiros interesses do povo contra uma elite distante ou corrupta, uma certa dose de populismo pode ser necessária para repor as regras do jogo democrático.

Basta pensar no Leste Europeu sob o domínio comunista — um exemplo que Cas Mudde e Cristóbal Rovira Kaltwasser defendem no seu pequeno tratado sobre o assunto (“Populism: A Very Short Introduction”).


Lech Walesa, na Polônia, ou Václav Havel, na Tchecoslováquia, eram líderes populistas contra a elite moscovita —e ainda bem.

Saber se o populismo é bom ou mau, para usar a terminologia infantil, não deve ser apenas uma mera questão teórica. É preciso olhar para as consequências políticas do ideário.

Nos casos de Walesa ou Hável, o populismo de ambos fez-se em nome da democracia liberal contra a tirania. Sobre os populistas de hoje, aplica-se o mesmo raciocínio: o que resultou das suas palavras, atos ou omissões?

 Yascha Mounk e Jordan Kyle publicaram um artigo na revista The Atlantic que resume algumas das suas conclusões empíricas. Os autores olharam para 46 líderes populistas em 33 democracias no período entre 1990 e 2018. Os sinais não são animadores.

Para começar, os líderes populistas tendem a se perpetuar no poder: a média é seis anos e meio contra os três anos dos democratas “normais”.

Além disso, 50% dos líderes populistas analisados reescreveram, na totalidade ou em parte, as respectivas constituições com o fino propósito de enterrar a limitação de mandatos ou de suspender o poder moderador do sistema de “checks and balances”.

Como consequência, verifica-se uma regressão mais acentuada da “qualidade da democracia” quando existem populistas na praça: uma regressão de 7% na liberdade de imprensa; de 8% nas liberdades civis; de 13% nos direitos políticos.

Em matéria de corrupção, a besta negra do populista clássico, 40% dos líderes populistas sob estudo estão ou estiveram indiciados pela prática de crimes.

Moral da história? O problema do populismo contemporâneo não está nos seus princípios, muito menos na sua lógica eleitoral. Está nas consequências mensuráveis da má governação. Saber se essa tendência se mantém no futuro é pergunta para angustiar os democratas liberais.

Nenhum véu cobre as estrelas

O que escreve o homem mais poderoso do mundo em seu diário? Que aflições surgem nas anotações pessoais de um homem que tem sob seu comando o país mais rico e o melhor exército do planeta? Não, não estou falando de Donald Trump, e sim do imperador de Roma no século II d.C., Marco Aurélio.

No filme Gladiador , Marco Aurélio aparece como um governante idoso e sábio (interpretado pelo ator Richard Harris) cuja morte dá início à decadência do império romano. Na vida real, ele morreu com apenas 58 anos, mas o filme não está longe da verdade ao mostrar seu reinado como um período de relativa paz e prosperidade, após o qual nunca mais Roma teria a mesma grandeza. Quanto à fama de sábio, podemos tirar nossas próprias conclusões ao ler suas Meditações , conjunto de anotações pessoais que são um dos livros mais singulares e mais influentes escritos por um homem público em qualquer época.

Temos todas as razões para crer que as Meditações não foram escritas pensando em outros leitores além do próprio Marco Aurélio. O texto é um conjunto de anotações esparsas, agrupadas sem critério e com algumas alusões obscuras a eventos e pessoas que só o próprio autor poderia entender. O livro não tem nem mesmo um título oficial; em grego antigo, o idioma em que foi escrito, ele era chamado despretensiosamente de Escritos para si mesmo . Mais tarde, receberia outros títulos: Meditações, Pensamentos , Solilóquios ...


Em que pensava Marco Aurélio? Seus problemas não eram pequenos: por um lado, hordas de marcomanos, quados, sármatas e outras tribos bárbaras ameaçavam constantemente as fronteiras do império; por outro, os romanos travavam uma longa guerra com o império parta, seu maior rival. Como se fosse pouco, uma doença mortífera e contagiosa, a peste antonina, dizimou mais de cinco milhões de pessoas durante seu reinado. Mas nada disso aparece de forma direta nas anotações pessoais de Marco Aurélio. Suas preocupações eram mais básicas e atemporais: qual a melhor maneira de viver a vida? Como ter certeza de que o que fazemos é correto? Como lidar com a morte e o sofrimento?


As obsessões de Marco Aurélio são poucas, mas fundamentais. As Meditações não apresentam conceitos inovadores, nem um sistema filosófico organizado; são apontamentos que repetem insistentemente as mesmas ideias em formulações diferentes, como se através dessa repetição Marco Aurélio buscasse fixar seu próprio entendimento de certas verdades essenciais, um entendimento nascido da experiência prática e não da crença em qualquer dogma ou doutrina.

Uma dessas verdades é a necessidade de analisar regularmente os acontecimentos da vida, incluindo as próprias ações e pensamentos: “Nada favorece tanto o crescimento espiritual quanto essa capacidade de estudar de forma metódica e detalhada tudo que nos acontece”.

Isso vale também para os que estão próximos de nós: “Quando estiver precisando de estímulo, pense nas qualidades boas de seus amigos: a capacidade de um, a modéstia de outro, a generosidade de um terceiro, e assim por diante”. O próprio Marco Aurélio dá o exemplo, fazendo um exercício que nos impressiona por sua simplicidade e eficácia: o primeiro livro das Meditações é uma lista detalhada de tudo que ele aprendeu com cada parente, amigo, professor e colega. De seu professor de retórica, por exemplo, ele diz o seguinte: “A meu mentor Fronto devo o entendimento de que malícia, perfídia e hipocrisia são inerentes ao poder absoluto; e que nossas famílias ‘de bem’ tendem, quase sempre, a faltar com os mais básicos sentimentos de humanidade”.

Do ponto de vista ético, as Meditações insistem na necessidade de identificar o que está e o que não está sob nosso controle, e saber agir de acordo com essa distinção. Mesmo o homem mais poderoso do mundo reconhece com humildade que aquilo que de fato podemos controlar está aquém do que geralmente supomos: nosso próprio corpo, nossos pensamentos e nossas ações, e só. O fundamental é fazer o melhor possível com o que está ao nosso alcance: “O que é o melhor que posso fazer ou dizer com os materiais de que disponho? Não importa o que for, você tem o poder de dizer ou fazer. Não invente desculpas”. 

A coerência de cada pessoa com seus próprios princípios, expressa em suas palavras e ações, é o refúgio que está disponível a cada um de nós, seja quais forem os nossos problemas: “Se você fizer seu trabalho de forma honesta, com cuidado, energia e paciência, sem se distrair com besteiras nem perder sua humanidade, e mantendo a divindade dentro de você pura e firme, como se tivesse que devolvê-la a qualquer momento – se você fizer isso sem medo nem expectativas, buscando apenas que cada ato seu esteja em harmonia com a natureza e que cada palavra sua seja rigorosamente verdadeira, então você será feliz. E ninguém poderá impedir isso”.

Igualmente importante, para Marco Aurélio, é saber reconhecer e aceitar com naturalidade todos os acontecimentos que fogem ao nosso controle: “Assim como você não se surpreende quando uma figueira dá figos, é absurdo se surpreender quando o mundo produz sua safra normal de acontecimentos. Um médico não se surpreende quando seus pacientes têm febre, nem o timoneiro se surpreende quando enfrenta um vento contrário”. Por um lado, isso implica não se perturbar com as ações e palavras dos outros; se você estiver realmente em paz com sua consciência, nenhuma palavra ou ação alheia poderá lhe abalar: “Alguém me despreza? Problema dele. O meu problema é garantir que nada que eu faça ou diga possa justificar esse desprezo”. Por outro lado, somos levados a admitir que o mundo está em mudança permanente: “Você está com medo da mudança? Mas há algo que possa existir sem ela? Há algo que esteja mais próximo da essência da natureza? Você consegue tomar um banho quente sem que a lenha tenha que passar por uma mudança? Você consegue comer sem que a comida tenha sofrido alguma mudança? Há algum processo vital que aconteça sem mudança? Você não vê que é a mesma coisa com você – que quando você muda isso é igualmente natural?”

A consequência lógica dessa aceitação é estar absolutamente à vontade com a morte. São inúmeras as vezes em que Marco Aurélio lembra a si mesmo da própria impermanência: “Finja que você morreu hoje e que sua história de vida acabou. De agora em diante, veja o tempo que lhe for dado como um acréscimo imprevisto, e viva em harmonia com a natureza”; “Alexandre da Macedônia morreu do mesmo jeito que o rapaz que tomava conta dos cavalos dele, e a mesma coisa vai acontecer com você”; “Logo você terá esquecido o mundo e o mundo terá esquecido de você”.

Bom, pelo menos nessa última frase creio que ele se enganou. São incontáveis os estadistas, artistas e pensadores que têm lido e apreciado as Meditações através dos séculos, de Frederico, o Grande a Bill Clinton, de Goethe ao ex-primeiro-ministro chinês Wen Jiabao. Não é difícil entender a atração que esse livro continua exercendo sobre tanta gente, quase 19 séculos depois da morte de Marco Aurélio. É raro, muito raro que alguém escreva de forma tão prática, com tanta clareza e tanta franqueza, sobre questões tão essenciais e tão perenes. Que esse alguém tenha sido o homem mais poderoso do mundo em uma época já bem distante da nossa, é tanto um sinal das mazelas do nosso tempo como um orgulho para a espécie humana. Enquanto existirem humanos, eles poderão olhar para o firmamento e pensar nessas palavras: “Os Pitagóricos nos aconselham a contemplar os céus ao amanhecer, para nos lembrar como os astros executam suas tarefas – sempre as mesmas tarefas, sempre do mesmo jeito; e para nos lembrar também de sua ordem, pureza e nua simplicidade, pois nenhum véu cobre as estrelas”.
Gustavo Pacheco

Brasil melhor


Enxugando gelo

A estupenda reportagem de capa do Estado na edição de domingo 16 de dezembro, sobre a insolvência de milhares de municípios brasileiros, demanda uma reflexão sobre as causas estruturais da calamidade permanente das nossas finanças públicas. Os que acompanham a vida política a partir da metade do século passado podem testemunhar a velha ladainha, o repetido mantra de todo novo governo, que antes de assumir promete tomar drásticas providências para diminuir substancialmente os gastos públicos.

Tancredo Neves, por exemplo, nos dois meses anteriores à sua malograda posse, declarava, todos os dias, que acabaria com a farra dos gastos públicos. Até Dilma Rousseff, ao nomear Joaquim Levy, disse que corrigiria a política fiscal de seu catastrófico “governo”.



Acontece que tais intenções, sinceras ou insinceras, não passam de falácia, bobagem, voluntarismo primário, nada condizente com os altos saberes dos sucessivos futuros ministros da Fazenda.

Nenhum deles ataca a causa central do desperdício orçamentário, isto é, o regime de estabilidade, origem das devastadoras despesas de custeio formadas pela massa dos proventos, vantagens e verbas indenizatórias (§ 11 do artigo 37 da Constituição federal) dos mais de 12,5 milhões de servidores públicos da União, dos Estados e dos municípios, que consomem, com generosos adicionais, todos os recursos orçamentários, expandindo o respectivo déficit, nos três Poderes e nas três esferas. A estabilidade do emprego público é amparada por um bunker normativo dentro da própria Constituição. Nenhum servidor público pode ser exonerado ou dispensado, salvo se cometer gravíssimos crimes contra a administração. Mesmo nessa hipótese extrema, cabem-lhe ampla defesa em infindáveis processos administrativos e judiciais. Enquanto não for condenado com trânsito em julgado, goza o funcionário réu de todos os proventos, vantagens e verbas indenizatórias (artigo 41 da Constituição). A propósito, não se conhece mais do que meia dúzia desses processos canônicos em todo o País durante os últimos 70 anos, apesar do envolvimento de várias centenas de servidores nos casos de corrupção levantados a partir de 2014 pela Lava Jato. E quando, após décadas, sobrevém a condenação, fica o servidor em disponibilidade ou é “compulsoriamente” aposentado, com todos os proventos.

Nos países democráticos desenvolvidos somente os poucos que exercem altas funções de Estado são estáveis. Nos Estados Unidos apenas juízes da Suprema Corte e oficiais das Forças Armadas são estáveis. Já em nosso país, todos os 12,5 milhões de servidores são estáveis. Desde o manobrista da garagem do Senado até os ministros do Supremo Tribunal, desde o gari da pequena prefeitura de cidade de 6 mil habitantes até o médico do posto de saúde. Todos, simplesmente todos, exercem “funções de Estado”, e não simples atribuições administrativas. Pergunta-se: qual a função de Estado de um funcionário de município? Não importa. Os 12,5 milhões de servidores são constitucionalmente “imexíveis”.

Esse monumental contingente de funcionários públicos é obra da atual Constituição, que, ademais, no artigo 19 das suas Disposições Transitórias, declarou estáveis todas as pessoas que trabalhavam na União, nos Estados e nos municípios em 1988, mesmo sem concurso ou qualificação profissional.
Por coincidência, temos hoje no Brasil a seguinte realidade social: no setor privado 12,5 milhões de desempregados procuram um posto de trabalho há quatro anos. No setor público, dos 12,5 milhões de servidores públicos, nenhum foi despedido no mesmo período. São estáveis. Têm emprego garantido para toda a existência. No setor privado todos os empregados se submetem ao risco de perder o emprego, como agora milhões deles, por causa da recessão e da estagnação decorrentes da insanidade fiscal e da corrupção dos governos recentes.

Os novos governantes afirmam que aplicarão a Lei de Responsabilidade Fiscal para limitar as despesas de custeio da máquina pública (artigo 19 da LRF). Mas como, se os servidores públicos não podem ser exonerados? União e Estados têm mais de 70% de orçamento e déficit em gastos com servidores, incluindo os inativos. E quase todos os 5 mil municípios - grandes, médios e pequenos - têm mais de 80% de suas receitas e déficit também vinculados ao pagamento da folha dos seus ativos e inativos. Há pequenos municípios do Brasil em que 100% dos homens válidos no perímetro urbano ocupam cargos administrativos. E todos estáveis. O resto da verba orçamentária deficitária dos municípios (20%) é gasto com os portentosos aparatos dos srs. prefeitos e suas inúmeras secretarias, além das dezenas de nobres vereadores com gabinetes recheados de assessores.

A questão, portanto, é de natureza estrutural, está no âmbito da Constituição, pois o déficit não nasce apenas dos péssimos governos anteriores. Só a quebra da estabilidade geral e irrestrita, acompanhada da isonomia previdenciária entre os setores público e privado, é que pode diminuir o déficit público e estabelecer o equilíbrio fiscal.

E aí volta a pergunta: onde o novo governo vai cortar? Vai intervir nos milhares de municípios e nos Estados que infringem a Lei de Responsabilidade Fiscal? Ou vão enfrentar o tabu máximo da República dos privilégios, instituindo, por meio de reforma constitucional, a estabilidade para as poucas e qualificadas funções de Estado, a par de extinguir o regime especial de aposentadorias do setor público? Tais medidas reduziriam em dois terços as pantagruélicas folhas de pagamento estatais. Fora disso não há que falar em cortar despesas, abater o déficit fiscal e retomar o investimento público. Vai-se, apenas, enxugar gelo.

Que o novo governo federal e o novo Congresso tenham a coragem de resolver esse problema, para podermos retomar a prosperidade econômica em bases sólidas e permanentes.

Pequenos mitos de míopes

Boa parte de nossa felicidade nasce do fato de vivermos rodeados (por vezes esmagados ou algemados) por mitos. Nem falo dos belos, grandiosos ou enigmáticos mitos da Antiguidade grega. Falo sim, dos mitinhos bobos que inventou nosso inconsciente medroso, sempre beirando precipícios com olhos míopes e passo temeroso
Lya Luft

Quando Isaac Asimov brincou de prever 2019 e acertou

No fim de dezembro de 1983, quando faltavam poucos dias para começar o ano que George Orwell escolheu como título de sua asfixiante distopia, o jornal canadense Toronto Star propôs a Isaac Asimov, já um escritor de sucesso de ficção científica, prever o futuro. Escolheu 2019 não por acaso. Era um salto à frente de 35 anos. Um salto parecido ao que era preciso dar para trás para chegar a 1949, o ano de publicação de 1984.

Os 35 anos também eram um salto de geração. Uma margem suficiente para que prever o futuro não fosse uma tarefa fácil demais nem entrasse irremediavelmente no campo da ficção científica, que era o que Asimov já escrevia havia quatro décadas. Nas revistas baratas, em semanários, em forma de livros, o autor soltava sua imaginação para traçar histórias de civilizações galácticas e robotizadas.

A popularidade de suas histórias e seu toque acadêmico — era bioquímico e lecionava na universidade — o tornavam um candidato perfeito para especular sobre o futuro. Longe de se mostrar conservador, quando o Toronto Star lhe pediu aquele artigo, Asimov deu asas à imaginação. Fez previsões sobre os computadores e as missões espaciais, sobre a educação e os hábitos de trabalho.



O “objeto móvel computadorizado” é o termo que mais chama a atenção em suas profecias tecnológicas. Asimov não especifica a que se refere, mas agora não podemos deixar de associar aquele objeto ao smartphone de hoje. Ele dizia que tais dispositivos penetrariam nas residências e seriam de uso comum. Eles já haviam surgido antes em sua literatura, como no conto A Sensação de Poder(1957), no qual é mencionado um “computador de bolso”.

A visão positiva que Asimov tinha da tecnologia contrastava nos anos oitenta com o crescente universo ciberpunk, a ponto de eclodir de vez com o escritor William Gibson e o cinema de Hollywood. Para o autor de ficção científica, no entanto, os computadores se tornariam indispensáveis em 2019, e isso seria benéfico para a sociedade.

O efeito imediato da adoção dos computadores seria mudar nossos hábitos de trabalho, algo que se pode afirmar com toda certeza que aconteceu. Basta pensar em como era um escritório em 1984. Asimov também vaticinava que alguns empregos desapareceriam em favor dos computadores e dos robôs, que fariam as tarefas repetitivas. Mas mais empregos seriam criados do que destruídos. Mais uma vez, pensava de forma positiva.

Asimov também assinalava que toda a população teria de aprender a usar os computadores. A sociedade precisaria trabalhar rápido para tornar isso uma realidade. Talvez mais rápido do que era capaz. O objetivo seria evitar que a geração seguinte não estivesse qualificada para realizar os trabalhos de maior demanda. O autor profetizava — aqui sim, de forma mais catastrófica — a divisão digital.

Em 2019, uma nova geração criada em um mundo de alta tecnologia estaria crescendo. O computador teria se tornado um elemento central na educação, deixando o professor como um mero guia de ensino. Esse momento ainda não chegou. E os celulares parecem servir mais para o entretenimento do que para uma finalidade educativa. Embora Asimov previsse que neste futuro qualquer pessoa teria oportunidade de aprender o que quisesse, quando quisesse e como quisesse. Em uma palavra: Internet.

Em relação à pegada ambiental do homem, o autor de Fundação via as coisas mais sombrias. “As consequências em termos de resíduos e poluição se tornarão mais evidentes e insuportáveis com o tempo, e as tentativas de lidar com isso serão mais desgastantes”, escreveu. Embora também apontasse que em 2019 teríamos em nossas mãos as ferramentas para solucionar o problema.

Seu incansável otimismo o levou a viajar mais longe no âmbito espacial. Em 2019 estaríamos na Lua “não para recolher pedras lunares, e sim para estabelecer uma estação de mineração para processar o solo lunar”. Ainda estamos recolhendo pedras e só agora a China conseguiu alunissar no lado oculto do satélite. No espaço também teríamos observatórios astronômicos e fábricas, que produziriam objetos difíceis de produzir na Terra. Os telescópios espaciais podem ser considerados observatórios astronômicos, mas ainda não existe nada parecido a fábricas em órbita.

Todas essas previsões se basearam em uma premissa otimista e, felizmente, acertada: não haveria uma guerra nuclear entre a União Soviética e os Estados Unidos. Era um temor ainda latente no início dos anos oitenta, antes do desmantelamento do bloco soviético. Que sentido teria descrever as condições de vida miseráveis dos poucos sobreviventes de um conflito nuclear?

O otimismo de Asimov era forte demais para considerar seriamente esse cenário. Assim como para seguir a corrente catastrofista do 1984 de Orwell. Por isso, Asimov terminou seu artigo dizendo que as grandes mudanças de 2019 seriam apenas um termômetro para outras mudanças muito maiores que estariam por vir. Agora cabe a nós, seres de 2019, especular sobre essas próximas mudanças.

Um novo ato em fevereiro

A relação de Bolsonaro com o Congresso é um enigma dentro do enigma. Ele promete romper com o velho esquema de governo de coalizão.

Esse já é um dos grandes desafios. Toda vez que se tentou, a percepção era de que formar um governo técnico seria possível, porém discriminar os políticos o levaria à ruína, uma vez que entre os políticos existe gente capacitada e ainda sem grandes problemas. A própria expressão discriminar é impensável num governo amplo.

Bolsonaro decidiu substituir os partidos pelas bancadas temáticas. Nada garante que elas não tenham os mesmos vícios, ou que possam oferecer fidelidade em temas que escapam ao seu campo de ação.

Houve renovação no Congresso. E foi superior às nossas previsões pessimistas, baseadas no fato de que os velhos caciques concentraram a grana para financiar a campanha.

Mas não foi possível, por falta de articulação ou mesmo perspectiva, unificar os novos com os mais experientes, aqueles que sobraram do desastre e poderiam pôr seu conhecimento a serviço de uma transformação.


Sozinhos, os novos não elegem a Mesa. E se elegessem estariam em dificuldades. Costumo dizer que 512 deputados estreantes e bem-intencionados seriam facilmente enrolados por uma só raposa regimental como Eduardo Cunha.

A saída que parece possível no momento é manter a velha direção; no caso da Câmara, Rodrigo Maia. Ele não sobrevive apenas por falta de alternativa. Sabe conciliar-se com as diferentes tendências políticas, enfim, traz um aprendizado que os novos não têm e os sobreviventes que por acaso o tenham não conseguiram capitalizar.

Dizem que Renan Calheiros é o favorito no Senado. Seria mais uma referência do passado, mostrando a limitação das mudanças. Não surgiu ainda no Senado, apesar da grande renovação, uma alternativa viável. O trunfo para evitar a vitória de Renan seria a conquista do voto aberto.

Sou favorável ao voto aberto e, dentro dos limites, lutei para que fosse ampliado o seu alcance na pauta de decisões. Mas o voto aberto numa eleição é sempre problemático.

A minoria pode se sentir constrangida em abrir um flanco para a vingança dos vencedores. Não falo de todos. Alguns são claros adversários de Renan e vão antagonizá-lo independentemente de voto aberto. E Renan saberá que votarão contra ele, mesmo na votação fechada.

O que os antigos dirigentes do Congresso podem oferecer a Bolsonaro, e parece que já indicaram isso, é rapidez e boa vontade nas reformas econômicas. Renan chegou a falar num processo rápido de votação, um fast track à moda do Congresso americano.

Se a aliança nas teses econômicas é fácil, em outro campo eles vão fazer corpo mole: as medidas contra a corrupção. Renan é a esperança que resta a alguns adversários da Lava Jato. Em vários momentos já demonstrou sua oposição a Sergio Moro.

Aí está o problema para Bolsonaro. Se, de um lado, será mais rápido aprovar medidas econômicas que não são assim tão populares, de outro, Moro vai comer o pão que o diabo amassou para aprovar sua agenda, que é muito mais popular.

É sempre tentador aprovar as reformas econômicas, com o apoio da imprensa e dos investidores. Talvez surja no governo a hipótese de investir nisso e deixar a agenda política para depois. Pode não funcionar.

Adiar a pauta de Moro não tem o mesmo efeito de adiar a pauta de costumes, que serve mais para animar a discussão nas redes sociais do que, realmente, mudar o País. Imagino a ministra de Direitos Humanos diante de três secretárias, alguns carros usados no pátio, batendo na mesa: “De agora por diante, menino veste azul e menina, rosa”. Dava o início de uma boa série da Netflix.

O combate ao crime organizado e à corrupção é tema urgente. Estou em Fortaleza, cobrindo a onda de ataques no Ceará. Mas nem precisava. Já estive antes, para mostrar como as facções criminosas dominaram as cadeias do Estado e se matavam pelo controle das ruas. Agora fizeram um pacto, uniram-se para a onda de terror.

No caso do crime organizado, não acredito tanto numa nova estrutura legal. É preciso inteligência e ação. Creio que a primeira faltou no Ceará quando anunciaram uma série de medidas repressivas sem estar preparados para ela. O golpe se dá de uma só vez, o bem é que se faz aos pouquinhos.

Na hipótese de aprovar as reformas econômicas, Bolsonaro pode se sentir forte. Mas as velhas lideranças também. Será muito difícil desatar o nó e abrir o caminho para a agenda de Moro. O ideal seria pensar todos esses temas no conjunto.

Mas no Brasil a campanha presidencial predomina. Em torno de um nome popular, as bancadas eleitas são uma espécie de arrastão. De fato, eles são novos, mas estão preparados para o longo combate? Os próprios presidentes, ocupados em garantir sua popularidade, esgrimindo frases de efeito, pavimentam sua vitória e deixam para depois a articulação dos grandes problemas.

Se é tudo tão nebuloso, por que escrever um artigo? Porque, apesar das confusões, existem algumas passíveis de ser previstas. Uma delas, inequívoca, é a de que a vitória de Renan e a relativa indiferença de Maia na defesa da Lava Jato podem levar, entre dezenas de pequenas barganhas, à grande e decisiva batalha em torno da corrupção.

Até que ponto isso foi apenas um tema de campanha? Até que ponto a corrupção é algo condenável apenas nos partidos de esquerda, ou é algo muito mais amplo e envolvente na História moderna do Brasil?

Essas previsões só serão mais bem desenvolvidas quando se fizer uma análise mais completa do novo Congresso. Por enquanto, temos nomes, biografias, mas só vamos conhecê-los mesmo diante dos grandes embates.

No meio do século passado as coisas eram mais previsíveis com as grandes bancadas da UDN e do PTB. Hoje é preciso esperar o começo e preparar-se para quatro anos de surpresas.