quarta-feira, 13 de maio de 2020

Pensamento do Dia


A agenda da cidadania

A pandemia e a crise econômica nos oferecem dor, ansiedade, tristeza. Mas a pandemia e a crise econômica também nos oferecem liberdade, justiça e avanços em direitos. Como já argumentava Thomas Paine no século 18, não há liberdade plena sem direitos fundamentais e, para alcançar tais direitos fundamentais, um humanista não pode deixar de defender que o Estado cumpra seus papéis fundamentais. Paine é uma espécie de guru dos libertários norte-americanos, muitos deles defensores das ideias de alguns intelectuais da Universidade de Chicago nos anos 1960 e 70, como o Estado mínimo. O que esses libertários talvez tenham preferido esquecer é que Paine, junto com outros grandes pensadores, lançou as bases do Estado de Bem-Estar social, cujo pilar era a renda básica, sobretudo para os mais jovens e os idosos.

No Brasil, a renda básica, ou a renda básica da cidadania, foi a luta de quase uma vida inteira do ex-senador Eduardo Suplicy. Não à toa, o ex-senador cita Thomas Paine em suas obras. Afinal, vem dali a ideia de cidadania, de que a renda básica transcende o assistencialismo para alcançar outro patamar de justiça social. Esse patamar diz respeito ao humano e a como nos percebemos uns aos outros. Antes da pandemia, era comum considerar esses temas como sendo utópicos, fantasias de intelectuais e políticos que jamais teriam chance de realização. Mas eis que, em plena pandemia, começamos a observar a formação de uma coalizão para construir uma nova realidade, mais justa, mais igualitária, mais humanista, aparecendo a renda básica como o eixo de uma economia com olhar humanista: uma economia do cuidado. Sem o cuidado das pessoas não há economia que tenha qualquer capacidade de resistência ao choque inédito que testemunhamos.

Já tratei da renda básica nesse espaço diversas vezes ao longo dos últimos dois meses. Aos trancos e barrancos, o Brasil conseguiu formar um consenso em torno da renda básica emergencial, programa que ainda haverá de ganhar as páginas dos jornais internacionais, hoje chocadas com a boçalidade presidencial. Tornar esse benefício permanente significa dar alguma chance a dezenas de milhões de brasileiros que hoje estão visíveis, posto que diretamente atingidos pela calamidade. Tornar permanente esse benefício representa uma chance ao Brasil de se mostrar novamente pioneiro pragmático de ideias antigas.

Há, nesse momento, muitos estudiosos debruçados sobre o tema da renda básica permanente, tentando desenhar propostas viáveis. São muitos os obstáculos. Eles vão desde a falsa ideia de que pessoas mais pobres, se receberem um benefício como a renda básica, deixarão de trabalhar – tese amplamente derrubada pelos vários estudos empíricos existentes – até as preocupações com o financiamento desse programa. A renda básica permanente, em tese, é mais onerosa do que o Bolsa Família. Contudo, se unificarmos todos os programas sociais do Brasil para financiá-la, há especialistas mostrando que parte significativa do custo seria coberta. Além disso, é sempre bom lembrar que aqueles que menos recebem são aqueles que mais consomem. Afinal, não é dada aos mais pobres a condição de poupar. Sendo assim, a renda básica fomenta consumo e consumo fomenta arrecadação, o que significa que o programa é, por definição, parcialmente autofinanciável.

Mas há outra questão de justiça social que caminha lado a lado com a renda básica: a justiça tributária. O País não pode mais ter uma estrutura que depende de tributação sobre o consumo e produção por serem esses impostos regressivos e empecilhos ao dinamismo e à produtividade de nossas empresas. É hora, sim, de começar a pensar na inversão da pirâmide tributária brasileira, desonerando o consumo e a produção, e onerando a renda e o patrimônio. Há quem diga que onerar patrimônio é contraproducente, pois levará à saída de recursos do País. Trata-se de um equívoco. Patrimônio não é apenas dinheiro no banco, mas imóveis e outros recursos que não são facilmente removíveis. Ninguém vai pôr um edifício debaixo do braço e sair com ele pelo mundo. Ainda que pudesse fazê-lo, para onde o levaria? Para a Europa? Para os Estados Unidos? Nesses países existe tributação de patrimônio e de renda. E neles se discute, hoje, a elevação desses tributos. Para quê? Para que se possa ter uma agenda de cidadania para enfrentar a crise humanitária.

O Brasil não é diferente, não há qualquer particularidade que o impeça de pensar essa agenda. Ao contrário, no Brasil há uma avenida de oportunidade para reduzir as desigualdades profundas e diversas. O Brasil só será diferente se resolver desperdiçar o momento valioso para uma frutífera e esperançosa discussão. A discussão sobre a agenda da cidadania é a única que realmente importa.

Já é outro dia

Na linha do tempo, já é outro dia. O vídeo da reunião que expôs as vísceras de um governo em decomposição, principalmente pela atuação do presidente Jair Bolsonaro e os discursos do chanceler Ernesto (bobo da corte) Araújo e Abraham (pior ministro) Weintraub, foi entregue na sua integralidade e visto por algozes e réus. Permanecerá nos arquivos como uma marca definitiva de um time perdido, sem líder ou objetivo, eira ou beira. Um alto encontro de baixo propósito. Desdobramentos são, por enquanto, imperscrutáveis. Os fatos registrados podem dar em tudo, como identificar o crime de que é suspeito o presidente, ou nada, se o procurador-geral da República assim entender.

O segundo vendaval que atravessou a semana transportou o País, machucado por doença e mortes, a outra situação indefinida. Como ficamos depois do depoimento dos três ministros do governo Jair Bolsonaro, em cargos civis e políticos na Presidência, sobre as denúncias do então ministro da Justiça, Sérgio Moro. Já terão tido o seu efeito e será preciso superar a fusão que se tentou fazer de seu desgosto por esta convocação com a adesão das Forças Armadas aos propósitos pessoais do presidente da República.

Pularam o Rubicão e o mundo não acabou, como previam. Os seus desdobramentos, porém, ainda estão embaralhados.

Inspirados por um incendiário contumaz que habita o cerrado, fizeram tempestade em copo d’água. Exagero diante de um termo do jargão convocatório da Justiça, revelando insegurança e o infortúnio de estarem, como únicos avalistas, em um governo de que não se sabe, nem eles, absolutamente nada.


Entregaram o vídeo, que foi visto, deram seu testemunho e a investigação segue. Como ela, também segue procurando seu eixo o movimento dos militares diante de proposta de participação política mais efetiva e adesão incondicional ao presidente.

Baixou a temperatura na área militar, mas ainda há brasas acesas. O presidente Jair Bolsonaro mistura propositalmente os problemas para obter as soluções também misturadas, uma pela outra.

O governo não se curou da aposta no aprofundamento da divisão entre a reserva, os comandos e as tropas.

A intervenção militar que paira como ameaça não encontra ressonância, por enquanto. Os comandos não veem condição de participar de outros projetos que não sejam o combate à pandemia, interna e externamente, e sua sobrevivência. Mas o governo é autossuficiente e o código deste problema já se apagou.

As prioridades das tropas são as mesmas do conjunto do planeta, preservar a vida. É conhecida a posição de Bolsonaro sobre a covid-19, desdenha e desvia o assunto, e mantém sob pressão o comandante Edson Leal Pujol, do Exército.

O ambiente dos quartéis é propício ao contágio e já há mortes. É como se houvesse um confinamento de milhares de pessoas que se alojam, almoçam, dormem, viajam e trabalham juntas. O presidente pretende que sejam destemidos como seus ministros que considera exemplares, a quem dá fôlego e que o fazem rir. Gostaria, certamente, que todos seguissem Weintraub e Araújo. Não é por acaso que se conectaram os dramas da entrega do vídeo e dos depoimentos dos ministros.

O que agride, nesta estirpe mais chegada a Bolsonaro, cuja performance se espelha no mestre de todo o grupo, não é uma questão ideológica ou política. É a ausência de decência. Não se imaginam os militares seguindo uma liderança com este comportamento.

Morrerão por um governo alvo de investigação, imerso em isolamento político, cultural, social, embalado no discurso do achincalhe?

O mais provável, superada a valentia que antecedeu a decisão de depor ao Supremo, é que os ministros passem a viver mais a realidade.

E esta é o aumento das mortes pela covid-19, inclusive nos quartéis, e o presidente Jair Bolsonaro na mão do Centrão.

Constrangimento dos generais

Quanto mais os militares defenderem o governo neste momento, mais eles se misturarão a ele. Isso é do interesse de Jair Bolsonaro, a quem sempre foi benéfico esconder-se atrás dos militares. Mas e as Forças Armadas? O que ganharão negando diariamente, na prática, os valores que dizem defender?
Miriam Leitão

Mascaradas

Fosse esta crônica publicada no último final de ano, muitos leitores iriam pensar que eu estaria antecipando o clima da festa da vida: o carnaval brasileiro. Esse rito afim das fantasias, nas quais as máscaras davam licença para todo tipo de comportamento impróprio. Já se disse que se mascarar é a coisa mais próxima da invisibilidade e do anonimato.

Uma experiência, aliás, difícil de ser vivida neste país onde ser famoso, conhecido ou autoridade (obviamente uma máscara) faz com que se tenha licença para ignorar regras. Se eu não sabia com quem falava, agora — com a obrigatoriedade de usar a máscara contra o vírus — existe um anonimato contrário ao nosso estilo de vida. Um estilo que, conforme adiantei em minha obra e nesta coluna, faz com que o abraço e o cheiro — o contato corporal — sejam uma prova de reconhecimento, carinho, afeto e consideração.

Agora, ninguém deve mesmo saber com quem está falando porque nossas “caras” (em que só mamãe botaria a mão) estão encobertas e escondidas. Além disso, a semi-invisibilidade social cria uma semelhança oculta entre o vírus e um dos seus remédios mais eficazes.

Estamos todos vivendo num mundo um tanto incômodo e obrigatoriamente anônimo com suas drásticas e dramáticas consequências. A mais pungente delas talvez seja a de não poder se despedir dos nossos entes queridos quando eles confirmam a sua transitoriedade e seguem para o túmulo; sobretudo a vala comum, numa brutal e imerecida equanimidade.


É triste demais não estar com um ente amado na sua hora final (que é também um pedaço da nossa); esse que vimos nascer ou que nos trouxe ao mundo demandando lágrimas de felicidade ou de dor, pois tanto as entradas quanto as saídas são inevitavelmente marcadas, tal como a primeira e a última vez.

A pandemia nos apresenta e atropela com a presença da passagem, do episódico e da transitoriedade. Com um horrível detalhe: o vírus, logo a doença, não tem propósito ou intenção. Ele produz tanto a imensa dor quanto uma prova desagradável de que somos permanentemente rondados pelo infortúnio e pelo aleatório. Apesar dos anúncios de uma superinteligência artificial, nossa capacidade de previsão, mesmo as mais técnicas, está sempre sujeita ao imprevisto e nada do que traz plenitude emocional — amor, felicidade, dinheiro, poder, fama, beleza, inteligência e energia — é permanente. Somos todos, conforme ensinou Freud pelos idos de 1915, sensíveis à severa ausência do permanente e do eterno.

Perdemos a nossa inocência e ficamos cínicos e velhos. Nossos entes amados morrem vitimados por um vírus não previsto ou num acidente. De um lado, é uma irreparável perda mas, como remarca Freud, todo luto engendra uma oportunidade de descobrir novos caminhos e outros objetos e sujeitos preciosos. Graças à transitoriedade, a vida e a saúde acabam sendo maiores do que a doença e a morte.

Talvez o nosso dever, como diz outro mestre —Thomas Mann — , seja o de compreender que, sem a passagem e a transitoriedade (essa relativização da eternidade), jamais seríamos humanos. Mais: quando todas as vezes que desejamos superar o humano criando uma fórmula ou um sistema definitivo, abraçamos o vírus da intolerância, do orgulho, da morte e, sobretudo, da injustiça, porque negamos aquilo que só nós, humanos, possuímos: a consciência dolorosa e benfazeja de que, se a beleza passa; o mal, a burrice, a intolerância e a doença também se vão no inevitável desenrolar do tempo — o senhor da vida.

A “mascarada” defensiva não é festiva. É um sinal de perigo, guerra, morte e contágio. Uma espécie de respeito desagradável ao poder inexorável da morte, que é o marco definitivo da igualdade neste mundo. E hoje símbolo da doença mortal que — esperamos — seja como a dor e o prazer, episódica. Como todos nós, comuns ou famosos, fracos ou fortes, com ou sem máscaras, diante da pandemia, que obriga a usá-las; resta buscar a tarefa de vestir e, tanto quanto possível, diminuir a crueza dessa imensa desigualdade constitutiva do Brasil.

O que fazer quando morrem tantos ao mesmo tempo? Quando perdemos gigantes da literatura, da música, do jornalismo e da dramaturgia ao lado de pessoas comuns que, no entanto, viveram suas epopeias e sofreram o humano desequilíbrio de felicidade e infortúnio. É dolorosa essa experiência de viver a morte que deveria ser exceção virar uma pavorosa rotina. Quando os mortos ultrapassam a capacidade dos cemitérios, sabemos que a pandemia é, num plano profundo, uma mascarada fúnebre.

Confiante no dispositivo

Do alto de seu palanque presidencial, Jair Bolsonaro espuma, impreca, manda calar a boca e, em seguida, faz-se de indignado e urra que "chega", "sua paciência se esgotou" e que as Forças Armadas estão "com o povo" —leia-se, com ele, Bolsonaro. Dá a entender que, a um comando seu, tanques, aviões e navios se porão em marcha e arriarão o peso de suas armas sobre o STF, o Congresso, a imprensa e quem mais discorde dele. Cita a Constituição, as instituições, a liberdade e a democracia, mas deixa implícito que, para garanti-las, será preciso primeiro destruí-las. E, para isso, está escorado pelos militares.

Muita gente já acreditou nisso no passado. Em 1964, outro presidente, João Goulart, foi levado por uma claque palaciana e sindical a tomar atitudes contra sua natureza de homem tíbio e inseguro, como a de propor reformas "na lei ou na marra", permitir a instabilidade política e insuflar a intranqüilidade nos quartéis. E tudo porque o convenceram de que estava protegido por um "dispositivo militar" organizado pelo general Assis Brasil, chefe da sua Casa Militar.


Segundo o dispositivo, todos os comandos de tropas estavam alinhados com Jango. Os generais A, B e C eram "nossos"; X, Y e Z também; o general K, de São Paulo, era "compadre do presidente"; e Fulano, Beltrano e Sicrano estavam "enquadrados". Tudo nos conformes. Não só as esquerdas acreditaram nisso. A direita também --daí o golpe.

No dia 1º de abril, o golpe marchou, e o fabuloso dispositivo era uma miragem. Seus tanques não saíram, aviões não voaram, navios continuaram boiando. Os generais com que ele contava ficaram em casa, de pijama, ou traíram. O próprio K —Amaury Kruel—, compadre ou não, foi um. O dispositivo existia, mas era o do inimigo.

Bolsonaro já deixou Jango no chinelo em matéria de barbaridades contra a ordem legal. Está confiante em seu dispositivo militar.
Ruy Castro