quinta-feira, 16 de novembro de 2023

Pensamento do Dia




O entretenimento engole a política

Você olha e fica boquiaberto. Mas como pode ser? Você esfrega os olhos, não é possível que esteja vendo o que vê. O modo como as pessoas reagem às notícias desperta no seu espírito uma incredulidade perplexa. Tudo na política – tudo mesmo, sem exceção – virou uma questão de torcida organizada, de arrebatamento de almas (pequenas) e de furor irracional. Nos tempos da covid a gente viu de perto: a hidroxicloroquina vai dar certo porque eu tenho fé; a ivermectina vai salvar vidas porque eu acredito; a vacina chinesa carrega um chip oculto que vai rastrear os desejos de consumo da vizinha, eu sei, eu vi um vídeo na internet. Parece loucura. É loucura.

A polarização se faz de ânimos conflagrados, não mais de opiniões divergentes. A metáfora da ágora grega não serve mais para representar o debate público. A imagem da disputa de pontos de vista entre seres racionais perdeu a validade. Agora, as multidões se sentem em guerras santas, em cruzadas sanguinárias, se sentem no Coliseu de Roma apontando o polegar para baixo. O script do tempo são os linchamentos virtuais. O fundamentalismo corre solto. Intolerância na veia. Nos Estados Unidos, os numerosos radicais do Partido Republicano trabalham com o dogma tácito de que as eleições de 2020 foram roubadas, e ai de quem discordar. Para muita gente, o aquecimento global é um mito fabricado. Eis o colégio eleitoral do nosso tempo.


Como explicar esses efeitos de estrondos e de fúria? As hipóteses são múltiplas, não necessariamente excludentes, mas uma delas fala mais alto: o universo da política foi inteiramente tragado pela linguagem do entretenimento – e, no entretenimento, a reafirmação do ego (ou do eu) vale mais do que a verdade dos fatos. Ponto. Parágrafo.

É verdade que, desde que o mundo é imundo, a política traz na sua fórmula ingredientes teatrais, elementos lúdicos e temperos passionais. Sempre foi assim. A partir da prevalência das plataformas sociais, contudo, a coisa mudou de patamar. Todas as escolhas que antes se resolviam na esfera da pólis hoje se decidem num imenso reality show interativo, onde o desejo íntimo sobrepuja com folga (e com gozo) o interesse público. A razão e a objetividade escasseiam, enquanto as emoções eclodem, em apoteoses surdas.

O que vemos diante de nós não combina mais com os conceitos que valiam até algumas décadas atrás. É outra coisa, outro bicho. Já deram a esse ambiente, em que as questões políticas se comportam como atrações circenses, o nome de “era da pós-verdade”. Foi com essa expressão, aliás, que a revista The Economist se referiu à campanha presidencial de Donald Trump, numa reportagem de capa em setembro de 2016. Por certo, podemos nos referir à nova geleia geral como a “era da pós-verdade”, mas o fenômeno é maior do que imaginávamos em 2016. É mais monstruoso e mais profundo.

Vejamos o que se passa com a comunicação dos partidos, das autoridades estatais, das ONGs ou dos organismos internacionais. Essa comunicação já não interpela a razão, mas a emoção – e faz isso em formatos melodramáticos. Ou a mensagem segue o alfabeto visual estabelecido pela indústria do entretenimento, quer dizer, ou a propaganda assimila as narrativas baseadas no modelo bonzinhos-contramalvados, ou não encontrará eco nas mentes e nos corações.

A que se reduziu o impasse da guerra do Oriente Médio? A uma disputa interminável sobre quem é que merece ser posto no papel de vítima. Os escombros da Faixa de Gaza – escombros urbanos, escombros humanos – são apenas o epicentro cenográfico de uma imensa guerra de imagem para ver quem consegue tomar para si o papel de vítima. Quem fizer jus a esse lugar merecerá o amor incondicional da plateia (antes conhecida como opinião pública). Acostume-se. A realidade se comporta como um filme de aventura, com princesinhas desprotegidas, cavalos suados e rapazes incultos, mas valentes.

Assim como o ideólogo do início do século 20 cedeu seu posto ao marqueteiro do início do século 21, o instituto da razão perdeu terreno para as identificações pulsionais, libidinais, fáceis e acachapantes propiciadas pelas técnicas industriais do entretenimento. A política hoje integra o vasto comércio das diversões públicas. O cidadão, que era a fonte de todo o poder, acomodou-se na condição de consumidor voraz de sensações estupefacientes. Não é mais como cidadão que ele se mobiliza, mas como torcedor fanático, como religioso fiel ou, ainda, como fã ardoroso. Se você ainda tem dúvidas, releia as mensagens que chegam nos grupos de WhatsApp. Lá estão os sintomas: os abaixo-assinados sentimentais, as figurinhas animadas que defendem uma tese em um único segundo, as subcelebridades desocupadas pontificando sobre assuntos complexos como se discorressem sobre o uso da cebola numa receita vegana. Está na cara, não está?

Não, isso aí não vai dar certo. Quando as decisões que afetam a ordem do comum repelem o entendimento do que seja o bem comum, é porque vai dar ruim. O conceito de República se desfaz na poeira do tempo.

Conselho aprova pausa na guerra, mas Israel não aceita

Imaginem um terremoto na Faixa de Gaza maior do que aquele que ocorreu em fevereiro passado na Síria e na Turquia, quando morreram 7, 2 mil pessoas e 35 mil ficaram feridas. Todos os países da região, inclusive Israel, se mobilizariam para socorrer as vítimas, enviando bombeiros, médicos, enfermeiros, psicólogos e outros profissionais. Doações de mantimentos e medicamentos, bem como equipamentos hospitalares e de construção civil, seriam providenciados, com a mobilização de organizações humanitárias para fazer com que tudo isso chegasse aos flagelados no menor espaço de tempo possível. Feridos e desabrigados seriam levados para hospitais e abrigos, respectivamente.

As imagens da destruição causada pelos bombardeios de Israel em Gaza são muito piores do que as de um terremoto daquelas proporções, mas nada disso está sendo feito, muito pelo contrário, a destruição continua. Apesar de o Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU), pela primeira vez, aprovar uma resolução sem vetos sobre a guerra na Faixa de Gaza, que possibilitaria a mobilização humanitária descrita acima. Israel já avisou que não pretende acatar a decisão e continuará os ataques contra o Hamas, como aconteceu no hospital Al Shifa, ocupado desde quarta-feira.


Nesta quarta-feira, as Forças de Defesa de Israel (FDI) anunciaram ter encontrado armas do Hamas no hospital e infraestrutura que seria o “coração” do grupo terrorista. Os soldados interrogaram dezenas de civis antes de liberá-los, mas há denúncias de violência contra pacientes e intimidação de médicos e enfermeiros. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), o estabelecimento da ONU abriga, atualmente, 2.300 pessoas, entre pacientes, profissionais da saúde e deslocados pela ofensiva israelense no território palestino.

A resolução do Conselho de Segurança foi proposta por Malta, com foco nas crianças da Faixa de Gaza, que estão sendo mortas, muitas das quais soterradas nos bombardeios. Determina uma pausa nos ataques, para que ajuda humanitária chegue à população civil, principalmente às crianças que estão na área de conflito, muitas delas feridas ou recém-nascidas, que precisam ser resgatadas. O objetivo da pausa seria facilitar “o fornecimento contínuo, suficiente e sem entraves de bens e serviços essenciais — incluindo água, eletricidade, combustível, alimentos e suprimentos médicos”.

Entretanto, o Ministério das Relações Exteriores de Israel anunciou que não haverá pausa até que os reféns em poder do Hamas sejam libertados. A narrativa do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu para justificar os bombardeios é de que os civis, sobretudo mulheres e crianças, são usados como escudo pelo Hamas.

Por ora, a decisão do Conselho de Segurança é uma declaração de intenções: Israel e o Hamas devem evitar privar a população de Gaza de serviços básicos e da assistência humanitária indispensáveis à sua sobrevivência; reparações de emergência em infraestruturas essenciais em Gaza; evacuação de crianças doentes ou feridas, e de seus cuidadores; ações de resgate de pessoas que desapareceram nos bombardeios, após edifícios do território palestino terem sido danificados e destruídos.

As resoluções do Conselho de Segurança, pela Carta da ONU, deveriam ter efeitos práticos. Nesse caso, permitir o acesso total à Faixa de Gaza das agências da ONU e de seus parceiros, como o Comitê Internacional da Cruz Vermelha e outras organizações humanitárias. Para isso, é necessária a pausa na guerra e a liberação do acesso aos hospitais e às instituições que abrigam os palestinos. Isso é impossível sem autorização do exército israelense.

A resolução da ONU, porém, reflete uma mudança de postura do governo dos Estados Unidos, que se absteve na votação, ao lado da Rússia e do Reino Unido. A resolução foi aprovada por 12 votos. China, que agora preside o órgão, e França, que tem poder de veto, votaram a favor. Albânia, Brasil, China, Emirados Árabes Unidos, Equador, França, Gabão, Gana, Japão, Malta, Moçambique e Suíça, sem poder de veto, garantiram a aprovação.

Apesar de não condenar Israel nem classificar o Hamas como grupo terrorista, a resolução tende a aumentar o isolamento internacional de Netanyahu, que não demonstra nenhuma preocupação quanto a isso, porque sabe que os Estados Unidos não romperão os compromissos financeiros e militares que já assumiram nesta guerra. A abstenção norte-americana na votação deve-se à enorme pressão da opinião pública mundial e do desgaste junto aos países muçulmanos, principalmente países árabes da região.

O Ministério das Relações Exteriores do Brasil, que muito se empenhou pela aprovação, comemorou a decisão, que vai facilitar o resgate dos brasileiros que ainda estão em Gaza. A abstenção dos EUA coincide com o encontro entre o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, e o presidente da China, Xi Jinping, que não trataram do assunto publicamente. Entretanto, Biden vem reiterando a posição favorável à existência de dois Estados e que a Cisjordânia e a Faixa de Gaza, após a guerra, sejam administradas pela Autoridade Palestina, posição que o atual governo de Israel não aceita.

Antissemitismo 2.0

Está sendo difícil acompanhar o noticiário da guerra em Gaza e, ao mesmo tempo, perceber a onda de antissemitismo que varre o mundo. Para nós, judeus e descendentes de judeus, o antissemitismo não é novidade; novidade é ver como está naturalizado. Até outro dia, pessoas antirracistas e defensoras de minorias tinham vergonha de se declarar abertamente antissemitas; não mais. Ser antissemita agora é cool, virou tendência.

Tento não ser paranoica e não ver um monstro em cada esquina. Tento acreditar que os pagodeiros que batucavam em São Paulo com bandeiras do Hamas, usando camisetas do Hamas, cantando slogans pró Hamas, não fazem ideia do que realmente seja o Hamas (ainda que não tenha ilusões quanto às pessoas que lhes forneceram tais camisetas e bandeiras).

Tento imaginar que as imensas manifestações nas grandes cidades cosmopolitas são de fato pró-Palestina, e não anti-Israel; mas é difícil. Não dá para ignorar os cartazes pregando o fim do povo judeu, nem deixar de perceber que boa parte dos manifestantes cobre o rosto à maneira dos terroristas do Hamas (e não do povo palestino em geral). Vários chegam a usar a faixa verde dos terroristas, com a clássica inscrição em árabe (o que está escrito é “Não há deus senão Alá, e Maomé é o seu profeta”).


Não dá para fazer a Pollyanna por muito tempo ao constatar que o Irã continua matando mulheres que não usam o hijab e não se ouve um pio de protesto; que a China continua dizimando os uigures e só há silêncio; que mais de 150 mil pessoas já morreram na guerra que a Arábia Saudita promove no Iêmen, ou que mais de 500 mil morreram na Síria, e quem se importa?

Quem foi aos Champs Élysées por elas, ao Times Square, à Cinelândia?

Não quero ser sommelier de manifestações, mas é difícil não juntar os pontos — e é difícil também não concordar com aqueles manifestantes que, sincera e genuinamente, sofrem pelo povo palestino e querem ver o fim da guerra.

Eles existem, e eu estaria entre eles se isso não me pusesse em tão má companhia.

* * *

A despeito do que venha a acontecer, o Hamas já ganhou a guerra da opinião pública. Não há ser humano que consiga absorver a violência em Gaza, dia após dia, sem um baque no coração. Diante do horror que sofreu, Israel deveria ter se recolhido e pensado com extrema cautela nos próximos passos, de preferência concentrando-se no destino dos reféns. Ao contrário, agiu exatamente como o Hamas esperava que reagisse. Xeque-mate.

Um país não pode lutar contra o terrorismo reagindo com o fígado. Países precisam ter cérebro, não vísceras, especialmente diante de um inimigo que cultiva o martírio de inocentes.

Fala-se muito da desproporção entre o poderio militar israelense e os recursos do Hamas, mas ela vai além de uma simples contagem bélica. O desequilíbrio não favorece Israel: não há exército que possa com fanáticos que almejam o paraíso (e dominam as redes sociais). Nada justifica que Benjamin Netanyahu ainda esteja no poder. O seu governo é uma praga bíblica, uma maldição que, pelo resto dos tempos, vai desafiar a compreensão do mundo.

Política criminosa de Netanyahu é derrota moral de Israel

É um sinal de que as coisas não andam bem no mundo do sionismo real quando vemos porta-vozes de Israel se desdobrando para tentar explicar a diferença entre o morticínio de crianças e civis provocado pelo Hamas e o morticínio de crianças e civis provocado por Binyamin Netanyahu.

Lembro-me aqui de atrocidades do socialismo soviético, vistas por intelectuais comunistas como efeitos colaterais da luta inarredável contra os inimigos da grande revolução. Eram claros os sinais, então, de que havia algo de podre no reino do socialismo real.

Já escrevi que Israel não é um Hamas às avessas, mas o país e seus aliados precisam querer manter essa diferença. Não borrá-la, no final das contas, a favor do antissemitismo e das desconfianças consideráveis que rondam a criação de um estado judeu na Palestina. A colonização acintosa da Cisjordânia é outro parafuso central dessa engrenagem ideológica que gira em falso.


Sob o fundamentalista e autocrático Bibi, o aperto metódico do cerco aos palestinos tem provocado reações expressivas mesmo na opinião pública judaica. A deriva radical e inescrupulosa para a extrema direita, que não poupa nem mesmo hospitais, vem erodindo o que restava de consenso moral em torno da defesa de Israel. Os tempos estão mudando e argumentos tradicionais estão em crise.

A "rua árabe" que se abriu no Ocidente, as periferias influentes do Sul Global e as desigualdades no coração do sistema chamam ao mínimo de realismo governos que dormitavam no piloto automático com Israel. Até Biden sentiu o bafo, baixou uma oitava em sua retórica, passou a falar em pausa humanitária no Vietnã de Bibi e agora aprovou uma resolução do Conselho de Segurança da ONU que basicamente repete a proposta brasileira, que estava na vanguarda, vetada por eu país.

O entendimento dessa guerra se inscreve no contexto de um anunciado "turning-point" da geopolítica internacional; ela é apenas mais um capítulo do rearranjo em curso das relações de força globais, a falada e perturbadora transição para um mundo multipolar.

As reivindicações que embasaram a defesa da criação do Estado de Israel são respeitáveis e se tornaram incontrastáveis depois do Holocausto e do histórico sinistro de perseguições que antecedeu a atrocidade nazista. Tudo então parecia fazer muito sentido para grande parte da opinião humanista do século 20.

Hoje, com a eternização do conflito, ganha mais projeção uma revisão historiográfica consistente do sionismo e de suas associações com o projeto colonialista inglês de criar um país judeu naquela parte do mundo. As evidências de que se procedeu a uma prévia limpeza étnica na região, entre outros episódios sombrios, são um segredo de polichinelo.

Bem, diante de tudo isso, caberia também perguntar: que Estado nacional não tem atrás de sua formação um rastro de violência? Guerras, colonialismo, escravidão, genocídios ou barbáries outras? O nosso querido Brasil? Os Estados Unidos? O Irã? La France? Por que Israel deveria ter uma história impoluta? Porque são judeus?

Na juventude intelectual, um filho de rabino chamado Karl Marx viu no seu ainda recente século 19 uma humanidade se debatendo com a pré-história. Eu adoraria ter nascido no futuro. Mas o que veria? Judeus e palestinos pescando e fazendo crítica literária no reino da sociedade sem classes? Ou o triunfo distributivo do capitalismo pós-financeiro numa pós-Los Angeles sem barracas nas ruas? Sabe-se lá.

Agora, Israel está perdendo a guerra que importa. Não será mais possível sustentar esse estado de coisas. Podemos esperar pelo milagre de uma mudança política profunda? Só me arrisco a dizer, neste final acaciano, que o caminho será longo e tortuoso.