quinta-feira, 19 de setembro de 2024

Antipolítica pode minar a democracia

Já houve época em que votar contra a classe política era uma forma de protesto bem-humorado. Foi assim em 1959, quando o rinoceronte Cacareco obteve quase 100 mil votos para vereador em São Paulo, ou com o Macaco Tião, que recebeu cerca de 400 mil votos na disputa para prefeito do Rio de Janeiro em 1988. Muitos outros tiveram sucesso no Legislativo bradando contra o sistema, como o deputado Tiririca e seu famoso lema: “Pior que tá não fica”. Ainda há excentricidades concorrendo por todo o Brasil em 2024, mas a antipolítica agora mudou de face: seu objetivo maior não é só ridicularizar as instituições democráticas. É destruí-las para instaurar alguma forma de autoritarismo.

A antipolítica ganhou força em boa parte do mundo nos últimos anos, geralmente presente em candidatos e partidos ligados a um extremismo de direita. E na maior parte desses casos, o discurso antissistema tem como propósito principal minar a democracia. Trata-se de uma mudança tanto na oferta das lideranças políticas, como também na demanda de parcela importante da população.


Do lado da demanda, o descrédito e a falta de confiança no sistema político explicam parte desse apoio a radicais autoritários. É preciso que os políticos ditos tradicionais aumentem a legitimidade do sistema e tornem as políticas públicas mais efetivas frente às demandas dos diversos grupos sociais. Fundamental auscultar mais os sentimentos de vários segmentos da sociedade que se sentem abandonados e acreditam cada vez mais em soluções disruptivas.

Junto com o descrédito frente ao sistema vem um conjunto de preconceitos que produzem os “inimigos” que devem ser extirpados: imigrantes, defensores do aborto e da “ideologia de gênero”, “comunistas antipatriotas” e aqueles que impedem o povo de ser “livre”, entre os principais. As falhas dos políticos são evidentes, porém, há rachaduras em várias organizações da sociedade: escolas, igrejas, empresas, mídia e todos aqueles espaços em que os indivíduos se socializam e constroem seus valores têm sido incapazes de cultivar ideias democráticos em parcela importante da população. O trabalho para modificar esse ambiente extremista e autoritário não deverá se concentrar somente na política, e isso precisa ser dito e repetido por todos que desejam revigorar a democracia.

Um exemplo é revelador do espírito de nossa época: a falta de etiqueta que se espalha por lideranças políticas e seus seguidores não nasce no momento do voto. Ela é semeada cotidianamente em vários momentos em que as pessoas precisam conversar e ouvir outras com opiniões diferentes. Por que será que as falas grosseiras e agressivas, quando não flagrantemente preconceituosas, de Trump, Bolsonaro e Pablo Marçal cativam parte do eleitorado? A sensação é de que essa receptividade à violência radical dos modos e palavras é aceita em outros espaços sociais ou é até incentivada em outras arenas externas à política.

Mas a demanda não explica todo o fenômeno da antipolítica contemporânea. As lideranças políticas têm sempre um papel importante na dinâmica democrática. O fato é que diversos grupos e líderes abraçaram o discurso radical contra o sistema, propondo soluções por vezes mágicas e milagrosas, mas sempre com o intuito de concentrar o poder em alguma forma de autocracia. Gritam por liberdade, mas querem reduzir o pluralismo de ideias e controlar os indivíduos no campo dos costumes. Só é possível cercear a opinião e o comportamento dos outros nas esferas pública e privada neste grau se a democracia for jogada no lixo.

Vale lembrar que não bastam cidadãos crentes na democracia para que ela floresça; é fundamental também a existência de políticos democráticos que defendam a sobrevivência das instituições. A demanda não determina completamente a oferta na política, havendo um espaço bastante razoável de autonomia das lideranças e partidos para propor novas ideias e mexer com o comportamento do eleitorado. Exemplificando: a falta de confiança no sistema não necessariamente levaria ao predomínio de radicalismos de direita de cunho autoritário. Isso foi obra mais dos atores políticos do que dos eleitores.

No Brasil contemporâneo, o modelo antissistema com caráter autoritário é uma invenção do bolsonarismo. Esse discurso moldou a campanha de 2018 e mais ainda o governo de Jair Bolsonaro. É bem verdade que ele não foi reeleito, em boa medida por conta do seu fracasso em captar os grupos além dos seus seguidores, o que poderia representar, em tese, a fragilidade da extrema direita brasileira.

Em defesa da força do ex-presidente, normalmente se argumenta que Bolsonaro perdeu por uma pequena margem de votos. Contudo, esse não é o ponto mais importante. O mais relevante é que o bolsonarismo conseguiu três grandes feitos. O primeiro é continuar cativando e mobilizando constantemente cerca de um terço do eleitorado brasileiro. É uma minoria, mas quando engajada é capaz de influenciar o sistema político e limitar o poder de seus adversários.

Mais importante do que isso: conseguiu-se criar um modo de se fazer política, que multiplicou o ódio aos “inimigos”, a prática do discurso violento e grosseiro e moldou um monte de lideranças bolsonaristas que agem praticamente sob o mesmo formato. Por fim, um partido tradicional, o PL do velho líder fisiológico Valdemar Costa Neto, foi cooptado para o movimento e se tornou o maior do país. O bolsonarismo ganhou a máquina e o dinheiro (muito dinheiro) para se manter forte na oposição ao governo Lula e poder atuar em cada rincão do país.

Criava-se assim a plataforma para uma grande força antipolítica e antidemocrática, influente e respeitada pelos adversários, especialmente pelo Centrão, que ora constrói alianças com os bolsonaristas para barganhar mais recursos do governo federal, ora se coliga com o bolsonarismo para não perder eleitores. Há, no entanto, uma contradição nesse jogo: o discurso antissistema pode se utilizar das instituições para ganhar poder, mas está condenado a traí-las. Não há como alimentar o radicalismo dos eleitores, prometer uma destruição completa da “velha política” e ficar até o fim comprometido com os valores democráticos, o respeito à lei e, sobretudo, com o restante dos políticos.

Pablo Marçal desnudou a viabilidade desse pacto permanecer por muito tempo. Esse é o ponto que tem sido menos falado sobre esse fenômeno midiático e eleitoral, cujo discurso é límpido: é preciso substituir todos os políticos e sua forma carcomida de atuar por uma maneira completamente nova e diferente, comandada por ele e outros atores antipolíticos pouco comprometidos com a democracia. A “cristianização” da candidatura do prefeito Ricardo Nunes que vários políticos bolsonaristas querem fazer, em nome de um apoio escondido ou explícito ao coach Marçal, no fundo é a rebelião contra a necessidade de se depender do Centrão e afins.

Nem é necessário que Marçal vença a eleição paulistana. Se ele mantiver o alvoroço atual até o final, quem sabe indo até o segundo turno, ficará claro para os bolsonaristas que a antipolítica pode adotar uma versão bem mais radical em relação ao sistema do que nas eleições de 2018 e 2022. Obviamente que se ele ganhar o pleito, aí então todo o bolsonarismo terá de se radicalizar muito rapidamente, e o fato é que Bolsonaro, ao aliar-se com Valdemar e estar na marca do pênalti do STF no ano que vem, talvez não tenha mais como monopolizar a liderança da extrema direita brasileira.

Mesmo que não tenha os resultados desejados na eleição municipal, está claro que a antipolítica multiplicará bastante o seu número de candidatos a todos os postos em 2026. O grupo político mais atingido por esse processo será o centro político, especialmente o chamado Centrão. Ele ficará espremido entre o lulismo - ainda comandado por um grande líder popular, com seu poder de ter a máquina federal e um eleitorado fiel de mais de um terço do país - e o “partido” do antissistema, herdeiro do bolsonarismo, mas que pode ir além dele ao evitar um acordo com a “velha política”. Líderes como Nikolas Ferreira e Pablo Marçal, aliás, podem exercer melhor esse papel no futuro do que o pai fundador do movimento.

O risco maior está na forma como, paulatinamente, a antipolítica já está minando a democracia, antes que ela própria seja substituída por qualquer autoritarismo. Sem dúvida alguma é preciso combater os extremistas antissistema, mas também é fundamental melhorar a política democrática. Desde a redemocratização, nunca a classe política teve tantos privilégios e esteve tão insulada da sociedade civil. A desmoralização da política favorece o radicalismo do discurso ao estilo “que se vayan todos”.

O governismo lulista, o Centrão e a parcela da sociedade que de fato representou a “Frente Ampla” precisariam pactuar uma nova forma de atuação para aumentar a confiança da sociedade no sistema e enfraquecer a antipolítica. Até porque o risco da ilusão momentânea é grande. Como no filme, o bandido Pinguim não ganha a eleição em Gotham City e em 2026 se evita a volta do radicalismo autoritário. Porém, por quanto tempo o vulcão extremista e autoritário vai ser contido? Pior, quanto já está custando à democracia a transformação do debate público num circo de horrores que permite gente ligada ao crime organizado se vender como o mocinho da história?

Estamos mudos e isolados

Olhe pela janela, você verá como vai o mundo. Para onde correm as pessoas? O que querem? Não diferençamos mais o encadeamento das coisas que lhes daria um sentido supra-pessoal. A despeito do rumor geral, cada um está mudo e isolado em si mesmo. O encaixe dos valores do mundo e dos valores do eu já não funcionam convenientemente. Não vivemos num mundo destruído, vivemos num mundo transtornado

Franz Kafka, "Conversas com Kafka", de Gustav Janouch

A cadeira

Não bateu, mas não me sai da cabeça. Dizem os pesquisadores que a origem da cadeira é uma criação dos artesãos egípcios, faz 5800 anos. Nasceu para servir aos seus donos. No início, era um banco para descanso do bumbum. Em seguida, adicionado o encosto, serviu de apoio lombar e demarcou o design original da cadeira com variações adequadas às múltiplas serventias e significados.

O assento, o encosto, o braço e as pernas passaram de formas bem simples para fins utilitários, estéticos e atender padrões culturais. Começa pela saúde da pessoa: a depender da cadeira e da forma de sentar-se, o esqueleto e a musculatura podem sofrer desconfortos, dores e afetar a qualidade de vida das pessoas. Muita atenção: é aconselhável, ao primeiro sinal das “mialgias”, procurar especialistas respeitáveis e evitar a cura milagrosa dos curandeiros.

Há dois tipos de “cadeiras” que simbolizam o poder político e o poder do conhecimento: trono é a cadeira reservada para monarcas, autoridades religiosas e, na linguagem figurada, posição hierarquicamente elevada; cátedra, origem latina da palavra cadeira, é o assento reservado ao poder do conhecimento, seja como símbolo do magistério episcopal, seja como posição superior de ensino, atualmente, em desuso. Porém, afirmar, coloquialmente, que fulano é “catedrático”, enfatiza a profundidade excepcional sobre qualquer assunto em discussão.



Como parte do mobiliário, a cadeira assume as mais variadas formas; das mais simples à mais sofisticadas, seja no ambiente doméstico, seja no espaço profissional, complementando a estética de ambientes interiores sobres os quais multiplicam-se estilos e, sobretudo, preços.

Nesta breve reflexão, não poderiam faltar três tipos de cadeiras: uma é a abençoada “cadeira de rodas” que não serve somente de assento, mas é, sobretudo, o abrigo, o espaço do acolhimento, o generoso equipamento que supre os movimentos humanos em pessoas que deles foram privados, ao nascer, ou se tornaram vítimas de enfermidades ou acidentes que exigem cuidados especiais. Na minha experiência de voluntário por 20 anos na AACD, pude aquilatar o valor da cadeira de rodas e vivenciar profundas emoções ao testemunhar a alegria das famílias beneficiadas diante das necessidades especiais, entre elas, as da locomoção.

Em contraste com a cadeira que é um suporte para vida, cabe referência à cadeira elétrica, a cadeira assassina que não merece outro adjetivo como instrumento devidamente legalizado, em vários países, inclusive, na maior democracia ocidental, os EUA, para executar a pena morte.

Por fim, como se não bastassem a tensão, ambiente radicalizado, a literal combustão do clima, emerge, no Brasil, a terceira: a “cadeira democracida”, aliás, completamente inocente no episódio repugnante em que um candidato a prefeito de São Paulo desfere uma cadeirada no seu concorrente. A cadeira/objeto é inocente; a democracia, a vítima; o cidadão, desrespeitado. No entanto, para dar continuidade ao deplorável espetáculo, será adotada uma genial solução: vão “parafusar as cadeiras”, ou seja, como na vingança do “traído”, vão “retirar o sofá da sala”.