quarta-feira, 11 de março de 2020

Tática kamikaze de Bolsonaro pode deixar presidente só no palco

Bolsonaro, como se sabe, está em conflito com o Congresso e dobrou a aposta no radicalismo de sua base mais aguerrida.

Explicitou o apoio que antes negara ao protesto de domingo (15), fazendo um “hedge” ao dizer que ele também deveria ser um dos cobrados.</p>

Não enganou ninguém. A manifestação democrática a que se refere, da voz do povo como dizem seus apoiadores, tem como itens centrais o palavrão dito pelo general Augusto Heleno, a crítica ao Congresso e mesuras como o fechamento de instituições.

Claro que direito de ir à rua é livre. Cabe lembrar que os protestos que ajudaram a derrubar Dilma Rousseff no biênio 2015-16 também incluíam em suas franjas toda sorte de boitatás que hoje proliferaram e viraram majoritários numa certa direita brasileira: defensores de intervenção militar, gente que celebra a suspeita de coronavírus se a vítima for alguém de quem não gosta, por aí vai.

Mas o centro das manifestações, concorde-se ou não com elas, nunca esteve nesse pessoal. Havia um caldo de insatisfação antipolítica brotado em 2013</a> associado à hecatombe econômica dilmista.

Já o ato insuflado pelo presidente orbita a acusação de um Poder contra outros. Isso para não falar nas bolas extras ofertadas pelo presidente, como a bizarra acusação de fraude sobre o Tribunal Superior Eleitoral. Ponto.

Que Bolsonaro levará gente à rua, há poucas dúvidas, ele ainda tem um naco respeitável do eleitorado. Será uma estrondosa demonstração de apoio popular à agenda do presidente contra a malvada classe política?

Parece improvável, a começar pelo fato de que ninguém sabe de que agenda se trata, fora os delírios e os retrocessos. O engasgo econômico atinge diretamente a classe média que costuma ir a essas manifestações. Já as reformas, bem, nessas nem mesmo os antes empolgados operadores da Faria Lima têm colocado muita fé.

Tanto é assim que os alvos potenciais estão quietos, apostando em que a coisa se esvaia de forma natural. A ver.

Segundo essa leitura, novamente o presidente emula seu antípoda, Lula. O petista passou anos ameaçando o uso do “exército do Stédile” para ficar na massa de manobra miserável do campo, para impressionar elites, políticos e os militares ora sequestrados pelo bolsonarismo. Era nada, vento.

O que o presidente faz é assoprar a brasa antiestablishment que tão bem operou em 2018.

A questão é a percepção de que isso já não é suficiente ante a incapacidade do governo de encarar de forma adulta o desafio de lidar com nossos problemas enquanto o mundo desaba sob as brumas apocalípticas do coronavírus, da guerra do petróleo e todo o mais.

O bolsonarismo mais ideológico, com o perdão às ideologias, sempre gostou desse tom de “Götterdämmerung” inevitável, de embates épicos comandados por seu líder, da mística do sangue derramado em Juiz de Fora.
 
Muitos políticos ainda creem ser possível uma reversão parcial do quadro, justamente por compartilhar com os governadores supracitados a falta de ânimo com uma ruptura maior. É uma abordagem prudente. Mas se insistir na rota atual, Bolsonaro poderá cumprir a previsão dos chefes estaduais e acabar sozinho no palco, num teatro esvaziado.

Pensamento do Dia


O plano de Bolsonaro para ficar no cargo mesmo se não for reeleito

Se Jair Bolsonaro diz que houve fraude na eleição presidencial que ganhou, o que dirá se perder a próxima?

Em conversas reservadas com alguns dos seus auxiliares, ele já adiantou o que pretende dizer nesse caso.

Se perder para um candidato de esquerda ou apoiado por ela, não reconhecerá o resultado da eleição ... e, aí, seja o que Deus quiser.

O que Deus quiser, não. Melhor deixar Deus fora disso. Bolsonaro imagina que terá força para ficar onde está para além de 2022.


Manobra vagamente parecida foi tentada pelo ex-presidente Jânio Quadros, eleito com larga margem de vantagem no final de 1960.

Jânio viveu às turras com o Congresso e surpreendeu o país renunciando ao cargo apenas oito meses mais tarde.
Seus ministros militares tudo fizeram para demovê-lo da ideia. Jânio voltou a São Paulo levando escondida a faixa presidencial.

Estava certo de que o povo se rebelaria e que ele acabaria de volta ao cargo com poderes para impor suas vontades ao Congresso.

Nada disso aconteceu, mas a renúncia detonou uma grave crise institucional que por pouco não resultou num golpe militar.

O golpe se daria três anos depois com a queda de João Goulart, que sucedera Jânio, e a instalação de uma ditadura de 21 anos.

Bolsonaro admite que se for derrotado por um candidato do centro seu plano naufragará, por isso quer enfrentar a esquerda outra vez.

Seguirá atirando nela, mas empenhado em abater a pauladas qualquer nome do centro que possa lhe fazer sombra.

Tal plano está longe de ser sofisticado, é claro. Mas é o que está na cabeça do presidente mais tosco que este país já teve.
Ricardo Noblat

Marolinha tá de volta

Enquanto o mundo desce, o Brasil vai começar a reaceleração do crescimento
Paulo Guedes, ministro da Economia

Mecânica do poder

Tem sido difícil ajudar o Guedes, é o que se houve aqui e ali entre intelectuais vinculados às atividades econômicas. Na área acadêmica a antipatia é esperada, pela linguagem coercitiva e disciplinar característica do governismo atual. Presume-se que a defesa do liberalismo não visa unicamente a mudar as habilidades no trato da política pública, mas a fazer um pensamento econômico mais obediente, quanto mais útil, à mecânica do poder.

Do lado dos simpáticos, mas críticos, mesmo sabendo que a política é um jogo de espaços, as maneiras do governo revelam uma natureza ligada a uma imodéstia que pouco ajuda. Uns lembram que em tudo há uma arte, até mesmo para cortar as pedras. Com o continuado cenário de incerteza, com forte característica de risco e a má conduta da economia, melhor não exagerar e pedir ao País que se comporte como adulto por um tempo infinitamente excessivo. Pois adversário do melhor ambiente de negócios tem sido a compulsão do governo por selfies e lives, explorações infantis de si mesmo. Fogo de artifício que costuma queimar o fogueteiro.

O presidente quer construir um campo de provas desconhecido para operar seu governo. A convocação dos desfiles de domingo – com tanta antecedência não é uma manifestação – continua tendo objetivos ocultos e visa a compensar a dispersão administrativa. A ideia de renovação por crise permanente sugere levar o atrito institucional ao limite para mudar peças na anatomia do poder. Convidando militares da ativa para se tornarem ministros, a digital das Forças Armadas na política já é fato.


O resultado econômico não produz convicção e revela um paradoxo. Como a economia perde giro, ao contrário do que se pensava após as reformas da Previdência e trabalhista, além de o governo não saber explicar por que os investidores não aparecem, a expectativa se ancora cada vez mais na política. Isso só reforça a crise institucional e joga risco excessivo num governo especialista em enredos secundários. Como a equipe econômica é teórica, insensível à desigualdade social, subestima a política e tem certa má vontade com dificuldades, a confusão prospera. É exemplar a entrelinha da questão dos dois PIBs. Traduzindo: o Estado não é mais o País, mas um setor da sociedade cujo PIB ruim bota a economia para baixo. O discurso moral que brota daí incluí escolha ficcional envernizada para fazer a propaganda do PIB bom, o privado, o que bota a economia para cima. Conclusão: não há necessidade de reforma para o País crescer 3%.

Tudo pode ser intensificado na medida em que o governo, ambíguo, acusa o Congresso pelos acordos que lhe dão vitória. Na dúvida, melhor falar a verdade e dizer como negocia, reconhecendo a legitimidade do Parlamento. Ou continua fora do tom e do foco, ampliando a insegurança geral.

Esse confronto com a política, assim como o baixo desempenho econômico e a dificuldade de gerir uma pasta tão grande é que podem estar provocando estresse extremo no ministro. Que não tem o que reclamar do presidente Rodrigo Maia, seu maior fiador e apoio para acalmar o Congresso e o mercado. Em suma, o presidente precisa ajustar o caminho este ano se quiser um terceiro ano diferente, em que o País possa colher os resultados que o governo prometeu. Mas como este ano temos eleições municipais e ele parece indiferente a elas, para seus adversários é agora que começa a sucessão de 2022.

O governo precisa se livrar do tempo perdido e diminuir a agenda de enfrentamento com o Legislativo e o Judiciário para não parecer que põe a culpa nos outros por interesse próprio. E, finalmente, ter criatividade para parar de rir do PIB e liberar recursos para investimento, mantendo a âncora fiscal. Sem se esquecer de que tem de enfrentar a responsabilidade de obedecer a todo o rito formal para isso. Por exemplo, em infraestrutura, só se pode falar em parcerias público-privadas (PPPs) e concessões depois de os recursos alocados percorrerem os longos passos burocráticos – estudo, audiência, Tribunal de Contas da União, edital, leilão e contrato.

Muita coisa para um governo que convoca um humorista para responder sobre o baixo crescimento do PIB e apresenta o fato como galhofa – o humor sempre foi o outro lado do trágico, uma forma de lidar com o mal-estar. Rir em velório tanto pode ser incongruência como transgressão. Há quem ria por submissão quando ameaçado por algo que parece dominante. Mas rir do abismo pode ser um desejo de amortecer a queda. Um alerta à equipe econômica, que está cada vez mais sem fio terra e indiferente ao potencial energético do chão.

Nesse cenário de sombras, parece ilusionismo achar que ao governo importa a aprovação da reforma tributária ou mesmo a administrativa neste ano. Especialmente se se repetir a pior das tradições do Parlamento e deputados e senadores decidirem disputar eleições municipais para manterem seu poder local. Assim, se surgirem mais de 20% de candidatos a prefeito ou vice, o ano acaba em julho.

Por tudo o que se vê, “é a economia, estúpido” não é nosso slogan. O slogan é a estupidez da política, o caminho que o Brasil escolheu para fracassar.

Apelo às massas

Com o restabelecimento do presidencialismo em janeiro de 1963 e a ampliação dos poderes do presidente João Goulart — que havia assumido o cargo após a renúncia de Jânio Quadros, não sem antes ter que derrotar uma tentativa de golpe militar para impedir sua posse —, a implementação das chamadas reformas de base passou a ser o eixo da disputa política nacional. Goulart apresentou às lideranças políticas um anteprojeto de reforma agrária que previa a desapropriação de terras com título da dívida pública, o que forçosamente obrigava a alteração constitucional. Uma segunda iniciativa para agilizar a agenda das reformas foi o encaminhamento de uma emenda constitucional, que propunha o pagamento da indenização de imóveis urbanos desapropriados por interesse social, com títulos da dívida pública.

Essas propostas, porém, não foram aprovadas pelo Congresso Nacional, o que provocou forte reação por parte dos grupos de esquerda, inclusive nas Forças Armadas. Em setembro de 1963, a Revolta dos Sargentos — movimento que reivindicava o direito de que os chamados graduados das Forças Armadas (sargentos, suboficiais e cabos) exercessem mandato parlamentar em nível municipal, estadual ou federal, o que contrariava a Constituição de 1946 — acirrou a polarização ainda mais. Entretanto, isso aumentou o isolamento de Jango, já agravado pelo rompimento com o Partido Social Democrático (PSD) e Juscelino Kubitschek, que era candidato a presidente nas eleições previstas para 1965.

Diante dessa situação, Jango pediu a Raul Ryff, seu secretário de Imprensa, que era membro do Partido Comunista Brasileiro (PCB), que agendasse um encontro com o líder comunista Luiz Carlos Prestes. O encontro foi organizado por Antônio Ribeiro Granja, membro do secretariado do PCB, num apartamento em Copacabana. À época, Prestes já articulava a reeleição de João Goulart, o que era inconstitucional, à falta de melhor opção para enfrentar as candidaturas de Juscelino e de Carlos Lacerda (UDN), pois o ex-governador gaúcho Leonel Brizola, cunhado do presidente da República, era inelegível. O conselho de Prestes foi Jango apelar às massas e fazer as reformas de base por decreto. Para isso, os comunistas organizariam comícios populares em todos os estados do país, ao qual Jango compareceria.


A mobilização foi iniciada no dia 13 de março de 1964, com o comício realizado na estação da Central do Brasil, no Rio de Janeiro, também denominado Comício das Reformas, ao qual compareceram cerca de 150 mil pessoas. Na ocasião, Goulart proclamou a necessidade de mudar a Constituição e anunciou a adoção de importantes medidas, como a encampação das refinarias de petróleo particulares e a possibilidade de desapropriação das propriedades privadas valorizadas por investimentos públicos, situadas às margens de estradas e açudes.

Era o começo de uma escalada fatal para democracia, pois, em resposta ao comício, várias manifestações e “marchas” foram convocadas por setores do clero e por entidades femininas. A primeira, A Marcha da Família com Deus pela Liberdade, ocorreu em São Paulo, a 19 de março, no dia de São José, padroeiro da família. Contou com a participação de cerca de 300 mil pessoas, entre as quais Auro de Moura Andrade, presidente do Senado, e Carlos Lacerda, governador do Estado da Guanabara. A última, no dia 2 de abril, após a derrubada de Jango, levou às ruas cerca de um milhão de pessoas e legitimou o golpe militar de 1964, revelando uma correlação de forças favorável à implantação do regime autoritário.

Com sinal trocado, durante uma escala em Roraima, a caminho do encontro com o presidente Donald Trump, em Washington, recepcionado por 400 apoiadores, o presidente Jair Bolsonaro resolveu convocar seus partidários para a manifestação do dia 15 de março, com objetivo de pressionar o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF). “É um movimento espontâneo e o político que tem medo da rua não serve para ser político”, disse Bolsonaro. Na semana passada, havia negado que estava convocando o protesto nas suas redes de WhatsApp, apesar das evidências. Na verdade, o movimento não tem nada de espontâneo: está sendo organizado por grupos de extrema-direita que apoiam Bolsonaro, que também se utiliza de um exército de robôs comandado pelo vereador carioca Carlos Bolsonaro, o 02, seu filho, nas redes sociais.

Há duas motivações aparentes para Bolsonaro convocar a manifestação: manter a pressão sobre o Congresso, que votará os projetos regulamentando a execução das emendas parlamentares ao Orçamento da União; e reforçar os protestos, que estavam sendo esvaziados pelo acordo feito pelo Palácio do Planalto para resolver o impasse em relação ao Orçamento de 2020. Uma terceira motivação, porém, é subjacente: o fracasso do governo na economia começa a lhe subir à cabeça, depois do PIB de 1,1% do ano passado. Além disso, o cenário na economia mundial sinaliza tempos difíceis pela frente, ainda mais com a chegada da epidemia de coronavírus ao Brasil. Bolsonaro tenta se vacinar e responsabilizar o Congresso pelo eventual fracasso.

Como vimos, em que pese as diferenças polares, não é o primeiro presidente a apelar às massas quando o governo vai mal das pernas e enfrenta dificuldades com o Congresso.

Esquecidos do Brasil


Roda Viva

Tem dias que a gente se sente
Como quem partiu ou morreu
A gente estancou de repente
Ou foi o mundo então que cresceu
A gente quer ter voz ativa
No nosso destino mandar
Mas eis que chega a roda viva
E carrega o destino pra lá

Versos tomados de Chico Buarque para traduzir sentimentos desses tempos bicudos, assoberbados nos últimos dias.

A música Roda Viva é de 1967, quando o Brasil engolia Constituição dos milicos, que um Congresso, acarneirado, aprovou. Com a primeira emenda, a Carta de 67 abriu portas para o monstrengo dos atos institucionais, que cancelaram liberdades individuais, puseram fim às eleições diretas, deram ao Executivo poder de legislar por decretos, extinguiram partidos políticos existentes, liberdade de expressão e direito de greve. Deu ruim naquele ano que marcou também o começo da segunda presidência dos 20 anos de trevas da ditadura militar. Quando uma roda viva e operante moeu muita gente.

Sem parar de rodar, a tal roda viva entra no modo de moer esperança quando inventa de rodar pra trás, derrapando à beira do abismo. É o que anda rolando neste começo dos anos 20, do século 21. Um assombro atrás do outro – guerra, violência, ódio, dor, doença e a economia desabando no capitalismo exaurido. Tudo globalizado.

Não existe mais o lá-longe. O que acontece lá, rola por aqui também. E a gente vai aprendendo a se virar sozinho no meio do mundo. Racionalmente, tenta espantar o medo do corona vírus, bicho papão da hora, babando e matando planeta afora.

Sem pausa pra respirar, encara o pânico dos mercados no desabar do preço do petróleo. E, em segundos, tem que a assimilar circuit breaker. A Bolsa de Valores para quando dá muito ruim &#8211; meia hora ao cair 10%; uma hora se chegar aos 15% e sem tempo marcado se bater 20% de baixa.
Ontem, aqui, deu 12,175 maior queda do século 21.

O que significa? O que vai derreter hoje, nesses dias? Só Deus sabe. Mas o derretimento não será o pum de talco do palhaço da Regina Duarte. Aliás, ela fica Secretária da Cultura, assim desautorizada na primeira nomeação? Em que roubada se meteu a ex-namoradinha ao noivar com o diabo, hein?

É o de menos no imbróglio geral da nação. Na confusão mundial, Trump promete ajudar. Com a bolsa despencando e o dólar nas alturas, o ministro do pibinho, ex-superGuedes, garante: “Estamos calmos”. Algum dos dois é de confiança?

Cinquenta e três anos depois de Chico cantar Roda Viva no Festival de MPB da Record (ainda a emissora que não era do bispo), eis que a roda viva, de novo, malvada, carrega nosso destino pra sei lá onde seja esse lá.

Deus nos acuda.

Democracia armada

O Executivo não consegue governar porque o Congresso não deixa.
 
Quando chamamos de ‘parlamentarismo branco’, é porque o Congresso quer fazer o papel do Executivo
Eduardo José Barbosa, general da reserva e presidente do Clube Militar

Mourão mentiu ao dizer que 'manifestação está colocada aí como apoio às reformas'

Estamos vivendo uma Era Virtual, de realidades ardilosas e ilusórias. Um bom exemplo são os protestos marcados para o dia 15, em âmbito nacional. Em má hora, o vice-presidente Hamilton Mourão desgasta seu prestigio e sua imagem para afirmar que “a manifestação está colocada aí como apoio às reformas”. Com todo respeito ao general , isso é “menas verdade”, como dizia Lula da Silva no início da carreira política, antes das aulas de reforço no Português.

O governo pode até mandar fazer umas faixas tipo “Reformas Já”, “Reformas são a salvação” ou “Sem as reformas, vem o caos” e pagar alguns desocupados para exibi-las. Mas a verdade é que as manifestações são contra o Congresso e o Supremo. Todo mundo sabe disso, menos Mourão?


Com a declaração de Bolsonaro em Miami, dizendo que os atos do dia 15 de março podem perder força se o Congresso abrir mão do controle de R$ 15 bilhões do Orçamento, e que isso mostraria que “estamos, sim, afinados no interesse do povo brasileiro”, ficou mais do que claro que as manifestações convocadas pelo próprio Bolsonaro são contra o Congresso e o Supremo.

O objetivo é santificar o Planalto e demonizar os dois outros poderes da República, e isso já foi até alcançado. Pelo teor dos comentários nos sites de política e nas redes sociais, que são bombados por robôs, parte considerável da população já estaria convencida de que os dois poderes querem boicotar os programas do governo para recuperar a economia e reduzir a desigualdade social.

Acontece, porém, que esses programas “non eczistem”, são fruto da imaginação dos marqueteiros do Planalto. O único projeto apresentado até agora por Guedes foi a reforma da Previdência, que era uma boa porcaria e o Congresso até aperfeiçoou, não houve boicote.

Na quinta-feira pós-Carnaval o ministro Guedes enfim entregou a Bolsonaro a reforma administrativa. Mas o presidente e os ministros militares do Planalto acharam tão ruim que até hoje estão sentados em cima, sem coragem de enviar a proposta ao Congresso – esta é a realidade, que o vice-presidente Mourão conhece muito bem.

Mourão sabe que Bolsonaro é meio lesado e faz uma asneira atrás da outra. Sabe também que essa manifestação é uma farsa, pois até hoje não houve boicote ao governo no Congresso. Mas não pode passar recibo, como se dizia antigamente.

Quem saiu prejudicado no Congresso e no Supremo foi o Pacote Anticrime do ministro Sérgio Moro. Além de ter sido esvaziado pelos parlamentares, que aprovaram uma legislação às avessas, a favor do crime, denominada Lei do Abuso de Autoridade, destinada a imobilizar os juízes, delegados e procuradores da Lava Jato etc. Na época, Bolsonaro não disse uma palavra a respeito, fez olhar de paisagem, porque ele próprio e os filhos foram beneficiados.

Da mesma forma, o Supremo também esvaziou o Pacote Anticrime, ao mudar a jurisprudência sobre segunda instância, soltar Lula e Dirceu, e remeter para a Justiça Federal os crimes cometidos por parlamentares, que assim jamais serão condenados . E Bolsonaro, mais uma vez, não deu uma palavra e fez olhar de paisagem.

Mas agora o presidente aparece com essa manifestação, convoca pessoalmente os fanáticos que o idolatram, mas diz que nada tem com isso e que o protesto está sendo organizando pelo povo, uma sensacional Piada do Ano.

50 anos depois, Brasil volta a ser alvo sistemático de denúncias internacionais por violações de direitos humanos

O Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas se transformou em uma plataforma de ataques contra o governo de Jair Bolsonaro, denunciado por diversas violações ao meio ambiente, a mulheres e a indígenas, e pelo desmonte dos mecanismos de proteção aos direitos humanos. O encontro, que acontece desde o final de fevereiro e é considerado a principal sessão do ano, vem colocando o Itamaraty em uma posição defensiva.

A ofensiva da sociedade civil e de alguns dos principais relatores da ONU coincide com outro momento complicado para o governo de Bolsonaro. Pela Europa, governos e parlamentares têm questionado o acordo comercial entre a União Europeia e Mercosul. Câmaras Legislativas de regiões da Bélgica e Áustria já promoveram votações para bloquear o tratado, alegando que não aceitariam uma aproximação num momento em que o governo brasileiro não se compromete em questões ambientais.


Na Suíça, que assinou um tratado em separado com o Mercosul, grupos políticos insistem que tal acordo precisa ser submetido a um referendo popular, apostando numa reação contrária da opinião pública diante da atual imagem internacional do Brasil. Mas a pressão internacional não se limita à Amazônia e as últimas reuniões na ONU escancararam como o Brasil já perdeu a confiança pelas inúmeras queixas recebidas sobre práticas incompatíveis com os diretos humanos.

Em janeiro deste ano, uma reunião privada dentro da missão diplomática do Canadá, em Genebra, fazia um exercício: como a comunidade internacional e da ONU deveriam reagir em termos legais diante de governos ditatoriais e com comprovadas violações graves de direitos humanos. O encontro, mantido em total sigilo, era organizado por entidades internacionais e ONGs, com o convite feito a governos europeus e de delegações de outras regiões do mundo. Ottawa havia cedido uma sala em sua missão diplomática para o debate. Oficialmente, tratava-se apenas de um exercício e uma simulação de cenários políticos. Mas altamente simbólico.

Entre os países com sérias violações de direitos humanos escolhidos para o debate confidencial estava o Brasil, ao lado do regime autoritário da China e da repressão no Egito. A realidade é que, 50 anos depois de o país ser alvo de denúncias nos antigos órgãos da ONU diante da tortura e desaparecimentos durante a ditadura, o Brasil volta a preocupar a comunidade internacional de uma forma sistemática.

Nos últimos 30 anos, denúncias e críticas foram apresentadas contra os diferentes governos brasileiros. Mas jamais colocando em questão a própria democracia e a existência do espaço cívico. Nos corredores da ONU e salas de reuniões, o governo brasileiro vive uma pressão inédita em seu período democrático, com relatores da entidade, ONGs brasileiras e estrangeiras, ativistas e líderes indígenas se sucedendo em críticas ao desmonte dos mecanismos de proteção aos direitos humanos no país.

Apenas em 2019, mais de 35 denuncias foram apresentadas contra o Brasil e, em 2020, essa tendência ganhou um novo ritmo. Desde que a sessão oficial do Conselho começou, dia após dia entidades e representantes de mecanismos especiais das Nações Unidas tomam o microfone na solene sala da ONU para acumular denuncias contra o Brasil. São bispos de Brumadinho ou defensores de direitos humanos que chegam para suplicar pelo apoio internacional contra um governo que, na visão de muitos, faz questão de menosprezar seus compromissos internacionais.

Um dos questionamentos veio da relatora da ONU para o direito à alimentação, Hilal Elver. Na quarta-feira passada, ela apresentou seu informe em que criticou abertamente o Brasil. Segundo o texto, o país era um “grande exemplo” de como instituições para o combate à fome estavam sendo financiadas, no marco do Fome Zero. “Infelizmente, esta boa prática foi quase perdida em 2019, quando o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional foi desmantelado”, lamentou. Os ataques levaram o governo brasileiro a tomar a palavra na ONU para questionar o informe. A delegação do Itamaraty afirmou ter ficado “desapontada” com algumas “informações enganosas” do documento. De acordo com o governo, a reestruturação das instituições de combate à fome 


Outra área de atrito é a produção agrícola brasileira. Segundo o mesmo informe de Elver, é “particularmente preocupante o aumento significativo das queimadas na Amazônia brasileira, seguindo as promessas feitas pelo novo governo de abrir terras indígenas para a agricultura e mineração”. Bolsonaro e seus aliados fomentam reiteradas vezes essa postura, insistindo em projetos que abram as reservas. “O governo passou a chamar os povos indígenas que se opõem à sua política como anti-desenvolvimentistas”, criticou.

Nesse ponto, uma vez mais o governo rebateu, alegando que os incêndios foram devidamente gerenciados e que a escala do problema era “consistente” com a média histórica. Elver não se deu por satisfeita e voltou a questionar. “A Amazônia é patrimônio de toda a humanidade”, insistiu, lembrando como os incêndios em 2019 foram mais severos. Segundo ela, existem “interesses” para abrir a região para a pecuária. “É uma situação importante e delicada o uso de floresta para a Humanidade no futuro. Não podemos destruir apenas para produzir mais alimentos. Isso não seria argumento aceitável”, disse.

Lembrando do impacto dessas ações para grupos indígenas, a relatora ainda defendeu que haja algum tipo de investigação internacional sobre a relação das grandes corporações e a situação da floresta, um cenário de pesadelo para a diplomacia nacional. “Talvez com algum comitê especial da ONU”, sugeriu.

Durante a sessão, um tema que colocou pressão sobre o governo foi a legalização da mineração em terras indígenas. O caso levou Davi Kopenawa Yanomami a viajar até Genebra para alertar a comunidade internacional sobre a situação dos povos indígenas. Há um mês, Bolsonaro assinou um projeto de lei para regulamentar a mineração e a geração de energia elétrica em reservas indígenas. O projeto de lei será analisado pelo Congresso Nacional. Mas, em sua assinatura numa cerimônia no Palácio do Planalto, Bolsonaro declarou ser um “sonho” a abertura de reservas indígenas para a mineração.

O projeto passou a ser alvo de duros ataques nas Nações Unidas. O relator da ONU para o meio ambiente, David Boyd, foi um dos que pediu que o projeto seja barrado. Para ele, a medida de Bolsonaro é “profundamente preocupante” e alerta que a situação dos indígenas seria “fortemente afetada”. “Esse é um retrocesso no reconhecimento dos direitos indígenas”, insistiu. Na mesma sessão, a pressão também veio do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Em nome da entidade, o jurista Paulo Lugon Arantes afirmou que “o arcabouço legislativo criado pelo Brasil desde sua redemocratização está sendo desmontado em uma velocidade impressionante”. De acordo com o CIMI, no Congresso há mais de 800 projetos que atentam contra o arcabouço legislativo criado no Brasil nos últimos anos.

Uma vez mais, o governo tomou uma postura defensiva. No debate, a embaixadora do Brasil na ONU, Maria Nazareth Farani Azevedo, tratou o assunto como se fossem “falácias” que estariam sendo ditas sobre a situação de meio ambiente no país e indicou que “correções” seriam necessárias. Ao longo dos dias, a embaixadora fez reuniões com o segundo escalão da cúpula da ONU para pressionar por uma revisão da posição do organismo sobre a situação no Brasil. Em vão.

A pressão do Itamaraty não impediu que a situação das mulheres também fosse denunciada, num gesto que gerou desconforto no Palácio do Planalto que, por sua vez, exigiu uma ação do Itamaraty. O Brasil havia sido citado em um relatório submetido ao Conselho, ao lado de países onde a religião é usada como justificativa para impedir que meninas e mulheres tenham acesso à educação sexual, assim como direitos reprodutivos e acesso à saúde sexual. Desde o início do governo Bolsonaro, o país modificou sua política externa e de direitos humanos para levar em conta valores religiosos. De acordo com o informe, consultas realizadas na América Latina em 2019 chegaram à constatação de que programas de educação sexual e saúde reprodutivas foram cortados no Brasil. Isso, segundo as pessoas ouvidas nas consultas, teria uma relação direta com a “pressão de grupos religiosos”.

O relator da ONU para Liberdade Religiosa, Ahmed Shaheed, confirmou sua preocupação e indicou que recebeu relatos de como as ameaças aos direitos de meninas e mulheres são realidades em diversos locais. Segundo ele, os estados da região continuam com leis seculares. “Mas as pessoas me relatam que existe uma visibilidade cada vez maior de grupos religiosos em espaços públicos que argumentam que alguns direitos de mulheres podem ser limitados com uma justificativa religiosa”, disse. “Meninas e mulheres têm tido dificuldades em ter acesso a direitos reprodutivos, com a consequência para a saúde e muito mais que isso”, alertou.

Ao longo dos últimos meses, o Itamaraty tem adotado uma postura que vem causando choque entre delegações estrangeiras. Em projetos de resolução na ONU, o governo tem alertado que não aceitaria referências a termos como educação sexual ou direitos reprodutivos. Em Nova York em setembro de 2019, o governo ainda se somou a uma declaração liderada pelos EUA em que países insistiam sobre a necessidade de se evitar a “criação” de novos direitos. Entre eles, mais uma vez estavam os direitos reprodutivos e sexuais. O argumento é de que tais referências poderiam abrir caminhos legais para o aborto.

A onda de críticas e cobranças contra o Brasil não ocorreram de forma isolada. No início do encontro da ONU, no final de fevereiro, o tom foi dado pela própria alta comissária da ONU para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet. Num encontro fechado com a ministra de Direitos Humanos, Damares Alves, ela levantou a questão das violações contra indígenas e defensores de direitos humanos. O governo jamais revelou o conteúdo do encontro. Dias depois, num discurso oficial, Bachelet incluiu o Brasil na lista dos cerca de 30 países que vivem uma situação especialmente preocupante em temas de direitos humanos. Damares Alves, porém, já não estava mais em Genebra para escutá-la.

“No Brasil, ataques contra defensores dos direitos humanos, incluindo assassinatos - muitos deles dirigidos a líderes indígenas - estão ocorrendo em um contexto de retrocessos significativos das políticas de proteção ao meio ambiente e aos direitos dos povos indígenas”, alertou Bachelet. “Também estão aumentando as tomadas de terras indígenas e afrodescendentes”, disse. Outro temor da representante da ONU se refere ao trabalho dos movimentos sociais e dos ataques sofridos por ongs. Segundo ela, também estão aumentando os “esforços para deslegitimar o trabalho da sociedade civil e do movimento social”. No ano passado, ela já havia alertado sobre o encolhimento do espaço cívico no Brasil, o que gerou duras reações por parte do governo brasileiro. Desta vez, o governo optou por um ataque violento.

A embaixadora do Brasil na ONU, Maria Nazareth Farani Azevedo, pediu a palavra para descrever o questionamento de Bachelet de “lamentável” e alertando que a chilena teria sido aconselhada de forma errada. Uma análise da situação, segundo ela, não estaria sendo feita com bases em dados e evidências atualizados. “Propomos uma conversa com base em fatos”, disse. Ela ainda sugeriu que deva haver um fim para um embate entre “narrativas politicamente motivadas”.

Ela ainda se recusou a aceitar as denúncias de Bachelet. “Não há recuou para proteger o meio ambiente, muito menos na proteção dos direitos indígenas”, declarou. “Pelo contrário”, disse a embaixadora, lembrando que Bolsonaro criou o Conselho da Amazônia. Segundo ela, a demarcação de terras indígenas é uma realidade e a proteção é conduzida de forma séria. “Existe um amplo espaço cívico no Brasil”, completou a diplomata aplaudida pelo bolsonarismo mais radical, lembrando que 900 entidades apoiaram a candidatura do governo para o Conselho da ONU. Muitos desses apoios vinham de organizações religiosas e a lista contava até mesmo com agências imobiliárias no México, algo jamais explicado pelo governo.
Jamil Chade