segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

Cara do Brasil lá fora

 

Maarten Wolterink


Um passo para a teocracia

No momento em que o país afunda na recessão, e cresce a insegurança alimentar, começo com um tema secundário, desses que os analistas políticos acham que mereciam apenas uma nota de pé de página na história.

O tema são os gastos do cartão corporativo de Bolsonaro. Ele gasta a média de R$ 1,3 milhão por mês, e suas despesas estão sendo julgadas, em segredo, pelo Tribunal de Contas.

É muito dinheiro para quem tem casa, comida, conexão e transporte gratuitos. O relator do processo é o ministro Raimundo Carreiro, o mesmo que Bolsonaro designou embaixador do Brasil em Portugal. Um prêmio.

O deputado Elias Vaz (PSB- GO) pediu que o relator se declarasse impedido. Mas é duvidoso que aceite isso ou que seja levado a isso.

Carreiro foi um grande amigo de Sarney. Nasceu num distrito de Nova Iorque, no Maranhão, e aos 16 anos votou pela primeira vez na UDN. Dizem que se declarou dois anos mais velho para ser eleitor de Sarney.

Sempre foi protegido do cacique maranhense. No Senado, saiu da área de produção de atas e acabou sendo um assessor vital para os presidentes. Sua fidelidade o levou ao Tribunal de Contas, e agora parece cruzar o oceano com ele.

Sou das poucas pessoas que gostariam de saber como Bolsonaro gasta tanto dinheiro. E se isso é legal e razoável.


Como isso escapa um pouco do radar da oposição no conjunto, o melhor é tratar o fato da semana: a eleição de André Mendonça para o STF.

A demora em sabatiná-lo estava ficando constrangedora. Suas declarações ao Senado foram estudadas na medida para impressionar os senadores que, por sua vez, estavam ansiosos para agradar à grande força eleitoral evangélica.

Mendonça disse que, em casa, seguia a Bíblia, e no STF, a Constituição. Mal se sentiu vitorioso, disse que sua vitória era um passo para o homem e um salto para os evangélicos. Como assim?

O Brasil tem uma bancada evangélica que se dispersa por diferentes partidos. Não temos bancadas católica, protestante ou umbandista. Os evangélicos funcionam como um partido político.

Mendonça deu a entender que o processo de infiltração religiosa no poder alcançara um novo patamar com sua eleição.

É espantoso como a oposição e os deputados independentes que fizeram a CPI da Covid-19 embarcaram nessa. Parecem não ter a visão histórica do que é uma teocracia e do que representará para o país. Quando uma confissão religiosa se articula como partido político e busca o poder, lança sinais muito inquietantes.

Na revolução teocrática do Irã, um intelectual de peso como Michel Foucault embarcou na canoa furada de apoiá-la, era popular, antiamericana, deu no que deu.

Estamos longe do Irã, muito mais longe dos talibãs. Mas a mistura da religião com política leva à ditadura teocrática. As religiões pretendem dizer como devemos viver, partidos políticos democráticos apenas apontam soluções para nossos impasses, saídas coletivas que preservam a pluralidade de nossas escolhas.

Quando vi todo aquele esforço para agradar aos evangélicos e ganhar alguns votinhos em troca, quando vi um deputado evangélico que, no passado, foi preso com um avião carregado de dinheiro ao lado do novo ministro do STF, pensei: as coisas não caminham bem no Brasil. Pelo menos, no meu modo de avaliar, baseado em experiência própria.

Ao aprovar Mendonça, os senadores não consideraram o absurdo de invocar a Lei de Segurança Nacional para punir adversários de Bolsonaro, a existência de lista de pessoas suspeitas de ser antifascistas.

E foram enganados na resposta sobre apoio aos direitos dos gays e LGBT.

Se você perguntar a eles se querem um Brasil teocrático, responderão que não. Mas não estabelecem nenhuma conexão entre suas escolhas e as consequências futuras.

Semana de isolamento. Ainda bem que estou em viagem. Preocupar-se com os astronômicos gastos de Bolsonaro e com um possível futuro teocrático do Brasil é coisa de minoria.

Aprendi a me consolar com essa ideia e, ainda assim, a sobreviver nos trópicos.
Fernando Gabeira

Poema do Aviso Final

É preciso que haja alguma coisa
alimentando o meu povo;
uma vontade
uma certeza
uma qualquer esperança.

É preciso que alguma coisa atraia
a vida

ou tudo será posto de lado
e na procura da vida
a morte virá na frente
e abrirá caminhos.

É preciso que haja algum respeito,
ao menos um esboço

ou a dignidade humana se afirmará
a machadadas.

Torquato Neto

A nova política do Brasil da religião barulhenta e da fome quieta

A gente anda esquecida de dar importância a transformações graves que acontecem bem diante das fuças, que mudam o ar social e político que se respira.

Não se trata apenas da normalização de horrores sob Jair Bolsonaro: golpe, tortura, ditadura, ignorância e ódio à diversidade humana, por exemplo. Vai além do bolsonarismo, que foi veículo ou catalisador de mudanças, mas é menor do que essas torrentes.

A religião voltou a se tornar assunto de Estado, oficialmente, com a indicação e a aprovação de André Mendonça para uma cadeira do Supremo, por exemplo.

Sim, já tivemos crença oficial ou oficiosa. A Igreja Católica, muita vez reacionária e monopolista, teve peso enorme na política e na sociedade. Esqueceu-se disso talvez porque tenha havido um vácuo de política religiosa. Imaginou-se então que o país evoluía para a laicidade civilizada, de liberdade para todas as crenças, que seriam assunto privado, se não íntimo. Esse lapso ocorreu entre o começo da decadência da influência do catolicismo, a partir do final dos 1960, e o fortalecimento político-econômico do que se chama hoje genericamente de "evangélicos", no começo dos 1990. Foi lapso no sentido de tempo e de engano.


Os tataravôs da ciência política diziam que, quando um grupo social, em geral emergente, se considera pouco representado ou poderoso, abandona a coalizão em que se abrigava e cria um novo partido, no sentido amplo do termo. É o caso dos "evangélicos", mas também da agrolândia ou do sertanejistão ou dos militares reemergentes.

O ano de 2022 será o nono de renda (PIB) per capita menor do que no pico de 2013. Com muita competência e sorte voltaremos a esse nível apenas em 2026. Seria de resto mera recuperação de terreno perdido: não entra nessa conta o que deixamos de crescer nesse período. A geração que se tornou adulta em 2014, que fazia então seus 21 anos, chegará a ser trintona sem jamais ter visto o país crescer.

Ainda mais impressionante, a Grande Estagnação, piorada por outras crises, não provocou o surgimento de nenhum grande movimento social ou político dos desvalidos, nem ao menos um tumulto de protesto. A fome está quieta no país da religião barulhenta ou do ruído das tretas do sectarismo ignorante, da grande ascensão do idiota.

A gente não nota também que algumas relações socioeconômicas passaram por transformações profundas, que em muito país provocariam conflito. A lei do trabalho foi eviscerada e não houve transplante de novas proteções (ao contrário, a informalidade come o que sobrou das entranhas). A lei das aposentadorias passou por mudança grande (tanto faz se "não resolve o problema fiscal", trata-se de outro assunto aqui). O Estado continuou grande e regulador da economia de favores de mercado, mas falta Estado democrático.

A crise econômica crônica, a mudança estrutural do trabalho e a falta de debate social e político do destino econômico vão fazendo com que o país se divida em uma massa de plebeus aos quais se quer entregar não mais do que uma ração de pão (rendas mínimas) e uma elite restrita a um enclave que vive de rendas ou do trabalho que restará.

Este país em que não se fala mais de desenvolvimento (ou em que tal processo se tornou inviável) corre o risco de se tornar uma caricatura pop de pós-apocalipse moderno com traços de despotismo antigo, de pão, algum circo e nenhum trabalho, com regiões feudalizadas por duques do dinheiro e por milícias-facções, no que sobrar do incêndio ou da seca do desastre climático, talvez sob uma política teocratizada.

Descambamos aos poucos para esses destinos, desapercebidos.

Carta ao próximo presidente

O mais provável é que o senhor não leia esta coluna, não sou ninguém importante e minha opinião vale pouco ou nada. Estou entre os 99% dos 213 milhões de brasileiros. Mesmo assim tem vezes que dou sorte: quem sabe algum assessor ou parente esquece este jornal no seu banheiro? Ou então o seu dentista atrasa e o senhor não tem mais nada para ler na sala de espera?

Milagres, mesmo no Brasil atual, acontecem.

O senhor, o próximo presidente, pode ser o quer voltar, o que quer ficar ou um dos que vão pela primeira vez. Tanto faz, o que tenho a dizer é o mesmo para todos: apontar que X é corrupto, Y é incompetente, Z é comunista ou fascista, não o fará um bom governante. A gente está cansado de saber. O povo pode até ser ignorante, mas burro não é. Basta dar uma olhada ao redor para ver o buraco em que estamos. O que quero saber é o que o senhor pretende fazer para consertar o estrago? Quais as suas soluções? Seja claro, objetivo e diga a verdade. Lembre também que o senhor não vai ser apresentador de programa policial, diretor de DCE universitário ou operador da Bolsa de Valores. Sua função é encontrar soluções que atendam aos 213 milhões, principalmente os 99% de baixo, não apenas os seus amigos, que costumam estar entre o 1% de cima. Parece óbvio? Então olhe em volta e me diga o que viu. 

Não quero tomar o seu tempo na sala de espera e muito menos no banheiro, então serei rápido com o outro pedido, que é o principal: dedique-se a diminuir a desigualdade neste país.



É o nosso maior problema. Nunca seremos uma nação enquanto a diferença entre nós não diminuir. Há séculos seguimos o mantra do “O de cima sobe, o de baixo desce” e o fosso só aumenta. Os ricos são cada vez mais ricos, os pobres cada vez mais pobres. A situação está se tornando insustentável, até para os muito ricos. Para começar a melhorar precisamos de educação e saúde decentes para todos, absolutamente todos, e uma tributação mais justa também. 

Os seus amigos, esses que lhe financiam a campanha, têm que pagar mais impostos. É o óbvio: quem tem mais paga mais, quem tem menos, paga menos. Ah, mas já é assim, aqui o imposto é progressivo, responderá o senhor com ar inocente, de quem finge que não sabe como a banda toca. Como já lhe disse antes, a gente pode até ser ignorante, mas não é burro: não adianta não cobrar imposto de renda dos menos favorecidos e taxar o feijão e o arroz que comem ou a geladeira e o fogão que usam. O senhor acha mesmo que ninguém percebe a jogada?

Tem mais.

Da importância da saúde para todos, do SUS, nem preciso falar, a pandemia deixou claro até para o mais ignorante. Quanto à educação pública decente, é o mínimo para que todos os 213 milhões tenham as mesmas chances. Pergunte aos apóstolos dessa meritocracia marota que inventaram — essa do cada um por si — quanto herdaram, onde estudaram: a resposta também é óbvia. Aliás, o senhor e seus filhos deveriam ter acesso apenas a escolas e hospitais públicos. Se acha isso absurdo não precisa falar mais nada, já disse ao que veio antes de começar.

Imagino que neste momento o senhor, cansado de me ler, já está procurando um papel mais urgente do que um jornal. Ou então já foi chamado para entrar no consultório. Ficam por aqui os meus pedidos. Sou um em 213 milhões, mas acho que não estou sozinho.