segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

Carta ao próximo presidente

O mais provável é que o senhor não leia esta coluna, não sou ninguém importante e minha opinião vale pouco ou nada. Estou entre os 99% dos 213 milhões de brasileiros. Mesmo assim tem vezes que dou sorte: quem sabe algum assessor ou parente esquece este jornal no seu banheiro? Ou então o seu dentista atrasa e o senhor não tem mais nada para ler na sala de espera?

Milagres, mesmo no Brasil atual, acontecem.

O senhor, o próximo presidente, pode ser o quer voltar, o que quer ficar ou um dos que vão pela primeira vez. Tanto faz, o que tenho a dizer é o mesmo para todos: apontar que X é corrupto, Y é incompetente, Z é comunista ou fascista, não o fará um bom governante. A gente está cansado de saber. O povo pode até ser ignorante, mas burro não é. Basta dar uma olhada ao redor para ver o buraco em que estamos. O que quero saber é o que o senhor pretende fazer para consertar o estrago? Quais as suas soluções? Seja claro, objetivo e diga a verdade. Lembre também que o senhor não vai ser apresentador de programa policial, diretor de DCE universitário ou operador da Bolsa de Valores. Sua função é encontrar soluções que atendam aos 213 milhões, principalmente os 99% de baixo, não apenas os seus amigos, que costumam estar entre o 1% de cima. Parece óbvio? Então olhe em volta e me diga o que viu. 

Não quero tomar o seu tempo na sala de espera e muito menos no banheiro, então serei rápido com o outro pedido, que é o principal: dedique-se a diminuir a desigualdade neste país.



É o nosso maior problema. Nunca seremos uma nação enquanto a diferença entre nós não diminuir. Há séculos seguimos o mantra do “O de cima sobe, o de baixo desce” e o fosso só aumenta. Os ricos são cada vez mais ricos, os pobres cada vez mais pobres. A situação está se tornando insustentável, até para os muito ricos. Para começar a melhorar precisamos de educação e saúde decentes para todos, absolutamente todos, e uma tributação mais justa também. 

Os seus amigos, esses que lhe financiam a campanha, têm que pagar mais impostos. É o óbvio: quem tem mais paga mais, quem tem menos, paga menos. Ah, mas já é assim, aqui o imposto é progressivo, responderá o senhor com ar inocente, de quem finge que não sabe como a banda toca. Como já lhe disse antes, a gente pode até ser ignorante, mas não é burro: não adianta não cobrar imposto de renda dos menos favorecidos e taxar o feijão e o arroz que comem ou a geladeira e o fogão que usam. O senhor acha mesmo que ninguém percebe a jogada?

Tem mais.

Da importância da saúde para todos, do SUS, nem preciso falar, a pandemia deixou claro até para o mais ignorante. Quanto à educação pública decente, é o mínimo para que todos os 213 milhões tenham as mesmas chances. Pergunte aos apóstolos dessa meritocracia marota que inventaram — essa do cada um por si — quanto herdaram, onde estudaram: a resposta também é óbvia. Aliás, o senhor e seus filhos deveriam ter acesso apenas a escolas e hospitais públicos. Se acha isso absurdo não precisa falar mais nada, já disse ao que veio antes de começar.

Imagino que neste momento o senhor, cansado de me ler, já está procurando um papel mais urgente do que um jornal. Ou então já foi chamado para entrar no consultório. Ficam por aqui os meus pedidos. Sou um em 213 milhões, mas acho que não estou sozinho.

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