Não se trata apenas da normalização de horrores sob Jair Bolsonaro: golpe, tortura, ditadura, ignorância e ódio à diversidade humana, por exemplo. Vai além do bolsonarismo, que foi veículo ou catalisador de mudanças, mas é menor do que essas torrentes.
A religião voltou a se tornar assunto de Estado, oficialmente, com a indicação e a aprovação de André Mendonça para uma cadeira do Supremo, por exemplo.
Sim, já tivemos crença oficial ou oficiosa. A Igreja Católica, muita vez reacionária e monopolista, teve peso enorme na política e na sociedade. Esqueceu-se disso talvez porque tenha havido um vácuo de política religiosa. Imaginou-se então que o país evoluía para a laicidade civilizada, de liberdade para todas as crenças, que seriam assunto privado, se não íntimo. Esse lapso ocorreu entre o começo da decadência da influência do catolicismo, a partir do final dos 1960, e o fortalecimento político-econômico do que se chama hoje genericamente de "evangélicos", no começo dos 1990. Foi lapso no sentido de tempo e de engano.
Os tataravôs da ciência política diziam que, quando um grupo social, em geral emergente, se considera pouco representado ou poderoso, abandona a coalizão em que se abrigava e cria um novo partido, no sentido amplo do termo. É o caso dos "evangélicos", mas também da agrolândia ou do sertanejistão ou dos militares reemergentes.
O ano de 2022 será o nono de renda (PIB) per capita menor do que no pico de 2013. Com muita competência e sorte voltaremos a esse nível apenas em 2026. Seria de resto mera recuperação de terreno perdido: não entra nessa conta o que deixamos de crescer nesse período. A geração que se tornou adulta em 2014, que fazia então seus 21 anos, chegará a ser trintona sem jamais ter visto o país crescer.
Ainda mais impressionante, a Grande Estagnação, piorada por outras crises, não provocou o surgimento de nenhum grande movimento social ou político dos desvalidos, nem ao menos um tumulto de protesto. A fome está quieta no país da religião barulhenta ou do ruído das tretas do sectarismo ignorante, da grande ascensão do idiota.
A gente não nota também que algumas relações socioeconômicas passaram por transformações profundas, que em muito país provocariam conflito. A lei do trabalho foi eviscerada e não houve transplante de novas proteções (ao contrário, a informalidade come o que sobrou das entranhas). A lei das aposentadorias passou por mudança grande (tanto faz se "não resolve o problema fiscal", trata-se de outro assunto aqui). O Estado continuou grande e regulador da economia de favores de mercado, mas falta Estado democrático.
A crise econômica crônica, a mudança estrutural do trabalho e a falta de debate social e político do destino econômico vão fazendo com que o país se divida em uma massa de plebeus aos quais se quer entregar não mais do que uma ração de pão (rendas mínimas) e uma elite restrita a um enclave que vive de rendas ou do trabalho que restará.
Este país em que não se fala mais de desenvolvimento (ou em que tal processo se tornou inviável) corre o risco de se tornar uma caricatura pop de pós-apocalipse moderno com traços de despotismo antigo, de pão, algum circo e nenhum trabalho, com regiões feudalizadas por duques do dinheiro e por milícias-facções, no que sobrar do incêndio ou da seca do desastre climático, talvez sob uma política teocratizada.
Descambamos aos poucos para esses destinos, desapercebidos.
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