De tempos em tempos, surgem notícias detalhando malfeitorias e atitudes antirrepublicanas dos Bolsonaros. Acho ótimo que essas coisas sejam divulgadas. O povo precisa de circo, e é sempre bom conhecer os caminhos dos descaminhos da política.
Também fico feliz com o fato de Jair Bolsonaro ter tido sua inelegibilidade decretada pelo TSE, o que nos poupa de um cenário semelhante ao da volta de Trump nos EUA, e de ele ter sido indiciado pela PF no âmbito das investigações sobre a venda de joias e a falsificação de certificados de vacinação. Ao contrário da Suprema Corte dos EUA, creio que imunidades presidenciais devem ser bem restritas e não se aplicam a situações de obtenção de vantagem pessoal.
Receio, porém, que estejamos caminhando para um cenário Al Capone, o gângster de Chicago que, dadas as dificuldades para provar seu envolvimento em assassinatos, acabou preso por evasão fiscal. Os casos das joias e das vacinas são café pequeno perto de dois outros em que o ex-presidente pode estar metido, o da tentativa de golpe e o da gestão da pandemia.
O do golpe até poderá virar processo, embora a lentidão das investigações preocupe. Já o da pandemia, ao que tudo indica, está fadado ao arquivo, o que me parece especialmente grave. Deixar de responsabilizar um governante que se recusou a seguir o consenso científico numa emergência sanitária que deixou centenas de milhares de mortos significa dizer que líderes são livres para escolher qualquer política em qualquer situação. Não penso que seja assim que um Estado contemporâneo deve funcionar.
Aceitar um cargo de presidente deveria implicar um compromisso com fatos e abordagens racionais para problemas.
Como com Al Capone, é preferível condenar um criminoso por delitos menores a deixá-lo livre. Mas o ideal mesmo seria condenar pelos crimes mais graves e estabelecer os limites da autoridade presidencial. Não vai acontecer.
Certa família de hominídeos, mirando mui seletivamente seus feitos, declarou-se a única espécie sapiens. Fier (orgulhosa) e arrogant (arrogante) arrogante, aceitou o apelido. Olhasse o conjunto da obra, que nome se daria?
Quem sabe Homo bellatur (guerreador), dadas as muitas guerras guerreadas? Ou talvez Homo credulus (crédulo), já que muitas destas foram lutadas em nome de falsos credos, seja em deus outra construção mental, chamada pátria ou dinheiro? Que se repete hoje, nos muitos “nós contra eles” (Ocidente x Oriente, Esquerda X Direita, Fla X Flu etc. )?
São muitas as faces e conflitos da família, designada, leviana e apressadamente, sapiens. Homo Terminator (exterminador) seria um nome razoável se nos lembrarmos das muitas espécies animais e vegetais exterminadas em razão de nossos “feitos”.
Poderia, talvez, a família ser denominada Homo cooperans (cooperativo), ou benignus (amável), ou mesmo adminicula (solidária), em razão dos muitos episódios de cooperação, solidariedade e amor vividos, apesar de todos os crimes cometidos? Seria, em razão destes, melhor chamar a família de scelestus (criminosa)?
Hoje, que tal chamarmo-nos accumulator, já que predominam os esforços para o “crescimento” ou acumulação? Ou, quem sabe, slaver, para não esquecermos dos milhões escravizados por outros da mesma família? Ou, quem sabe, dada a milenar persistência da desigualdade e da pobreza, deveríamos nos qualificar como indifferens paupertatis (indiferentes à pobreza)?
Homo discipulus (aprendiz) é outra possibilidade, pois em muitos campos da experiência, mas não em todos, vivemos apreendendo. Precisamos agora, com urgência, capacitarmo-nos ainda mais a promover e a aceitar mudanças de hábitos e expectativas, pois disso depende nossa sobrevivência em face da desregulação do clima que alguns de nós promovemos. Diante da postergação de ações transformadoras para minimizar as mudanças climáticas e a degradação da base que nos sustenta, a biosfera, como nos qualificar? Stultus (idiota)? Caecus (cego)? Incautum (imprevidente)?
Ao longo dos séculos, muitos continuam a crer que São Sebastião, hoje chamado novas tecnologias, virá nos salvar. Seríamos então Homo bonae spei (esperançoso)? Ou melhor seria o Homo qui ambulant sicut ebrii (que andam como ébrios), pois, como ébrios, andamos há milênios avançando e recuando, à direita e à esquerda, sem focar diretamente o que interessa, que é a qualidade de vida, sem vender a ilusão de isso ser subproduto da cumulus (acumulação)?
De fato, somos multiple (múltiplos), somos tudo isso, e muito mais! É tempo de a ideia de sermos principalmente sapiens seja substituída pelo reconhecimento dessa multiplicidade, aceitação das diferenças, promoção da cooperação e, face à stulticiam daqueles que nos dirigem, substituir estes, em sua grande maioria bellatur, com urgência, pelo homo pacificus, cooperans et adminicula (pacífico, cooperativo e solidário). Assim, nossos filhos e netos terão melhores chances de viver com qualidade de vida!
Uma bola de ténis voa sobre a rede, num vaivém. Atravessa-a, uma e outra vez, até se deter. Um erro do jogador fá-la descer demasiado. Toca na rede. Por segundos, parece rodopiar sobre a tira branca, indecisa sobre o lado para o qual cairá. É como se sustivesse a respiração. Fica no ar enquanto uma voz fala sobre o poder do acaso e a forma como preferimos ignorá-lo. “O homem que disse que preferia ter sorte a ser bom tinha uma visão profunda da vida. As pessoas têm medo de enfrentar a que ponto uma grande parte das suas vidas está dependente da sorte”.
A cena é do filme Match Point, de Woody Allen, e tive de ir revê-la depois de um amigo me dizer que se tinha lembrado dela a propósito da bala que só tocou a orelha de Donald Trump de raspão. “Destinos ditados por milímetros”, dizia-me ele, que também se lembrou de Pascal, o filósofo que disse um dia que “se o nariz de Cleópatra tivesse sido mais curto, toda a face da Terra teria mudado”.
Gostamos de histórias. É através delas que conseguimos ordenar o mundo. E não há histórias sem heróis. “Era uma vez”, dizemos nós. E logo a seguir vem um rei, um pirata ou uma princesa, porque o fio da história precisa de seres excecionais para nos prender. Aquilo que muitas vezes perdemos de vista é que os heróis são símbolos. E os símbolos só são poderosos porque carregam ideias.
Quando Trump, ensanguentado, se levanta do chão e ergue o punho reforça-se como símbolo, torna-se numa estampa de t-shirt, numa capa de revista, numa escultura. Mas se a bala lhe tivesse acertado, o mito teria outras formas de se perpetuar. Nunca a morte venceu um mito. Pelo contrário, a morte cristaliza os mitos, cobre-os com uma capa de eternidade que impede que estalem. E é por isso que ainda falamos do nariz de Cleópatra que nunca vimos.
As ideias são as placas tectónicas que fazem mover o mundo. Trump é já mais uma ideia do que um homem. Ou talvez seja o produto dessa ideia, a encarnação de uma força que se está a instalar no mundo, através da desregulação, de um libertarismo individualista e selvagem, oculto sob a promessa de ordem de um conservadorismo agressivo, que servirá para dar rédea solta a um punhado de poderosos e manter todos os outros sob o jugo da servidão. A morte não o travará.
Se não soubermos perceber os mecanismos que fazem de Trump um símbolo, não conseguiremos nunca combatê-lo. Os homens providenciais não existem. São só uma forma de entendermos o mundo. Quando a morte os leva, o que lhes deu poder encontrará outras formas de persistir, se a semente das suas ideias conseguir encontrar um solo fértil onde crescer.
Então e a sorte? O que vale a sorte? Vale muito. Vale quase tudo para os que não têm poder. O segundo em que abrimos os olhos pela primeira vez é parecido com o momento em que a bola hesita sobre a rede. Cair de um ou de outro lado de uma fronteira, numa ou noutra classe, numa ou noutra família. Esses são os milímetros que mudam tudo. O nariz da Cleópatra é outra conversa.