terça-feira, 28 de junho de 2022

Brasil no prato

 


O drama da fome

Temos hoje 125,2 milhões de brasileiros em situação de insuficiência alimentar. O problema não se resolverá com providências tópicas e emergenciais.

Entre o acúmulo de dramas que se tornaram visíveis na sociedade brasileira nos últimos dias, está o não pequeno drama da fome. O país do futuro está sendo devorado pelo presente.

Os dados mais recentes sobre a fome, divulgados pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar, colhidos em entrevistas realizadas em 12.745 domicílios, dão um retrato objetivo da situação em todas as regiões do país, na zona urbana e na zona rural. Constituem indicadores de uma parte do que é a nossa pobreza, pois se referem apenas à situação alimentar. Haveria que levar em conta o restante do que é a pobreza entre nós quanto à moradia, ao consumo não alimentar, à saúde, à educação.

A porcentagem dos que em 2004 viviam em situação de segurança alimentar era de 64,8%; em 2020/2021 caíra para 41,3%. Mesmo que se considere, como é necessário, a situação anômala criada pela pandemia, a intensidade de sua influência nos números foi agravada pela vulnerabilidade da sociedade brasileira ao impacto de desastres de todos os tipos, incluídos os decorrentes da incapacidade dos governos para lidar com situações excepcionais em todos os campos.

Entre o final de 2020 e o início de 2022, o número de pessoas em situação grave de fome saltou de 19,1 milhões para 33,1 milhões, 15,1% da população. Em pouco mais de um ano, 14 milhões de brasileiros passaram a viver em situação de fome, a forma mais acentuada de decadência social da pessoa. Temos hoje 125,2 milhões de brasileiros em situação de insuficiência alimentar.


O socorro tópico e emergencial oferecido pelo governo, melhor que nada, como se diz, tem pouco efeito no incremento da segurança alimentar. Tomando como referência a categoria dos que recebem 1/4 de salário mínimo per capita ou menos, a relação, nos três meses anteriores à coleta dos dados, entre o recebimento da Bolsa Família ou do Auxílio Brasil, dos que recebem, 8,1% estão em situação de segurança alimentar e 44,3% em insegurança alimentar grave. Entre os que não recebem, 9,9% estão na primeira situação e 56,7% estão na segunda.

O problema não se resolverá com providências tópicas e emergenciais. Elas se baseiam num pressuposto que vai se revelando completamente falso. O de que a situação adversa, do desemprego à fome, é transitória, de que o crescimento econômico sem desenvolvimento econômico e social se resolverá com a insistência na opção pelo modelo econômico problemático e pelo neoliberalismo econômico sem resultados sociais na proporção necessária à solução de todos os problemas que cria. O modelo econômico aqui adotado vai se revelando o do beco sem saída.

Sem programas de crescimento econômico com desenvolvimento social que criem lugares permanentes de integração social e de pertencimento, nenhum programa de combate à fome dará certo. Qualquer “acidente”, como este da covid, pode comprometer tudo.

O impacto desses programas na fome é limitado. E quando sua motivação é subornar a consciência política dos pobres e deles fazer cúmplices eleitorais do modelo iníquo e da política econômica equivocada o resultado é o que Edgar Morin define como efeito bumerangue da comunicação imprópria. Estamos vendo isso diariamente.

Esses dados da situação alimentar devem ser tomados não só como indicação de gravíssimo problema social, mas também como evidência de um modelo econômico derrotado, de uma economia que cresce e se desenvolve muito menos do que pode. O Terceiro Mundo, e o Brasil com destaque nele, vem sendo tangido por influências e políticas econômicas que de fato o afastam do capitalismo.

O Brasil montou um sistema repressivo e uma cultura de intolerância política para combater o comunismo, mesmo já não existindo ele, para supostamente defender o capitalismo. Mas cadê a defesa do capitalismo? Capitalismo se defende e se justifica com medidas concretas que lhe corrijam as irracionalidades antes de incrementar-lhe os lucros.

Na prática essa economia só pode se realizar fazendo-o ser o capitalismo que aqui não é. Governantes e capitalistas parecem bem distantes da realidade do que é propriamente o tipo de economia que lhes compete defender, dinamizar e fazer crescer. Não é o que estamos vendo nem o que indica essa pesquisa sobre a fome.

Os famintos e miseráveis da sociedade brasileira são o capital social não utilizado que poderia promover um grande desenvolvimento econômico com desenvolvimento social num país como o nosso.

O Estado brasileiro foi capturado por gestores que optaram por uma versão tosca e anticapitalista de capitalismo. É o poder de técnicos e políticos alienados. Em decorrência, as vítimas se arrastam nas insuficiências de uma situação que bloqueia o país inteiro.

Combinação perversa

Com a costumeira empatia zero, o presidente Jair Bolsonaro usou uma menina de 11 anos, vítima de estupro, para criticar o direito ao aborto legal. Bem que tentou desviar as atenções do escândalo envolvendo o seu ex-ministro da Educação, por quem ele já colocou a cara no fogo, e agora, arrependido, só põe a mão. Mas desta vez não deu muito certo. No meio da tarde da sexta-feira, a suspeição de que ele interferiu nas investigações o empurraram para as cordas.

Ainda que a combinação perversa – sigilo do que importa e palavrório polêmico para abafar os temas que incomodam – tenha falhado, Bolsonaro aposta na fidelidade canina (ou será bovina?) dos seus e na memória fraca do público em geral. Isso explicaria o efeito tefal observado nas pesquisas de opinião, que, a despeito do cenário adverso para o presidente, o deixam no mesmo lugar – não sobe, mas também não despenca.

Mesmo evidenciando a gravidade do recuo civilizatório do país, a avalanche de ocorrências escabrosas ironicamente contribui para colocá-las no esquecimento. O arremedo golpista de 7 de setembro do ano passado, por exemplo, quase eclipsou o genocida da pandemia, aquele que corria da raia dizendo que não era coveiro. E assim vai.

A farra dos pastores no MEC, denunciada pelo Estadão há menos de três meses, só voltou à tona com a prisão de Milton Ribeiro, que começa a fazer sombra às mortes cruéis de Bruno e Dom, responsáveis por escancarar o domínio da Amazônia pelo crime organizado. Concorrem ainda com as notícias da fome afligindo 33% da população, com a procuradora espancada por colega e a juíza que tenta induzir uma criança vítima de estupro a abrir mão do direito de aborto. E Genivaldo de Jesus Santos? Quem se lembra?

É difícil apagar da mente a cena da asfixia de Genivaldo no camburão, empurrado violentamente por fardados armados, com fumaça saindo por todos os lados.

Mas aqui, além dos horrores de hoje suplantarem os do dia anterior, provocando o esquecimento, conta muito a escola bolsonarista do manter tudo escondido, travar qualquer possibilidade de transparência no que possa causar prejuízos. Utilizando-se de uma interpretação absolutamente torta da Lei de Acesso à Informação, a Polícia Rodoviária Federal impôs sigilo de até 100 anos sobre os processos administrativos dos agentes envolvidos na ação. Ao Metrópoles, alegou que seriam “informações pessoais”.

A PRF só decidiu ler a lei a seu bel prazer por ter costas largas. Bolsonaro já determinou sigilo de até 100 anos no processo contra o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, sobre as visitas de seus filhos – todos parlamentares – ao Palácio, incluindo seus acompanhantes, de seu cartão de vacinação. Até tentou, sem sucesso, impedir que as 35 entradas dos pastores lobistas do MEC no Planalto ficassem lacradas por um século.

Além de ecoar polêmicas aderentes aos seus fiéis só para tergiversar, e da absurda prática do segredo de estado em questões em que a norma não se aplica, a cartilha de Bolsonaro para tentar se livrar dos perrengues do seu desgoverno tem outras vertentes. Apoia-se ainda na mentira – expressa cotidianamente nas redes sociais – e no afrouxamento amplo, geral e irrestrito de qualquer fiscalização, aquelas organizações com letrinhas chatas que perturbam sua família, seus amigos e aliados. E, claro, na gastança eleitoral com dinheiro dos impostos dos brasileiros e na campanha permanente.

Já no primeiro ano de mandato, injuriado com as diligências da Coaf nas contas de seu rebento Flávio, enrolado com as rachadinhas, o papai presidente decidiu mudar a gerência, a vinculação e até o nome do Conselho, que passou a chamar Unidade de Inteligência Financeira (UIF). Movimento tão fake que nem o novo nome colou. Mas serviu para assustar servidores, reorientar e apagar investigações.

Não há um só órgão de fiscalização que tenha saído ileso. Sob Bolsonaro, todos, absolutamente todos perderam poder de investigação. Ibama, Funai e Inpe lideram o rol de organizações dinamitadas, que ainda inclui vítimas de assédio institucional como o ICMBio e o IBGE e várias universidades federais, acusadas de proselitismo de esquerda.

Esse enredo macabro de bravatas, mentiras, destruição e sigilo ainda pode fazer sucesso. Mas deveriam se limitar à seara do entretenimento, novelões e filmes B. O repertório do Brasil tem de ser outro.

Sempre dá para piorar

Qual é o papel dos agentes do Estado num país democrático? Uma série de acontecimentos recentes destaca a pertinência e a urgência da questão no Brasil.

A PRF, por exemplo, resolveu liberar uma nuvem de fumaça sobre o caso Genivaldo de Jesus Santos, o homem negro morto por asfixia e insuficiência respiratória na espécie de câmara de gás improvisada numa viatura em Sergipe. Acionada por meio da Lei de Acesso à Informação, a corporação impôs sigilo secular sobre os processos administrativos que investigam a conduta dos agentes envolvidos.


No Rio, a vereadora Benny Briolly denunciou nova ameaça de morte, segundo ela "desta vez enviada do e-mail oficial do gabinete do deputado estadual Rodrigo Amorim". Foi registrada ocorrência por racismo e transfobia contra o parlamentar. "É um atentado ao meu corpo e à democracia. Sou travesti eleita pelo povo dentro dos marcos da Constituição", disse Benny.

E, em meio ao alvoroço causado pela decretação da prisão preventiva do ex-ministro Milton Ribeiro e de quatro envolvidos no escândalo de corrupção no MEC, a denúncia do delegado federal Bruno Calandrini de que "houve interferência na condução da investigação", com prejuízo aos trabalhos, elevou o grau da fervura. Embora a manifestação tenha sido inicialmente categorizada pela PF como "boato", a interceptação de ligação telefônica na qual o ex-ministro revela ter sido prevenido sobre possível operação de busca e apreensão determinou a escalada do caso.

Quando a finalidade dos agentes do Estado é desvirtuada, forças de segurança se tornam matriz de violência contra o cidadão, deixando de proteger; prerrogativas básicas são descumpridas; e decisões passam a ser tomadas com parcialidade. Nesses casos, a repressão passa a responder a impulsos contrários ao interesse público, em prejuízo da defesa de direitos e garantias fundamentais e do Estado democrático de Direito. Como diz o ditado: nada é tão ruim que não possa piorar.

É preciso desligar a violência

A notícia já era repugnante por escrito: um procurador espancou a colega de trabalho. Não vieram, porém, só palavras, tinha mais: o vídeo registrando de forma explícita a covardia.

Me desculpem, mas, para mim, foi demais.

As notícias abomináveis têm aparecido em sequência: a câmara de gás portátil em Sergipe, o assassinato de Bruno Pereira e Dom Phillips, o estupro da menor em Santa Catarina. A gente sabe que não vai parar por aí. Como reagir? O quanto podemos tolerar? Quando o vídeo covarde e violento começou, parei no primeiro soco.

Já não consigo.

Sim, sei que a indignação pública é fundamental e que sem ela a Justiça não vai para a frente. Deixar quieto é garantia de impunidade. Também sei que sou um privilegiado, dos que têm contato com a violência muito mais pelas telas do que ao vivo.

Sim, tenho consciência.


Porém, de tão informado, de tantas notícias trágicas nas palmas das mãos e imagens violentas ao alcance dos olhos, de tanto ver o que não gostaria de ter visto, ando querendo desligar a realidade. Ao menos essa da desgraça e dor em 4k e 120Hz. Às vezes me sinto como aquele personagem de “Laranja mecânica”, obrigado a ver cenas violentas até não aguentar mais.

O quanto a gente consegue aguentar? Vale a pena?

Talvez esteja me juntando aos que evitam notícias ruins. São cada vez mais, diz uma pesquisa do Instituto Reuters feita em vários países. Sim, o Brasil está na frente. Talvez não se trate de alienação, muito menos desinteresse, mas de sobrevivência. Buscar abrigo para o excesso de maldade e estupidez. O leitor deve estar se perguntando se funciona, se não é tapar o sol com a peneira ou enterrar a cabeça na areia. É sensato ignorar o horror?

Quando era adolescente e ouvia minha avó reclamar das notícias ruins nas páginas, na TV, achava que isso era uma atitude sem sentido, coisa de velho. Hoje percebo a antiga sabedoria. Não dá para viver cercado de crueldade e selvageria. Mais cedo ou mais tarde você acaba se tornando indiferente à barbárie. Quando se dá conta, virou um daqueles haters que apareceram na coluna da semana passada. Melhor não.