sábado, 19 de janeiro de 2019
Na torcida
Se a política fosse como uma empresa, que persegue fim uníssono e predeterminado — gerar lucro e pagar acionistas dentro da lei —, “gestores não políticos” poderiam fazer “dar certo”. Mas, como a política constitui o espaço em que negociamos nossas diferenças, disputamos a multiplicidade de meios e fins e as prioridades entre tais fins, onde traçamos a fronteira entre público e privado e entre autoridade e liberdade, onde definimos um significado prático de justiça e calibramos a distribuição de bens escassos, precisamos de acomodação. Gestão eficiente é indispensável, mas a escolha do que gerir vem antes. Essa escolha é moral e constitucional, não gerencial.
O governo empossado adota comportamento que põe em risco a democracia: chama aquilo que atrapalha na Constituição de “amarra ideológica” e tenta converter o pacto constitucional num panfleto partidário a ser combatido; por não poder reformar a essência da Constituição (a não ser que crie outra pela força), retorce seu texto e enxerta nas entrelinhas um projeto antípoda; termina por chamar todos os governos dos últimos 30 anos de socialistas (ou de “prisão social-democrata”, termo usado por Paulo Guedes para descrever o país com um dos sistemas tributários mais regressivos do mundo, em que educação e saúde são livres à exploração privada e executivos ganham em média 34 vezes mais que operários, segundo a consultoria Mercer). Uma fraude conceitual nada infantil.
Se a proposta é suprimir terras indígenas e transformar índios sobreviventes em pobres urbanos (como fez o governo Dilma em Altamira para construir Belo Monte); criminalizar novas condutas, radicalizar a guerra às drogas e ampliar o encarceramento (como fez o governo Lula por meio da Lei de Drogas de 2006); liberar o porte de armas, que nunca reduziu violência no mundo; desmatar a Amazônia e destruir biodiversidade, o que gera empobrecimento e dá empurrão ao aquecimento global e regional; deixar de fora da reforma da Previdência as Forças Armadas e o Judiciário, as corporações mais privilegiadas do Estado brasileiro e donas da maior fatia do déficit; fazer vista grossa para a violência policial desorientada e ainda responder a protestos de rua com uma lei antiterrorismo (como fez o governo Dilma); enfraquecer a política de prevenção do HIV/aids para não “ofender famílias”; excluir termos como “direitos humanos” e “LGBT” de políticas de governo; esconder e agravar os reais problemas da escola (qualidade do ensino, condições de trabalho) e distrair-nos com falsos problemas, tais como a perversão sexual e recrutamento político das crianças; se o lema é “Brasil acima de tudo”, truque retórico que na história política sempre significou repressão àqueles que, na visão do líder, não são cidadãos autênticos, ou “Deus acima de todos”, que substitui a Constituição pela Bíblia , a razão por Deus e a verdade científica por fatos alternativos, torço contra. Se as promessas de Bolsonaro “derem certo”, felizes serão poucos, e os de sempre.
Os exemplos acima não guardam qualquer relação com a proteção da vida e da dignidade (isto é, de sua vida e de sua dignidade). Mas, se Bolsonaro tiver coragem de respeitar a Constituição, de olhar para o outro e defender o interesse nacional (que não coincide com o cortejo servil a Trump); se tiver honestidade para entender o que está em jogo na educação, na saúde e na segurança e para escutar demandas legítimas de professores, médicos e policiais; se tiver curiosidade em saber como políticas sociais aliviam sofrimento e miséria, além de gerar crescimento econômico, inclusão e redução da violência; e se quiser fazer política pública orientada por evidências empíricas, e não pelo fígado, inspirada por valores constitucionais, e não teológicos, fico na torcida.
Conrado Hübner Mendesa
Bolsonaro e PT se opõem e se juntam em favor do atraso
A sabedoria convencional responderia, até não faz muito tempo, que, em casos assim, o “centro” comparece com seus característicos apelos ao bom senso, à responsabilidade, à moderação —aquelas palavras, enfim, que, em tempos crispados, servem à caricatura. Os espíritos reformistas são os mais injustiçados da história, embora sejam eles a responder pelas conquistas civilizatórias. Mas estão em baixa, é preciso reconhecer.
Jair Bolsonaro tem um ano —os mais exigentes lhe dão seis meses— para fazer a reforma da Previdência. Ainda que ela venha fatiada, é preciso que a parte substancial da mudança seja votada ainda neste 2019. Havendo um titubeio nessa área, os tais mercados, que hoje não olham para mais nada —o resto ainda é uma bagunça—, começarão a pôr um preço no que será visto, então, como um malogro.
Em 2020, há as eleições municipais. A disposição reformista do Congresso, especialmente para cortar gastos e benefícios, cai substancialmente. Se conseguir aprovar um texto ao menos razoável, aumentam as chances de o presidente ser bem-sucedido, que é coisa diferente de dar certo. Distingui essas duas categorias na coluna de 28 de dezembro. Enquanto o embate da Previdência não chega, é preciso animar a plateia.
A violência escandalosa que há no país só será contida com o aumento da vigilância e da arbitragem da Polícia Federal sobre as armas. O decreto vai em sentido contrário. Ignora, de resto, todas as evidências fáticas de que mais armas redundam em mais eventos com... armas! Também os fatos e a lógica não são campeões de audiência.
Bolsonaro terceirizou para Paulo Guedes a economia e pretende manter suas hostes mobilizadas com temas da tal guerra cultural. Daqui a pouco, começa a desconstrução da figura de Che Guevara... Tudo cheira a uma mistura de mofo com naftalina.
O cenário internacional não é dos melhores, mas não há catástrofe iminente. Como Dilma Rousseff foi apeada do poder, parte do trabalho que seu sucessor teria de fazer já foi realizada por Michel Temer, que deixou uma herança bendita: entregou o país com inflação e juros baixos; expôs de maneira inequívoca o rombo previdenciário; equacionou, ainda que sem resolver porque tempo não houve, o déficit fiscal obsceno; pôs o Brasil no rumo de um crescimento de ao menos 2,5% neste ano, entre outras conquistas. Se o governo que aí está fizer uma reforma satisfatória da Previdência, o país pode vir a ter uma expansão mais robusta.
Em qualquer dos casos, a agenda reacionária do bolsonarismo para a educação, cultura, costumes, minorias, meio ambiente, diversidade etc. estará na ordem do dia. Havendo um malogro na economia, radicaliza-se o discurso em busca de bodes expiatórios. É o que os autoritários sempre fazem. Se o país deslanchar, idem. É o que os autoritários sempre fazem...
Os arreganhos do PT contra a liberdade de imprensa, por exemplo, se deram quando o poder do partido parecia mais eterno do que os diamantes. Escolha o seu sonho: atraso no longo prazo com crescimento econômico no curto e no médio. Ou sem ele.
E o PT? Os primeiros movimentos do partido, ou dos que estão impondo o rumo ao menos, indicam uma aposta: o governo Bolsonaro vai ser malsucedido; haverá um crescimento da insatisfação popular, ainda que mais lento do que a legenda desejaria, e a prioridade é reconstruir o campo da esquerda com uma agenda... de esquerda.
Parece tautologia, mas o fato é que a linha influente considera que o erro político principal do partido foi ter aderido a uma pauta social-democrata. Com o adernamento à direita do PSDB, o centro e a centro-esquerda são, por enquanto, terra de ninguém. As circunstâncias os estão oferecendo de bandeja ao PT. Mas o partido prefere posar para a posteridade ao lado de Nicolás Maduro.
Bolsonaro e PT... Opostos e combinados.
Brasil não tem uma lei que permita fabricação, uso, posse e porte de arma de fogo
E a Lei nº 10.826 de 22/12/2003?. Bom, esta lei foi editada com o nome de Estatuto do Desarmamento. Teve vida curta, se é que chegou a sobreviver. Ela tratou do desarmamento desde a sua edição (Dezembro/2003) até Outubro de 2005. Repito: tratou do desarmamento.
Um homem armado (arma de fogo, é claro) e um homem desarmado são expressões e situações sinônimas? É evidente que não são. Portanto, a referida lei cuidou exclusivamente do DE-SAR-MA-MEN-TO. E a lei deu, consequentemente, um sonoro NÃO às armas, ainda que tenha aqui e acolá tratado de posse e porte de arma de fogo, mas de uma forma muito primária, generalizada, sucinta, insegura e sem fecundidade. Ou seja, desairosamente.
Esta lei (Estatuto do Desarmamento) que disse um NÃO às armas, vigorou até 25 de outubro de 2005. Neste dia, em obediência ao disposto no seu artigo 35 da referida lei, num referendo popular nacional, o povo brasileiro disse outro sonoro NÃO, desta vez à Lei 10.826/2003 e, consequentemente, um rotundo (com licença, Brizola) SIM às armas. Foi no referendo que indagou: “O comércio de arma de fogo e munição deve ser proibido no Brasil?”.
Da população, 63,94% responderam NÃO, o que corresponde dizer: sim, queremos armas; sim, queremos comercialização de armas de fogo; sim, queremos ter a posse de arma; sim, queremos portar armas; sim, queremos estar armados; sim, queremos ver abertas e por todos os cantos lojas que vendem armas de fogo; sim, queremos comprar armas.
Ora, ora, a voz do povo, em obediência ao artigo 35 do Estatuto do Desarmamento, derrubou todo ele, de uma vez só. Desde então o Estatuto não “ecziste” mais (com licença, Padre Quevedo). Sim, porque ele tratava do Desarmamento e o povo disse Não ao Desarmamento e ficou faltando editar o Estatuto do Armamento, com regras e disposições próprias e pormenorizadas inerentes às armas de fogo, Artigo 35: “É proibida a comercialização de arma de fogo e munição em todo o território nacional, salvo para as entidades previstas no art. 6º desta lei. § 1º – Este dispositivo, para entrar em vigor, dependerá de aprovação mediante referendo popular, a ser realizado em outubro de 2005”.
Então, veio o referendo. E quase 64% da população derrubou o Estatuto do Desarmamento. Sim, porque para ter a posse e porte de arma de fogo é preciso, primeiro, que a comercialização seja autorizada. Se desautorizada, ninguém poderia ter a posse e porte de arma por não ter onde comprar. Seria possuir ou portar arma clandestina, proibida a venda. Mas o povo disse NÃO. Não queremos o Estatuto do Desarmamento, que desde então deixou de “eczistir” (licença de novo, Padre Quevedo).
E de lá pra cá, armamento de fogo ficou sem lei que o regulasse. Derrubada a Lei do Desarmamento, derrubado também foi o Decreto 5123 de 2004, que a regulamentou e também derrubado este decreto de agora, o decreto 9685 de 15.1.2019, que alterou alguns dispositivos daquele decreto de 2004 e nele introduziu algumas novidades.
Tudo nulo. Tudo inútil. Tudo sem validade. Tudo derrubado. Não é surpreendente que o presidente da República tenha assinado este último decreto. O surpreendente é ele também levar a assinatura do doutor Sérgio Moro, logo abaixo da do presidente da República. Que constrangimento!
Em suma: o Estatuto do Desarmamento tratou, como o próprio nome da lei indica, do de-sar-ma-men-to. E teve vigência até 25 de outubro de 2005, quando ocorreu o referendo. E pela vontade da maioria do povo brasileiro, o Estatuto do Desarmamento foi revogado.
O povo depositou nas urnas o NÃO à pergunta aqui já mencionada, o que equivale à sua revogação e a dizer um SIM às armas. E este SIM às armas, posterior ao Estatuto que o povo revogou, exige a edição de um necessário e indispensável estatuto sobre armas, que até poderia receber o nome de Estatuto do Armamento.
Um homem armado (arma de fogo, é claro) e um homem desarmado são expressões e situações sinônimas? É evidente que não são. Portanto, a referida lei cuidou exclusivamente do DE-SAR-MA-MEN-TO. E a lei deu, consequentemente, um sonoro NÃO às armas, ainda que tenha aqui e acolá tratado de posse e porte de arma de fogo, mas de uma forma muito primária, generalizada, sucinta, insegura e sem fecundidade. Ou seja, desairosamente.
Esta lei (Estatuto do Desarmamento) que disse um NÃO às armas, vigorou até 25 de outubro de 2005. Neste dia, em obediência ao disposto no seu artigo 35 da referida lei, num referendo popular nacional, o povo brasileiro disse outro sonoro NÃO, desta vez à Lei 10.826/2003 e, consequentemente, um rotundo (com licença, Brizola) SIM às armas. Foi no referendo que indagou: “O comércio de arma de fogo e munição deve ser proibido no Brasil?”.
Da população, 63,94% responderam NÃO, o que corresponde dizer: sim, queremos armas; sim, queremos comercialização de armas de fogo; sim, queremos ter a posse de arma; sim, queremos portar armas; sim, queremos estar armados; sim, queremos ver abertas e por todos os cantos lojas que vendem armas de fogo; sim, queremos comprar armas.
Ora, ora, a voz do povo, em obediência ao artigo 35 do Estatuto do Desarmamento, derrubou todo ele, de uma vez só. Desde então o Estatuto não “ecziste” mais (com licença, Padre Quevedo). Sim, porque ele tratava do Desarmamento e o povo disse Não ao Desarmamento e ficou faltando editar o Estatuto do Armamento, com regras e disposições próprias e pormenorizadas inerentes às armas de fogo, Artigo 35: “É proibida a comercialização de arma de fogo e munição em todo o território nacional, salvo para as entidades previstas no art. 6º desta lei. § 1º – Este dispositivo, para entrar em vigor, dependerá de aprovação mediante referendo popular, a ser realizado em outubro de 2005”.
Então, veio o referendo. E quase 64% da população derrubou o Estatuto do Desarmamento. Sim, porque para ter a posse e porte de arma de fogo é preciso, primeiro, que a comercialização seja autorizada. Se desautorizada, ninguém poderia ter a posse e porte de arma por não ter onde comprar. Seria possuir ou portar arma clandestina, proibida a venda. Mas o povo disse NÃO. Não queremos o Estatuto do Desarmamento, que desde então deixou de “eczistir” (licença de novo, Padre Quevedo).
E de lá pra cá, armamento de fogo ficou sem lei que o regulasse. Derrubada a Lei do Desarmamento, derrubado também foi o Decreto 5123 de 2004, que a regulamentou e também derrubado este decreto de agora, o decreto 9685 de 15.1.2019, que alterou alguns dispositivos daquele decreto de 2004 e nele introduziu algumas novidades.
Tudo nulo. Tudo inútil. Tudo sem validade. Tudo derrubado. Não é surpreendente que o presidente da República tenha assinado este último decreto. O surpreendente é ele também levar a assinatura do doutor Sérgio Moro, logo abaixo da do presidente da República. Que constrangimento!
Em suma: o Estatuto do Desarmamento tratou, como o próprio nome da lei indica, do de-sar-ma-men-to. E teve vigência até 25 de outubro de 2005, quando ocorreu o referendo. E pela vontade da maioria do povo brasileiro, o Estatuto do Desarmamento foi revogado.
O povo depositou nas urnas o NÃO à pergunta aqui já mencionada, o que equivale à sua revogação e a dizer um SIM às armas. E este SIM às armas, posterior ao Estatuto que o povo revogou, exige a edição de um necessário e indispensável estatuto sobre armas, que até poderia receber o nome de Estatuto do Armamento.
E assim o novo presidente da República e seu ministro Sérgio Moro perderam a grande oportunidade de apresentar, por Medida Provisória ou Projeto de Lei, um estatuto, uma lei enxuta, inteligente, eficaz, realista e atual para dispor sobre tudo quanto diga respeito a armamento de fogo, desde o fabrico até à venda e seu uso.
Mas ambos perderam tempo e prestigio. Assinaram um decreto decrépito que completa um outro decreto, decrépito também, que regulamentava uma lei já revogada por referendo do povo brasileiro.
Gaibéus
Pareciam cercados no trabalho pelo braseiro de um fogo que alastrasse na Lezíria Grande. Como se da Ponta de Erva ao Vau a leiva se consumisse nas labaredas de um incêndio que irrompesse ao mesmo tempo por toda a parte.
O ar escaldava; lambia-lhes de febre os rostos corridos pelo suor e vincados por esgares que o esforço da ceifa provocava. O Sol desaparecera há muito, envolvido pela massa cinzenta das nuvens cerradas. Os ceifeiros não o sentiam penetrar-lhes a carne abalada pela fadiga. Lento, mas persistente, parecia ter-se dissolvido no ar que respiravam, pastoso e espesso.
Trabalhavam à porta de uma fornalha que lhes alimentava os pulmões com metal em fusão. Quase exaustos, os peitos arfavam num ritmo de máquinas velhas saturadas de movimento.
A ceifa, porém, não parava, e ainda bem - a ceifa levava o seu tempo marcado. Se chovesse, o patrão apanharia um boléu de aleijar, diziam os rabezanos na sua linguagem taurina. Eles próprios não a desejavam; se as foices não cortassem arroz, as jornas acabariam também.
E se ao sábado o apontador não enchesse a folha, as fateiras não trariam pão e conduto da vila.
Então os dias tornar-se-iam ainda mais penosos e o degredo por terras estranhas mais insuportável.
Vencidos pelo torpor os braços não param. Lançam as foices no eito, juntando os pés de arroz na mão esquerda, e o hábito arrasta-os em gestos quase automáticos, mais um passo e outro, a caminho da maracha que fecha o extremo de cada canteiro. Caminham sempre no mesmo balouçar de ombros; as pegadas do seu esforço ficam marcadas na resteva lodosa.
Talvez muitos deles pensem que o arroz deitado nas gavelas repousa primeiro do que os seus corpos. Se pudessem deter-se também, por instantes, e descansarem depois a cabeça nos montes de espigas que deixam atrás de si, a ceifa poderia animar.
Mas o bafo que vem da seara queima mais em cada minuto e as cabeças dos alugados pesam já tanto como o cabo das foices nos braços esgotados. Estão atulhados de amarelo, de pensamentos e de grãos de fogo que a canícula doente lhes insuflou no sangue.
Ninguém entoa cantigas para animar, embora os capatazes tenham incitado as raparigas cantaroleiras para o fazer. Nos ranchos não há agora quem saiba cantar. Como podem as cachopas entrar em cantos ao desafio, se os peitos parecem fendidos pela fadiga e o ar que respiram se tornou lava do vulcão da planície?!
-Auga!... Auga!... - Gritam os rapazes aguadeiros.
Os seus brados parecem vogar sobre o rancho e não se dissolvem. Ficam a boiar na massa espessa da lava de fogo e angústia que cobre as searas. As palavras não naufragam.
Os seus brados parecem vogar sobre o rancho e não se dissolvem. Ficam a boiar na massa espessa da lava de fogo e angústia que cobre as searas. As palavras não naufragam.
Talvez por isso também as raparigas não cantem. Agora só saberiam canções tristes que lhes recordassem a sua condição de alugadas.
Alves Redol, "Gaibéus"
O ar escaldava; lambia-lhes de febre os rostos corridos pelo suor e vincados por esgares que o esforço da ceifa provocava. O Sol desaparecera há muito, envolvido pela massa cinzenta das nuvens cerradas. Os ceifeiros não o sentiam penetrar-lhes a carne abalada pela fadiga. Lento, mas persistente, parecia ter-se dissolvido no ar que respiravam, pastoso e espesso.
Trabalhavam à porta de uma fornalha que lhes alimentava os pulmões com metal em fusão. Quase exaustos, os peitos arfavam num ritmo de máquinas velhas saturadas de movimento.
A ceifa, porém, não parava, e ainda bem - a ceifa levava o seu tempo marcado. Se chovesse, o patrão apanharia um boléu de aleijar, diziam os rabezanos na sua linguagem taurina. Eles próprios não a desejavam; se as foices não cortassem arroz, as jornas acabariam também.
E se ao sábado o apontador não enchesse a folha, as fateiras não trariam pão e conduto da vila.
Então os dias tornar-se-iam ainda mais penosos e o degredo por terras estranhas mais insuportável.
Vencidos pelo torpor os braços não param. Lançam as foices no eito, juntando os pés de arroz na mão esquerda, e o hábito arrasta-os em gestos quase automáticos, mais um passo e outro, a caminho da maracha que fecha o extremo de cada canteiro. Caminham sempre no mesmo balouçar de ombros; as pegadas do seu esforço ficam marcadas na resteva lodosa.
Talvez muitos deles pensem que o arroz deitado nas gavelas repousa primeiro do que os seus corpos. Se pudessem deter-se também, por instantes, e descansarem depois a cabeça nos montes de espigas que deixam atrás de si, a ceifa poderia animar.
Mas o bafo que vem da seara queima mais em cada minuto e as cabeças dos alugados pesam já tanto como o cabo das foices nos braços esgotados. Estão atulhados de amarelo, de pensamentos e de grãos de fogo que a canícula doente lhes insuflou no sangue.
Ninguém entoa cantigas para animar, embora os capatazes tenham incitado as raparigas cantaroleiras para o fazer. Nos ranchos não há agora quem saiba cantar. Como podem as cachopas entrar em cantos ao desafio, se os peitos parecem fendidos pela fadiga e o ar que respiram se tornou lava do vulcão da planície?!
-Auga!... Auga!... - Gritam os rapazes aguadeiros.
Os seus brados parecem vogar sobre o rancho e não se dissolvem. Ficam a boiar na massa espessa da lava de fogo e angústia que cobre as searas. As palavras não naufragam.
Os seus brados parecem vogar sobre o rancho e não se dissolvem. Ficam a boiar na massa espessa da lava de fogo e angústia que cobre as searas. As palavras não naufragam.
Talvez por isso também as raparigas não cantem. Agora só saberiam canções tristes que lhes recordassem a sua condição de alugadas.
Alves Redol, "Gaibéus"
Nota. "Gaibéus" era o nome dado aos camponeses que faziam a ceifa do arroz no Ribatejo, em meados do século XX
Hora de temperar o otimismo com realismo
Primeiro, é preciso compreender quais são os fatores determinantes do sucesso. O diagnóstico parece claro: sucesso significa traduzir os projetos de Paulo Guedes e de Sergio Moro em medidas práticas, em leis e emendas constitucionais. Se aprovarmos a reforma da Previdência, abrirmos a economia e resgatarmos a agenda de competitividade e produtividade, o Brasil vai deslanchar. Se garantirmos a segurança jurídica de regras e contratos, o combate à corrupção, a melhoria da segurança pública e o desmantelamento do crime organizado, resgataremos a confiança nas instituições públicas e no Estado de Direito. Em suma, os vetores de sucesso da “agenda Brasil” são Paulo Guedes e Sergio Moro.
Segundo, a função do governo é trabalhar para que Paulo Guedes e Sergio Moro triunfem. Assim como uma equipe de ciclismo, o time tem de trabalhar para os dois protagonistas vencerem a prova. Bolsonaro, o capitão do time, precisa ter clareza de que os demais membros do governo fazem parte do pelotão. Não há nenhum demérito em fazer parte do pelotão. É assim que uma equipe vencedora ganha a prova: todos sabendo o seu papel no time e trabalhando em perfeita sintonia em torno da conquista da vitória. Bolsonaro e seus generais-ministros terão de enquadrar ministros falastrões que desviam o esforço e atenção do time com assuntos periféricos e polêmicos que conquistam aplausos de meia dúzia de ogros, mas causam enorme desgaste político em torno de apoios decisivos para aprovar as medidas vitais da agenda Guedes-Moro no Congresso. Aliás, uma missão importante que o presidente pode dar aos seus ministros do pelotão é demandar um criterioso levantamento de projetos nas áreas estratégicas, na melhoria da gestão pública e na simplificação e transparência de processos que ajudem a melhorar a eficiência do Estado e a qualidade do serviço público. Essas vitórias colaborarão para dar mais crédito ao governo e força política aos ministros da Economia e da Justiça.
Terceiro, Bolsonaro terá papel preponderante na coordenação de aliados políticos para aprovar as medidas propostas por Guedes e Moro. Há uma nova safra de governadores nos principais Estados, como São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul, que está afinada com a pauta de Guedes e Moro e eles podem atuar como importantes influenciadores para a aprovação das medidas no Congresso. A agenda parlamentar tem de estar claramente dividida em três categorias: emendas constitucionais, novas leis e a “pauta da limpeza”. A primeira tem de ser um grupo de poucas e fundamentais mudanças – como é o caso da reforma previdenciária. Elas consomem muito capital político, dedicação e atenção do governo. O grupo de novas leis deve dar prioridade a matérias para fazer valer a segurança jurídica de que o Brasil precisa para ser novamente um país previsível e confiável. Finalmente, a “pauta da limpeza” requer foco num tema vital: a revogação de centenas de leis, incisos e portarias obsoletas que travam o funcionamento do Estado, desestimulam investimentos e causam enormes empecilhos à modernização da máquina pública, à transparência e à melhoria da gestão pública.
Quarto, o presidente não pode descuidar do seu núcleo familiar. A primeira-dama pode ser uma importante aliada de bastidores, com sua moderação, discrição e influência. Quanto aos filhos, precisam compreender que podem ajudar o pai trabalhando no pelotão, mas se quiserem assumir o protagonismo indevido recomenda-se uma mistura de conversa dura e em caso de emergência, uma boa dose de Rivotril. A família não pode tornar-se um passivo político para o presidente e para o Brasil.
Finalmente, o sucesso da dupla Guedes-Moro depende da mobilização cívica. Os perdedores de privilégios, subsídios e benesses do Estado vão reagir, resistir e contra-atacar. Haverá utilização de artimanhas legítimas (como manobras regimentais no Congresso para preterir e impedir votações) e ilegítimas, como fogo amigo, fake news e outras para desestabilizar a dupla de ministros. Será vital a mobilização da sociedade para respaldar os projetos e ações de Guedes e Moro, ajudar a construir boas narrativas para mobilizar a opinião pública e pressionar o Congresso para votá-los. A eficácia da atuação da sociedade civil depende em grande parte da disposição e da capacidade dos Ministérios da Economia e da Justiça de trabalharem em parceria com associações, organizações não governamentais e instituições públicas e privadas na elaboração de estudos, propostas, capacitação de times e mobilização do Congresso e da opinião pública. Essa parceira saudável com a sociedade civil pode ajudar a acelerar a tramitação de projetos e evitar que o governo cometa erros antigos.
Neste momento, otimismo temperado com realismo é a melhor combinação para dar concretude à esperança de milhares de brasileiros.
Sobre o Estado laico
Para garantir semelhante dinâmica o catolicismo foi essencial. Desde o Renascimento a Igreja se coloca contra os regimes de liberdade e democracia. Ao reagir à Reforma ela definiu uma pauta contra o âmbito secular. Trento marcou a plataforma reativa diante do mundo moderno, algo que permaneceu até o Concílio Vaticano II. Uma idiossincrasia da forma romana foi o veto à modernidade e ao liberalismo. Até o século 20 cátedras universitárias católicas exigiam dos professores o juramento contra as ideias laicas. Dizia Pio X no Motu Proprio Praestantia: “Os modernistas são os piores inimigos da Igreja, o modernismo é reunião de todas as heresias” (1907). Desde o Syllabus (1864) a guerra contra os “erros” do Estado e da sociedade civil é movida pela Santa Sé, que exige adesão incondicional do clero e dos leigos. O juramento contra as doutrinas liberais modernas encontra-se no Motu Proprio Sacrorum Antistitum (1910), do mesmo Pio X.
Já na era das Luzes Clemente XIII escreveu um rascunho de encíclica (Quantopere Dominus Jesus), onde reafirmava que o desejo de verdade é natural no homem. Mas tal anelo “o Espírito Santo quer refrear, como prova o Eclesiastes”. O pontífice ordena que os fiéis se abstenham de pesquisas sobre o saber científico. Tal mote atravessa o ensino da Igreja do Index Librorum Prohibitorum (1559, só abolido em 1966) aos acordos com Mussolini e Hitler. O alvo maior foi atenuar a prática política autônoma dos católicos. A Concordata com o governo hitlerista impediu a ação política das forças religiosas. Mesmo os conservadores do Zentrum tiveram diminuída, pelo Vaticano, sua ojeriza ao totalitarismo.
Os liberais católicos da Alemanha e do mundo, desde o século 19, são derrotados pelo setor ultramontano. Este reforça o mando absoluto do papa e gera o dogma da infalibilidade, o que impede todo diálogo ou ação conjunta de católicos e liberais. No Brasil Rui Barbosa luta em prol do Estado laico, escreve um prefácio (mais longo do que o livro original) ao volume de Johann Joseph Ignaz Dollinger O Papa e o Concílio, 1877. O civilista desenvolve as bases jurídicas que separam os campos religioso e político. Ele antecipa a Constituição de 1891, que ordena: “Todos os indivíduos e confissões religiosas podem exercer publica e livremente o seu culto, associando-se para esse fim e adquirindo bens, observadas as disposições do direito comum (...). A República só reconhece o casamento civil, cuja celebração será gratuita (...). Os cemitérios terão caráter secular e serão administrados pela autoridade municipal, ficando livre a todos os cultos religiosos a prática dos respectivos ritos em relação aos seus crentes, desde que não ofendam a moral pública e as leis. (...). Será leigo o ensino ministrado nos estabelecimentos públicos. (...) Nenhum culto ou igreja gozará de subvenção oficial, nem terá relações de dependência ou aliança com o Governo da União, ou o dos Estados”.
Para notar a diferença entre o afastado na Carta e as formas institucionais anteriores, tomemos a Constituição de 1824: “A religião católica apostólica romana continuará a ser a religião do Império. Todas as outras religiões serão permitidas com seu culto doméstico ou particular, em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior de templo” (citado por F. S. L. Azevedo Ferreira: A liberdade religiosa nas Constituições brasileiras e o desenvolvimento da Igreja Protestante). Cemitérios abertos a todos (só aos católicos eram eles reservados), educação laica (a religião omitida dos bancos escolares). A Igreja, antes base do poder, é reduzida à forma privada. As pressões católicas para retomar o status anterior à Carta de 1891 levaram-na a apoiar a ditadura Vargas, na qual obteve vitórias. A presença católica na educação foi estratégica.
E segue sob Getúlio a luta contra o modernismo, o liberalismo, o protestantismo e outros ismos odiosos à hierarquia. E logo as cruzadas: da boa imprensa, do bom cinema, da LEC, a Liga Eleitoral Católica, a reunião de “autoridades civis, militares, eclesiásticas”. Em congressos eucarísticos a Igreja exige privilégios (Romualdo Dias, Imagens de Ordem, a doutrina católica sobre autoridade no Brasil, 1922-1933). Como a França, o Brasil é consagrado à soberania espiritual com o Cristo Redentor. Com Vargas brotam as censuras, os processos torcionários, os exílios (os administradores do jornal O Estado de S. Paulo passam por eles), os atentados aos direitos humanos (Sobral Pinto evoca a lei de proteção dos animais em defesa de Prestes). Tais vilipêndios escapam à atenção católica. Importa vencer a modernidade, o liberalismo, o socialismo.
Hoje o País está perto de nova aliança entre sacerdotes e políticos. O presidente eleito proclama não sermos um Estado laico, mas cristão. Importa recordar que as sementes teológico-políticas foram disseminadas pela Igreja Católica. Os evangélicos aproveitam o solo adubado, em séculos, pelos integristas, que sorvem o próprio remédio aplicado por eles à vida nacional.
Já na era das Luzes Clemente XIII escreveu um rascunho de encíclica (Quantopere Dominus Jesus), onde reafirmava que o desejo de verdade é natural no homem. Mas tal anelo “o Espírito Santo quer refrear, como prova o Eclesiastes”. O pontífice ordena que os fiéis se abstenham de pesquisas sobre o saber científico. Tal mote atravessa o ensino da Igreja do Index Librorum Prohibitorum (1559, só abolido em 1966) aos acordos com Mussolini e Hitler. O alvo maior foi atenuar a prática política autônoma dos católicos. A Concordata com o governo hitlerista impediu a ação política das forças religiosas. Mesmo os conservadores do Zentrum tiveram diminuída, pelo Vaticano, sua ojeriza ao totalitarismo.
Os liberais católicos da Alemanha e do mundo, desde o século 19, são derrotados pelo setor ultramontano. Este reforça o mando absoluto do papa e gera o dogma da infalibilidade, o que impede todo diálogo ou ação conjunta de católicos e liberais. No Brasil Rui Barbosa luta em prol do Estado laico, escreve um prefácio (mais longo do que o livro original) ao volume de Johann Joseph Ignaz Dollinger O Papa e o Concílio, 1877. O civilista desenvolve as bases jurídicas que separam os campos religioso e político. Ele antecipa a Constituição de 1891, que ordena: “Todos os indivíduos e confissões religiosas podem exercer publica e livremente o seu culto, associando-se para esse fim e adquirindo bens, observadas as disposições do direito comum (...). A República só reconhece o casamento civil, cuja celebração será gratuita (...). Os cemitérios terão caráter secular e serão administrados pela autoridade municipal, ficando livre a todos os cultos religiosos a prática dos respectivos ritos em relação aos seus crentes, desde que não ofendam a moral pública e as leis. (...). Será leigo o ensino ministrado nos estabelecimentos públicos. (...) Nenhum culto ou igreja gozará de subvenção oficial, nem terá relações de dependência ou aliança com o Governo da União, ou o dos Estados”.
Para notar a diferença entre o afastado na Carta e as formas institucionais anteriores, tomemos a Constituição de 1824: “A religião católica apostólica romana continuará a ser a religião do Império. Todas as outras religiões serão permitidas com seu culto doméstico ou particular, em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior de templo” (citado por F. S. L. Azevedo Ferreira: A liberdade religiosa nas Constituições brasileiras e o desenvolvimento da Igreja Protestante). Cemitérios abertos a todos (só aos católicos eram eles reservados), educação laica (a religião omitida dos bancos escolares). A Igreja, antes base do poder, é reduzida à forma privada. As pressões católicas para retomar o status anterior à Carta de 1891 levaram-na a apoiar a ditadura Vargas, na qual obteve vitórias. A presença católica na educação foi estratégica.
E segue sob Getúlio a luta contra o modernismo, o liberalismo, o protestantismo e outros ismos odiosos à hierarquia. E logo as cruzadas: da boa imprensa, do bom cinema, da LEC, a Liga Eleitoral Católica, a reunião de “autoridades civis, militares, eclesiásticas”. Em congressos eucarísticos a Igreja exige privilégios (Romualdo Dias, Imagens de Ordem, a doutrina católica sobre autoridade no Brasil, 1922-1933). Como a França, o Brasil é consagrado à soberania espiritual com o Cristo Redentor. Com Vargas brotam as censuras, os processos torcionários, os exílios (os administradores do jornal O Estado de S. Paulo passam por eles), os atentados aos direitos humanos (Sobral Pinto evoca a lei de proteção dos animais em defesa de Prestes). Tais vilipêndios escapam à atenção católica. Importa vencer a modernidade, o liberalismo, o socialismo.
Hoje o País está perto de nova aliança entre sacerdotes e políticos. O presidente eleito proclama não sermos um Estado laico, mas cristão. Importa recordar que as sementes teológico-políticas foram disseminadas pela Igreja Católica. Os evangélicos aproveitam o solo adubado, em séculos, pelos integristas, que sorvem o próprio remédio aplicado por eles à vida nacional.
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