Se a política fosse como uma empresa, que persegue fim uníssono e predeterminado — gerar lucro e pagar acionistas dentro da lei —, “gestores não políticos” poderiam fazer “dar certo”. Mas, como a política constitui o espaço em que negociamos nossas diferenças, disputamos a multiplicidade de meios e fins e as prioridades entre tais fins, onde traçamos a fronteira entre público e privado e entre autoridade e liberdade, onde definimos um significado prático de justiça e calibramos a distribuição de bens escassos, precisamos de acomodação. Gestão eficiente é indispensável, mas a escolha do que gerir vem antes. Essa escolha é moral e constitucional, não gerencial.
O governo empossado adota comportamento que põe em risco a democracia: chama aquilo que atrapalha na Constituição de “amarra ideológica” e tenta converter o pacto constitucional num panfleto partidário a ser combatido; por não poder reformar a essência da Constituição (a não ser que crie outra pela força), retorce seu texto e enxerta nas entrelinhas um projeto antípoda; termina por chamar todos os governos dos últimos 30 anos de socialistas (ou de “prisão social-democrata”, termo usado por Paulo Guedes para descrever o país com um dos sistemas tributários mais regressivos do mundo, em que educação e saúde são livres à exploração privada e executivos ganham em média 34 vezes mais que operários, segundo a consultoria Mercer). Uma fraude conceitual nada infantil.
Se a proposta é suprimir terras indígenas e transformar índios sobreviventes em pobres urbanos (como fez o governo Dilma em Altamira para construir Belo Monte); criminalizar novas condutas, radicalizar a guerra às drogas e ampliar o encarceramento (como fez o governo Lula por meio da Lei de Drogas de 2006); liberar o porte de armas, que nunca reduziu violência no mundo; desmatar a Amazônia e destruir biodiversidade, o que gera empobrecimento e dá empurrão ao aquecimento global e regional; deixar de fora da reforma da Previdência as Forças Armadas e o Judiciário, as corporações mais privilegiadas do Estado brasileiro e donas da maior fatia do déficit; fazer vista grossa para a violência policial desorientada e ainda responder a protestos de rua com uma lei antiterrorismo (como fez o governo Dilma); enfraquecer a política de prevenção do HIV/aids para não “ofender famílias”; excluir termos como “direitos humanos” e “LGBT” de políticas de governo; esconder e agravar os reais problemas da escola (qualidade do ensino, condições de trabalho) e distrair-nos com falsos problemas, tais como a perversão sexual e recrutamento político das crianças; se o lema é “Brasil acima de tudo”, truque retórico que na história política sempre significou repressão àqueles que, na visão do líder, não são cidadãos autênticos, ou “Deus acima de todos”, que substitui a Constituição pela Bíblia , a razão por Deus e a verdade científica por fatos alternativos, torço contra. Se as promessas de Bolsonaro “derem certo”, felizes serão poucos, e os de sempre.
Os exemplos acima não guardam qualquer relação com a proteção da vida e da dignidade (isto é, de sua vida e de sua dignidade). Mas, se Bolsonaro tiver coragem de respeitar a Constituição, de olhar para o outro e defender o interesse nacional (que não coincide com o cortejo servil a Trump); se tiver honestidade para entender o que está em jogo na educação, na saúde e na segurança e para escutar demandas legítimas de professores, médicos e policiais; se tiver curiosidade em saber como políticas sociais aliviam sofrimento e miséria, além de gerar crescimento econômico, inclusão e redução da violência; e se quiser fazer política pública orientada por evidências empíricas, e não pelo fígado, inspirada por valores constitucionais, e não teológicos, fico na torcida.
Conrado Hübner Mendesa
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