sexta-feira, 27 de janeiro de 2017


A irreversível Lava Jato

A morte de Teori Zavascki aconteceu de uma forma que aciona dúvida do tipo que existe desde o Descobrimento: intencional ou por acaso? Como isso se resolve ao cabo de uma rigorosa investigação, o foco, a meu ver, é o destino da Operação Lava Jato. Ela deve prosseguir com o mínimo de atraso possível.

A delação da Odebrecht abalou a vida política de muitos países latinos. Em alguns deles já houve não só prisões, como também a decisão de expulsar a empresa.

Sou moderadamente otimista quanto ao futuro da Lava Jato. Homologar a delação não é complicado: apenas confirmar se os delatores falaram sem pressão e avaliar a redução das penas. Felizmente, a decisão de prosseguir os trabalhos com a equipe de Teori e a possibilidade de Cármen Lúcia, ela mesma, homologar resolvem o problema imediato.

Em outro plano está a escolha do novo relator. Tenho lido inúmeras possibilidades e a que mais temo é um sorteio como se todos estivessem no mesmo plano. Seria um pouco como levar a Lava Jato a uma decisão por pênaltis, em que tudo pode acontecer.

Francamente, grande parte das pessoas que foram às ruas acha que Lewandowski e Dias Toffoli, caso escolhidos, soltariam todo mundo e ainda mandariam prender quem acusou.

Nenhum texto alternativo automático disponível.

O caminho ideal seria um processo de negociação no qual o Supremo encontre um nome que se aproxime das posições de Teori e tenha credibilidade quanto à sua isenção. Esse é o caminho ideal, mas com base na realidade. A ideia do sorteio seria uma realidade baseada na ilusão de que todos, igualmente, apoiam a Lava Jato.

A terceira dimensão do problema: a substituição de Teori. O novo ministro terá de passar por uma sabatina no Senado: precisa mostrar firmeza diante de um Congresso que vê a Lava Jato como um perigo. Na tentativa de sabotá-la, o Congresso só produziu trapalhadas noturnas.

A Lava Jato tornou-se, sobretudo por causa da delação da Odebrecht, uma esperança continental de punir os políticos corruptos e desmontar seus vínculos com as empreiteiras. Pelo que ouço e vejo nos outros países, era algo de que sempre suspeitavam. Alguns jornalistas e mesmo procuradores já até haviam denunciado. Mas com a Lava Jato as coisas chegam na forma de provas, delações premiadas, agora, sim, é possível jogar areia na engrenagem.

Essa possibilidade animadora é uma contribuição da Lava Jato, que, por sua vez, está ligada à imagem do próprio Brasil. A exportação dessa esperança foi a melhor mensagem que o País enviou para o continente, num período em que tantas desgraças acontecem aqui, das decapitações à febre amarela.

Foi por acaso, pode-se argumentar. Aí voltaríamos às origens com a mesma pergunta do Descobrimento.

Por acaso ou intencional, a Lava Jato trouxe para o Brasil respeito em outros países. Às vezes esse respeito, como entre os empresários reunidos em Davos, é acompanhado de preocupação: a Lava Jato está sendo boa ou não para o mercado?

A criação de uma atmosfera de negócios com menos corrupção, mais segurança jurídica, em médio e a longo prazos, é uma grande vantagem que as pessoas com visão muito imediata nem sempre compreendem. Para muita gente, atrasar ou até melar a Lava Jato é um sonho de consumo. No entanto, a maioria do País considera o processo saudável e irreversível.

Duas razões me fazem duvidar da tese de atentado, no caso de Teori. Uma é a situação climática e as condições geográficas do aeroporto de Parati e, de certa maneira, também os de Angra dos Reis e Ubatuba. A outra é o próprio avanço da operação. Ela pode ser retardada, mas dificilmente neutralizada, como foram tantas outras no Brasil.

Não creio que os interessados em bloquear o processo ousem enfrentar o País de cara aberta. Estão sujeitos não só à prisão, porque muitos são investigados, mas também a um lugar vergonhoso na história.

Exceto o PT nos seus tempos de governo, são raros os que ousam defender a corrupção em nome de um ideal superior. Mesmo o Renan Calheiros, que gostaria de liquidar a Operação Lava Jato, publicamente a considera “sagrada”.

Posso parecer ingênuo. Mas procuro estar atento a todas as possibilidades num país com grande riqueza de expedientes sospechosos.

Quando Gilmar Mendes, num discurso no Congresso, praticamente ignorou a importância da Lava Jato, não deixei de criticar. Considero-o um juiz capaz e bem formado. No entanto, ignorar a maior operação de todos os tempos, com a mais ampla delação premiada, o maior volume de retorno do dinheiro roubado, mais influência positiva na vida dos outros países do continente, pareceu-me um movimento estranho.

E, mais ainda, ignorar que a lei de abuso de autoridade seria votada por um Congresso que tem um recorde histórico em número de investigados também é muito esquisito. No entanto, seu confronto com procuradores pode ter incluído um elemento de paixão, o que elimina as piores suspeitas.

A Lava Jato definiu um campo claro, pelo qual vale a pena lutar, sobretudo para quem não pretende deixar o Brasil.

A definição de um campo não significa maniqueísmo. Críticas à Lava Jato, aspiração por uma lei de abuso de autoridade, tudo isso pode acontecer e, às vezes, acontece entre pessoas que desejam um País melhor. No entanto, aquela conversa telefônica do Romero Jucá com o Sérgio Machado, na qual falavam em estancar a operação, com a ajuda do Temer, talvez não fosse repetida hoje. Tanto Jucá como Machado devem ter percebido que os inimigos da Lava Jato perderam o timing.

Ingênuo ou mesmo otimista, sigo acreditando que, apesar das desgraças que nos envolvem, será possível melhorar a atmosfera política a partir do legado da Lava Jato. Minha suposição é de que chegamos a um ponto em que não adianta matar ninguém para deter o processo: ele foi assumido pela Nação, não se mata a esperança nacional com um simples atentado.

Ouro da delinquência


O que acho notável em Cabral é que nem mesmo se percebe nele a centelha de alguma convicção inclinada para o bem comum ou partidário. Estava disposto a se tornar um milionário. E atuou com determinação.
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(...)Ele criou a sua própria estrutura criminosa, da qual era comandante máximo. As circunstâncias vividas pelo Rio — Copa do Mundo e Olimpíada — lhe deram a oportunidade de ouro de delinquir.
E ele não se fez de rogado.
Reinaldo Azevedo

Imagem do Dia

Lake Obersee- Berchtesgaden National Park, Germany:
Lago Obersee-, em Berchtesgaden (Alemanha)

Fogo na labareda

São dias terríveis esses. A tensão no país sobe a ponto de promover coisas impensáveis. Pois não é que anteontem eu voltava a pé após o almoço para o trabalho e vi a tensão elétrica subir a ponto de retesar os grossos fios de um poste defronte à minha janela?

Não demorou para o fogo começar a crepitar sobre o entrecruzamentos de fios. Como sempre, pedestres e curiosos, em segundos, passaram a se apinhar diante da ocorrência. Esquecendo-se, é claro, que, em piorando a situação da rede elétrica, ia acabar sobrando choque pra toda a zaga ali presente. Nessas horas parece que ninguém se recorda dos tristes eventos de gente virando pó por estar perto de postes ou transformadores que explodiram.

Coloquei-me à uma distância segura da confusão, desliguei o modo flâneur, liguei o voyeur, e me quedei observando tudo.

As empresas que operam na rua chamaram na hora os bombeiros. Mas, como os valorosos heróis não chegavam, deu-se início à proverbial bateção de cabeça. Um grupo achou melhor já tentar apagar as labaredas, afinal havia línguas de fogo por sobre eletricidade.

– Se derreter a borracha lá, babau! – berrava um segurança.

Um porteiro puxou uma mangueira.

– Água não, Clauderval! – alertou o taxista do Uber.

A função estava montada. Não demorou muito para chegarem os vendedores de água mineral e amendoins na casca.

Uma velhinha, meio cegueta, tentou atravessar na faixa que ficava bem abaixo da hecatombe; foi imobilizada por um manobrista. Ele saltou sobre a idosa como se fosse um jogador de rúgbi. Gritos, aplausos.

Veio um rapazinho, vindo da estação da CPTM, com uma mochila cheia de ursinhos de pelúcia para vender e nada dos bombeiros. Junto com ele aportou um food-truck de tapiocas.

Parte da turba postou-se à frente do caminhãozinho e ordenava lanches recheados das mais diversas combinações: doce de leite, goiabada, manteiga de garrafa, mortadela. Um outro grupamento criou um fumoir improvisado, nada como encher o bucho ou dar umas tragadas de tabaco para aprimorar a análise de um fato.

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Logo deu-se a polarização. Notei que alguns acreditavam que era preciso interromper o lume a toque de caixa – “e se acaba a luz no bairro todo, como fica?” Já o outro contigente defendia que se esperasse os soldados do fogo: “melhor aguardar quem entende da coisa, de mais a mais vai que nos dispensam do trabalho hoje…”.

Rugiu uma sirene. Todas as cabeças voltaram-se para o alto da rua. Lá vinha o carro da PM. Veloz e agressivo como classe média em abertura de Black Friday. Deu um meio cavalo de pau, quase atropelou novamente a velhinha que devorava um saco de amendoins com expressão de ave de rapina, e estacou, solene.

Desceram correndo o cabo e o soldado de revólveres engatilhados, ajoelharam-se no asfalto, e apontaram as armas de fogo – para o fogo.

Quando perceberam que não se tratava de um atentado à ordem pública, mas de uma combustão espontânea, levantaram-se e fizeram, de um jeito meio abestalhado, continência um para o outro. Ah, se fosse só a tensão política no Brasil…

Carlos Castelo

Mar Cabralino

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O patrimônio dos membros da organização criminosa comandada por Sérgio Cabral é um oceano não completamente mapeado
Procurador Leonardo Freitas, coordenador da força-tarefa da Lava-Jato no Rio 

Fantasmas murmuram nos restos da escuridão

No final do ano passado, o governo de Michel Temer suspendeu acertadamente a licitação de alguns itens que abasteceriam a dispensa do avião presidencial, entre eles o sorvete Häagen-Dasz, que fez sucesso mesmo na imprensa séria e levou a esgotosfera àquele gozo primitivo de bárbaros atacando aldeias. Me lembrei de Nelson Rodrigues – “aprendi a ser o máximo possível de mim mesmo” – e fiquei pensando se agora, desperta esta atenção ao que o governo anda fazendo, aprendemos a ser o máximo possível de nós mesmos. Receio que não: a lista do que seria servido no avião presidencial era detalhada, mas, entre o êxtase deformado da esgotosfera e a indignação (um tanto exagerada) do jornalismo independente quanto aos gastos alegadamente supérfluos quando é terminal o estado das contas públicas, esquecemos de celebrar a transparência da divulgação e de reafirmar mais essa diferença entre o governo atual e o regime aberrante legal e tardiamente desposto.

É importante reconhecer a diferença muito menos pelo elogio ao ato elogiável do governo e muito mais para que não a subestimemos e não a percamos no restabelecimento da luz. Talvez essa tardança na escuridão do imundo claustro petista explique menos o incômodo com a luz e mais a incapacidade de nossos olhos reconhecerem presenças inéditas na paisagem iluminada. Ah, Valentina, você está defendendo o governo. E daí? Defendo o que nele é defensável, ou não é nisto que se constitui ser o máximo possível de nós mesmos – cultivar o que presta e dar um jeito no que não presta? Na esfera pública, isso significa distinguir as qualidades de uma administração para que elas permaneçam como memória e aprendizado. Os defeitos também. Nesse sentido, tudo forma um só tesouro que beneficiará a nação se ela souber preservá-lo separando umas e outros. No âmbito privado, talvez qualidades e defeitos sejam indissociáveis, e não dá para negar que certas qualidades alheias são insuportáveis, enquanto alguns defeitos são irresistíveis.

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A falta de transparência dos governos petistas foi só mais um sintoma do autoritarismo de Lula e Dilma, convictos de que não deviam satisfações aos brasileiros. Neste episódio com Lina Vieira, a falta de transparência é só um esgar na face aberrante daquele tempo. Hoje, os mesmos jornalistas que publicam a lista da dispensa do “avião de Temer” em tom de denúncia e outras vozes que acusam a compra do Häangen-Dazs jamais cobraram a divulgação das despesas dos cartões corporativos de Rosemary Noronha, por exemplo, e ocuparam-se mais com o “sorvete do Temer” do que com o banimento das câmaras pelo regime delinquente tardiamente deposto.

São setores da sociedade brasileira que ainda buscam o estabelecimento no Brasil do socialismo petista em que integrantes, simpatizantes ou patrocinadores voluntários do regime terão por meio do Estado, a exemplo do governador Fernando Pimentel, o próprio helicóptero para buscar os filhos que beberam demais nas baladas. Até lá, no que depender dos que ainda gritam “golpe” ou “fora, Temer” e continuam calados quanto à delinquência lulopetista que nos desgraçou, o presidente não poderá sequer tomar um ChicaBon simplesinho.

É fundamental que o governante seja importunado pela sociedade, é um direito e mesmo uma obrigação que ela cobre dele eficiência e correção, o que só poderá ser feito com mais acerto se o governo for transparente. Já imaginou se tivesse sido assim nos últimos 13 anos? Com o banimento da transparência e das câmaras por conseguinte, só nos resta a imaginação e não é difícil imaginar que a noite lamaçenta lulopetista teria se resumido ao primeiro mandato de Lula porque o pântano em formação não resistiria à luz do jornalismo independente; da sociedade alerta em relação ao governante e não a si mesma na porção dissidente àquele governante delinquente que, para desidratar essa oposição real, investiu na odiosa clivagem dela mesma em “eles x nós”; das instituições livres do aparelhamento.

Das despesas com a comida do avião presidencial até os empréstimos indevidamente sigilosos do BNDES aos comparsas domésticos e internacionais da súcia, passando pelas reuniões clandestinas de um regime que fez da delinquência o programa de governo, a opacidade da gestão petista só não é clara para quem acha mesmo que um governante não pode comprar determinado sorvete, mas um outro pode tanto se reunir clandestinamente com uma autoridade para constrangê-la a beneficiar um comparsa, quanto esconder que houve a reunião, numa cascata de crimes em que se somam o crime e a ocultação das provas, como Dilma Rousseff fez com Lina Vieira.

Depois de o petismo ruir sob a própria canalhice, as ruínas do claustro sujo ainda querem separar o Brasil do máximo possível que o país pode fazer de si mesmo e resistir a isso inclui lembrar que, hoje, não ouvimos mais o presidente da república acusar jornalistas independentes de cumprirem sua obrigação ou denunciar indeterminados “eles”. Claro que isso não é o melhor que podemos fazer, mas é muito melhor do que os resquícios da escuridão querem ocultar tornando obrigatória a ocultação de qualidades do governo atual como faziam obrigatória a camuflagem das deformações do anterior. Os restos da escuridão, ainda infiltrados nos nossos dias, ambientam os murmúrios de fantasmas fantasiados com andrajos de antigolpistas do golpe inexistente, de protetores da classe pobre esbulhada até em suas aposentadorias, de defensores de valores progressistas por estratégias fascistoides, todos zumbis abatidos pela luz de outro Brasil que sobreviveu.

Sobrevivemos ao regime petista e, embora sobreviver não seja tudo, é muita coisa e talvez tenha sido o máximo possível de nós mesmos naquela escuridão opaca. Imagine agora, com a escuridão translúcida.

A conta da pilhagem do Estado

O ano de 2017 não promete ser fácil. Entre outras razões, porque será o ano em que o país, afinal, terá de começar a enfrentar o penoso ajuste que, aos poucos, lhe permitirá superar a gigantesca crise fiscal em que foi metido.

Já não há mais espaço para autoengano. Irresponsabilidade fiscal deixou de ser um conceito abstrato. Suas consequências afloram agora com dramática concretude, num quadro sinistro de folhas de pagamento impagáveis, serviços essenciais suspensos e órgãos do governo paralisados.

Em boa medida, a falência das finanças públicas, nos três níveis de governo, decorre de um processo de pilhagem sistemática do Estado, agravado, desde meados da década passada, pela restauração do nacional-desenvolvimentismo, fundado na crença equivocada de que o Estado é a grande fonte de riqueza com que conta a economia brasileira.

Como escrevi em artigo no “Estado de S.Paulo” há 13 anos — “Balcão de negócios”, 7/5/2004 — essa noção atávica, tão arraigada no PT, na verdade, perpassa todo o espectro partidário e tem raízes profundas na história do país.

“Da Colônia à República, é com o governo que quase sempre foram feitos os melhores negócios. Não é de hoje que boa parte da elite vem sendo formada na crença de que o segredo da prosperidade é estabelecer sólidas relações com o Estado. Vender para o Estado, comprar do Estado, financiar o Estado, ser financiado pelo Estado, apropriar-se de patrimônio do Estado, receber doações do Estado, transferir passivos para o Estado, repassar riscos para o Estado e conseguir favores do Estado.

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A natureza dos favores variou no tempo, mas a lógica permaneceu a mesma. Quem não tinha condições de voar tão alto, com frequência sonhava apenas com se tornar empregado do Estado e, especialmente, aposentado do Estado”.

Como já se temia em 2004, a restauração nacional-desenvolvimentista abriu caminho para um novo surto de pilhagem do Estado de proporções assustadoras. Hoje se sabe que a pilhagem envolveu todos os grandes programas de investimento do setor público federal. Da Petrobras às usinas hidrelétricas do sul da Amazônia, da construção de estradas à Eletronuclear. E também boa parte dos programas de investimento dos governos subnacionais. Houve muito mais do que propinas e preços abusivos. Com frequência os projetos não faziam sentido ou tinham escala muito maior do que seria razoável.

Tudo regado a dinheiro farto e subsidiado do BNDES, bancado por centenas de bilhões de reais do Tesouro, provenientes de emissão de dívida pública. Desse faustoso orçamento paralelo montado no BNDES, beneficiaram-se também campeões nacionais de todos os naipes, boa parte deles agraciados ainda com outras benesses despropositadas, como as da tresloucada política de conteúdo local.

Mas a combinação de pilhagem com irresponsabilidade fiscal não parou por aí. Envolveu muito mais. Da custosa e mal concebida política de desoneração de folhas de pagamento, conduzida ao sabor da grita de cada setor, à concessão de garantias do Tesouro a empréstimos tomados por governos subnacionais que sabidamente não tinham como repagá-los.

O mais grave, contudo, foi a gestão ruinosa e populista da Previdência Social, marcada, de um lado, pela insistência inconsequente na sobreindexação de grande parte dos benefícios e, de outro, pela teimosa recusa a reconhecer que as regras de acesso aos benefícios haviam se tornado insustentáveis.

Constato agora, quando a conta de tantos desmandos chegou, que os dois parágrafos finais do meu artigo de 2004 mostraram-se tristemente premonitórios.

“Para grande satisfação de certas alas do governo, o nacional-desenvolvimentismo redivivo parece a cada dia mais próximo. Está sendo aberto novo ciclo de grandes negócios com o Estado. No setor privado, os parceiros de sempre não escondem seu entusiasmo. O PMDB se abanca. Preparem-se.

Mas Lula tem razão. Talvez seja hora de indagar como é mesmo que tudo isso pode beneficiar os ‘credores de baixo’. O mais provável é que, mais uma vez, só sejam convocados para pagar a conta”.

Rogério Furquim Werneck

Lula é Eike amanhã

Lula é o Eike Batista da política e Eike é o Lula do empresariado, constatou na primeira linha o texto que evocou, em outubro de 2013, um punhado de semelhanças entre os dois destaques do elenco da Ópera dos Vigaristas. Um era o inventor do Brasil Maravilha, que só existe na papelada registrada em cartório. Outro era o fundador do Império X ─ no caso, X é igual a nada.

O pernambucano gabola que inaugurava uma proeza por dia se elogiava de meia em meia hora por ter feito o que não fez. O mineiro mitômano que ganhava uma tonelada de dólares por minuto se cumprimentava o tempo todo pelo que disse que faria e não fez.


O presidente onisciente, onipresente e onipotente, entre outros colossos, prometeu inaugurar em 2010 a transposição das águas do São Francisco. O rio permanece no mesmo leito. O empreendedor milagreiro driblava o tempo com gerúndios e verbos no futuro vivia fazendo superportos e plataformas marítimas de assustar engenheiro inglês. Não saiu da maquete sequer a reforma do Hotel Glória.

Lula se intitulou o maior dos governantes desde Tomé de Souza sem ter produzido uma única obra física visível a olho nu. Eike entrou e saiu do ranking dos bilionários da revista Forbes sem que alguém conseguisse enxergar a cor do dinheiro.

Lula berrava em 2007 que a Petrobras tornara autossuficiente em petróleo o país que, graças às jazidas do pré-sal, logo estaria dando as cartas na OPEP. A estatal foi destruída pelo maior esquema corrupto do mundo e o Brasil importa combustível. Eike não parava de encher barris com o produto de jazidas que continuram intocadas nas funduras do oceano. Os lucros que extraiu vieram dos cofres assaltados pelo bando do Petrolão.

Político de nascença, Lula enriqueceu como camelô de empreiteiros. Filho de um empresário muito competente, Eike adiou a falência graças a empréstimos fabulosos do BNDES (com juros de mãe extremosa e prestações a perder de vista), parcerias com estatais (sempre prontas para financiar aliados do PT com o dinheiro dos pagadores de impostos) e adjutórios obscenos do governo federal.

Lula só poderia chegar ao coração do poder num lugar onde tanta gente confia em eikes batistas. Eike só poderia ter posado de gênio dos negócios num país que acredita em lulas.

É natural que tenham viajado tantas vezes no mesmo jatinho. É natural que se tenham entendido tão bem. Nasceram um para o outro. Os dois são vendedores de nuvens. Mentem mais que espião de cinema. Enquanto festejavam a fortuna da Petrobras guardada no fundo do mar, saquearam a empresa em terra firme. Era previsível que tivessem o mesmo destino.

Nesta quinta-feira, o Brasil soube que o empresário apresentado pelo ex-presidente como exemplo para o país vai purgar na cadeia seus incontáveis pecados. O ex-presidente promovido pelo empresário a estadista do século logo percorrerá o caminho que passa por um tribunal e termina numa cela. Lula é Eike amanhã.

Rio divide 'custo-corrupção' com o resto do país

O Rio de Janeiro derrete num caldeirão em que se misturam a inépcia e a roubalheira. Com o passado atrás das grades, o governo fluminense negocia seu futuro com a União. Se tudo correr como planejado, o governador Luiz Fernando de Souza, o Pezão, arrancará de Michel Temer uma moratória de três anos para a dívida do Rio com o Tesouro Nacional. Serão R$ 27 bilhões que a União deixará de arrecadar entre 2017 e 2019.

O sucesso desse golpe de barriga que o Rio tenta aplicar no Tesouro será o fracasso do país. Na prática, os brasileiros de outros Estados pagarão uma parte da conta que resultou da incompetência e bancou os confortos aéticos de Sérgio Cabral e sua quadrilha.


No despacho em que autorizou a deflagração da Operação Eficiência, que apura a remessa para o exterior de US$ 100 milhões roubados pela organização criminosa (parte já recuperada), o juiz federal Marcelo Bretas fez menção ao que chamou de “custo-corrupção”. Anotou que o assalto aos cofres públicos foi uma das causas da ruína fiscal que levou o governo do Rio a decretar estado de calamidade pública, uma pré-condição para pedir o socorro federal.

O magistrado comparou a corrupção que roeu as finança do Estado aos crimes violentos que inquietam a sociedade do Rio. Para o doutor, o roubo ao erário é mais grave, porque atinge “um número infinitamente maior de pessoas”. O juiz escreveu: “Basta considerar que os recursos públicos que são desviados por práticas corruptas deixam de ser utilizados em serviços públicos essenciais, como saúde e segurança públicas.”

Por mal dos pecados, no mesmo dia em que a Polícia Federal foi às ruas para cumprir mais um lote de mandados judiciais, o governador Pezão foi a Brasília para fechar com Temer e com o ministro Henrique Meirelles (Fazenda) a negociação que cancela por três anos o pagamento da dívida pública do Rio, transferindo parte do custo do descalabro do Rio para os contribuintes das outras 26 unidades da federação. É a socialização dos prejuízos provocados pela esperteza e a corrupção.

Prato Feito de cada dia

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Sempre, no restaurante da vida, nos oferecem pratos de ideologia. Sempre. Você pode se refugiar nisso. São refúgios, que o impedem de tocar a realidade
Papa Francisco

'1984' lidera vendas nos EUA desde a posse de Trump

Quando escreveu 1984, George Orwell não pensava em uma sociedade futura, mas no presente. Sua distopia não pretendia ser uma metáfora, mas uma descrição dos totalitarismos do século XX, sobretudo o stalinismo. No entanto, este livro, escrito em 1948, se tornou novamente um ponto de referencia na era de Donald Trump, na qual a pós-verdade e os “fatos alternativos” tomaram conta da política. O romance do escritor britânico, nascido em 1903 e falecido em 1950, subiu na lista dos livros mais vendidos nos Estados Unidos na Amazon, o gigante digital do comércio online.

Um porta-voz da editora Signet Classics, que publica 1984 atualmente, afirmou à rádio pública NPR que desde a posse do 45º presidente dos EUA, “as vendas aumentaram 10.000%”. Nesta quinta-feira, dia 26 de janeiro, ainda ocupava o 1º lugar na lista de best-sellers da Amazon com mais de 4.000 comentários.

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Orwell fala em seu livro de uma novilíngua e seu protagonista trabalha no Ministério da Verdade, que se encarrega de estabelecer o que é falso e o que é verdadeiro. Os fatos são definidos pelo Estado, não pelos cidadãos. São conceitos bastante inquietantes na atualidade, em um momento em que uma das principais assessoras de Trump, Kellyanne Conway, sua chefe de campanha e atual conselheira do presidente na Casa Branca, cunhou o conceito de “fatos alternativos”, que consiste basicamente em negar as evidências empíricas, como aconteceu com o número de pessoas que assistiram à posse do presidente. Um dos comentários sobre o livro na Amazon, escrito em 23 de janeiro, dizia: “Hoje Kellyanne Conway anunciou que estava nos proporcionando fatos alternativos. São sombras de um passado que muda enquanto se controla o presente. Temos de estar preparados para a festa como se estivéssemos em 1984”.

O diretor do jornal The Washington Post, Martin Baron, recordou nesta quarta em uma conferência em Madri a relevância da obra do novelista e ensaísta britânico ao destacar que os “fatos alternativos” lhe recordam 1984: “O partido pede que você rechace o que seus olhos veem e o que ouvidos”.

O Ministério da Verdade se encarrega de estabelecer os fatos que devem ser corretos para cidadãos constantemente vigiados pelo Grande Irmão —uma das muitas instituições de Orwell no livro é a onipresença da televisão, que não serve apenas para ver, mas também para serem vistos. A novilíngua, que serve para simplificar a forma como os cidadãos se expressam e assim evitar sentimentos e pensamentos indesejados, é definida assim por Orwell no fim de seu livro: “O propósito da novilíngua não era só proporcionar um meio de expressão da visão de mundo e dos hábitos mentais dos devotos do Socing [a ideologia dominante no mundo orwelliano], mas que fosse impossível qualquer outro modo de pensar. A intenção era a de que quando se adotasse definitivamente a nova língua e se tivesse esquecido a velha língua, qualquer pensamento herético fosse inconcebível, pelo menos na medida do pensamento que depende das palavras”.

Outros conceitos cunhados por Orwell em seu romance são a polícia do pensamento, a thinkpol, duplipensar ou a mutabilidade do passado. Também descreve o que chama de “os dois minutos de ódio”, que têm profundos ecos nos venenosos discursos ou tuítes dirigidos a todos que pensam diferente ou que sejam diferentes do presidente Donald Trump. Esses “dois minutos de ódio” consistem em oferecer a todos os cidadãos a imagem do arqui-inimigo do Estado, Goldstein, que defendia conceitos aberrantes como “a liberdade de expressão, a liberdade de imprensa, o direito à reunião, o direito de opinião”.

Não é a primeira vez, nem de longe, que 1984 vive um boom por sua capacidade de refletir a realidade. Em 2013, quando se produziram as revelações de Edward Snowden sobre a espionagem em massa dos Estados Unidos, o romance também saltou para as listas de mais vendidos. No prólogo da edição espanhola, Umberto Eco escreveu: “O livro é um grito de alarme, uma chamada de atenção, uma denúncia, e por isso fascinou milhões de leitores em todo o mundo”. Certamente, nem o próprio Orwell suspeitava até onde se prolongaria a vigência de sua obra.

Paisagem brasileira

Barra de São Miguel (Alagoas)

Acaso e serendipidade

Acaso e serendipidade são frutos do inesperado. O acaso pode ser bom ou mau. Ou trágico, como o acidente de avião que vitimou um grande brasileiro, o ministro do Supremo Tribunal Federal Teori Zavascki, relator da Operação Lava-Jato.

O Brasil tem sido vítima do mau acaso. Assim foi com o ex-governador de Pernambuco Eduardo Campos, falecido durante sua campanha para a Presidência em 2014. Outro exemplo foi o presidente eleito Tancredo Neves, que morreu em 1985 sem tomar posse.

O acaso, como diz o Conselheiro Ayres, personagem de Machado de Assis, “tem um voto decisivo na assembleia dos acontecimentos”. No Brasil tem sido, sim, um voto decisivo. No final das contas, o acaso decide tudo. E serve, sobretudo, para desmoralizar as previsões. O que fazer? Não há muito o que fazer. Mas, pelo menos, alguma coisa.

A morte de Teori enseja, como habitual no país em momentos de reflexão superficial, uma torrente de especulações. Para decepção de muitos, no entanto, o acaso existe, até mesmo durante o voo de uma aeronave excelente pilotada por um profissional experiente.

Em um livro espetacular (A lógica do cisne negro), o analista de riscos líbano-americano Nassim Nicholas Taleb ensina que ninguém sabe quando nem como vão acontecer as coisas que realmente importam. Para ele, a força do inesperado é a chave para se compreender o mundo, conforme escrevi certa vez aqui mesmo. E esta é a lição número 1.

Quem poderia prever o que aconteceu com Teori? Se o destino está nas mãos do inesperado, seria ele escrito previamente? Ou o destino seria apenas um pincel desorientado deslizando na tela branca do futuro? Um pincel frouxamente empunhado pelas mãos de um deus infantil que ora se alegra, ora se enjoa da raça humana E que, eventualmente, por birra ou inabilidade, derrama o pote de tinta na tela.

Aliás, uma analogia de ocorrência do acaso pode ser vista na famosa cena de O grande Lebowski, em que Julianne Moore, pendurada em roldanas, sacode violentamente dois pincéis e espalha tinta sobre uma tela. A cara de susto e surpresa de Jeff Bridges é marcante. Está no YouTube para quem quiser ver.

O óbvio é ser pessimista a respeito do acaso. Assim, a lição número 2 é não ser, necessariamente, pessimista. Existe um anglicismo que nos salva: serendipidade. Refere-se a acontecimentos decorrentes do acaso com efeitos felizes e benéficos. A descoberta da penicilina, quebra do códigos secretos dos nazistas e a invenção da ciclosporina, remédio anti-rejeição usada em transplantes e tratamentos, entre muitos outros, foram fruto da serendipidade.

Como latinos, utilizamos pouco a expressão. Colocamos o bom e o ruim na conta do acaso. Talvez isso seja um pouco pesado para um termo só. Mas as coincidências felizes existem. Como a americana que ganhou, sem ter esquema de corrupção, cinco vezes nas loteria!

Em sendo assim, e já que estamos nas mãos do acaso, devemos tomar algumas providências. E esta é a lição número 3: trata-se de bem interpretar o que se passa e evitar as sensações. Até porque, apesar de nossa grande quantidade de informações, prosseguimos ignorantes. Especialmente no Brasil. E não falo dos analfabetos.

Como diz frei Vicente Bohne em suas homilias, “a tendência do ser humano é interpretar um fato a partir de suas sensações; conforme lhe pareça agradável e desagradável”. E ele conclui afirmando que, dessa forma, o homem não consegue alcançar a verdade.

Frente ao acaso e à serendipidade devemos não apenas buscar em nossas sensações a interpretação para os fatos. Até mesmo porque estes são muito mais complexos do que nosso raso conhecimento e nossa vontade de querer aprender mais.

A abundância de informação nos dá a falsa sensação de poder. De saber tudo ou saber muito mais do que sabemos. Mas não é bem assim. Sabemos só mais ou menos. Por exemplo, não sabemos como o federalismo funciona. Tampouco sabíamos que o juiz Sérgio Moro não poderia substituir Teori como relator da Lava-Jato no Supremo.

Além da enorme dificuldade para lidar com a informação, muitas vezes de má qualidade, temos ainda nossa reflexividade precária sobre os fatos. E, para piorar, adoramos uma narrativa novelesca. Sem drama, não tem graça.

Daí as sensações serem o conforto e o caminho para as interpretações óbvias sobre os acontecimentos. Seria muito mais simples se assim fosse. Mas, para bem e para o mal, não é.

Vida não é só direito humano

A sanha dos homens é infinita. Como explicar aos insensatos que eles estão destruindo o Paraíso? E, além do mais, nosso bichinhos são tão simpáticos... Eles são como nós, querem viver!
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(...) Imagine-se um mundo sem bichos, sem aves, sem árvores, e os olhos secos do homem na inspeção inútil do deserto. No ar poluído, o homem contemplará sua incompetência
Tom Jobim, prefácio do livro "Desextinção" de Nani e Hélio Bueno

Tempos de escolha

Por três anos, a população de Brasília assistiu ao governo do Distrito Federal e ao governo federal construírem, ao custo de R$ 2 bilhões, um estádio para 70 mil espectadores – em uma cidade em que seus times carecem de torcedores –, enquanto a poucos quilômetros seu Teatro Nacional estava fechado e se degradando.

Diante desse desperdício de recursos e desse crime contra a cultura brasileira, os artistas de Brasília silenciaram por duas razões: a afinidade em relação aos governos federal e local e a tradição brasileira de considerar que os recursos fiscais são ilimitados, sem disputa entre as diferentes prioridades. O caso de Brasília não foi único: nos últimos anos, dezenas de museus, cinemas e teatros foram sendo depredados, degradados e abandonados ao lado de novos estádios e outros gastos públicos.

Mesmo entre os poucos artistas que se manifestaram em defesa da recuperação do teatro, nenhum se manifestou contra o desperdício do estádio. Não perceberam que cada tijolo usado em uma obra não pode ser utilizado em outra, pois não tinham a percepção de que os gastos públicos exigem escolha: estádios ou teatros, viadutos ou escolas, palácios ou saneamento.

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Felizmente, nesta semana, o ministro Roberto Freire e o presidente Temer assumiram o compromisso de recuperar e reabrir o Teatro Nacional Claudio Santoro. Mas, diante das novas regras que definem um teto para os gastos da União, a vida política e fiscal brasileira vai entrar em um tempo de realismo na escolha de suas prioridades. A disponibilidade de recursos orçamentários para uma ou outra finalidade vai depender de luta política na elaboração do Orçamento federal. Por isso, os artistas que até aqui assistiram calados a um teatro definhar na sombra de um estádio que surgia precisam estar atentos. Será preciso convencer os eleitores para que eles convençam os governos e parlamentares a preferirem um teatro necessário a um estádio sem função. Caso contrário, democraticamente, o teatro continuará fechado, e o estádio, vazio.

Os gregos separaram aritmética e dramaturgia, a fantasia nos palcos e a realidade na política. Foi a aliança dos políticos de todos os partidos com os líderes das classes patronais ou trabalhistas que nos passaram a ilusão de que os recursos financeiros públicos seriam ilimitados, permitindo fantasias na política. A partir de agora, não bastará lutar por mais recursos para o teatro, será necessário lutar também para obter recursos para outras finalidades. A política subirá para o mundo da realidade, por disputas conforme interesses, preferências, lutas entre classes. A ilusão ficará no palco, nos roteiros das peças, nas partituras, no destino dos personagens, não na política nem nas finanças.

Pena que muitos ainda preferem a ilusão fiscal do orçamento à ilusão artística do teatro; e o sectarismo faz com que alguns artistas fiquem contra a recuperação do teatro porque estará sendo feita por um governo ao qual se opõem.

O mundo dá mais um passo rumo ao apocalipse

Todos os anos, um painel de cientistas e especialistas nos diz quanto resta para o fim do mundo. Fazem isso de um jeito simbólico, com um relógio prestes a chegar ao abismo, à meia-noite: o indicador são os minutos que faltam para esse momento. E hoje estamos muito perto, tão somente dois minutos e meio para o apocalipse, segundo esse grupo que inclui 15 prêmios Nobel. Os responsáveis pelo grupo o adiantaram 30 segundos na direção da zero hora. Nunca tínhamos estado tão perto da destruição da humanidade desde 1953, quando os EUA e a URSS puseram sobre a Terra suas primeiras bombas termonucleares, com uma capacidade de destruição desconhecida até então.

Naquele momento, a humanidade esteve a dois minutos de seu fim. A bomba termonuclear de nossa época não é produto da Guerra Fria, mas de um fenômeno muito mais quente: a verborragia de Donald Trump e o aquecimento global. “As palavras importam. Não tanto como os fatos, mas importam muito”, afirmou uma porta-voz do painel antes de anunciar a nova situação. As palavras que preocupam se referem às sugestões de Trump de que o Japão deveria ter armamento atômico para enfrentar a ameaça da Coreia do Norte (texto do painel).

O mundo estava fazia dois anos parado a três minutos da hora fatídica, a mesma hora que em 1984 — a segunda pior crise da história deste relógio —, quando as duas superpotências rompiam relações e se alcançava um novo pico no arsenal atômico enquanto se avizinhava outra escalada rearmamentista. Curiosamente, em 1987 era Donald Trump que promovia o desarmamento dos EUA e da URSS. Hoje, ele é o problema que o planeta enfrenta. Em dezembro, como presidente eleito, Trump dizia que seu país deveria fortalecer sua capacidade nuclear até que o mundo recuperasse a razão em relação a essas armas.



"Putin e Trump podem optar por se comportarem como homens de Estado ou como meninos petulantes”, disse o painel ao mencionar os problemas que ressurgiram entre as duas grandes potências nucleares, com uma escalada dialética e em lugares como a Ucrânia e a Síria. “Esta situação mundial já ameaçadora foi palco do aumento de um nacionalismo estridente em todo o mundo em 2016, até mesmo em uma campanha presidencial dos Estados Unidos, durante a qual o vencedor, Donald Trump, fez comentários inquietantes sobre o uso e a proliferação de armas nucleares, e expressou sua incredulidade quanto ao consenso científico sobre as mudanças climáticas.”

O Relógio do Fim do Mundo (Doomsday Clock, como é denominado em inglês) foi criado em 1947 pelo conselho do Boletim de Cientistas Atômicos, um grupo de especialistas que pretendia conscientizar sobre o risco do armamento nuclear. Em sua primeira edição foi posicionado a 7 minutos da meia-noite. Em 1995, estávamos a 14 minutos. Em 2007 as mudanças climáticas entraram pela primeira vez entre suas preocupações para o futuro da humanidade. Neste caso, o aquecimento foi outro fator decisivo para o painel: o ano passado foi o mais quente dos registros históricos, e foi o terceiro ano consecutivo em que isso aconteceu. O grupo de cientistas reconhece o peso da situação política nos EUA e das pessoas que estarão no comando do Governo e, neste campo, o fato de a nova Administração dos EUA ser “abertamente hostil” a tomar medidas contra as mudanças climáticas.

Além disso, outra das preocupações expressadas no Boletim foi a das ameaças tecnológicas emergentes, em relação com os ciberataques, mas também com todos os problemas que a inteligência dos EUA reconheceu que surgiram durante a campanha eleitoral, com a ação de hackers e desinformação. E ressaltam especialmente a falta de respeito dos líderes mundiais pelos fatos, os dados e o conhecimento científico.

Convém lembrar que há 70 anos esse relógio nem sequer existia. A humanidade não havia dado motivos a si mesma para prever sua autodestruição.

Javier Salas