domingo, 20 de janeiro de 2019

Gente fora do mapa


Às armas, cidadãos!

Os brasileiros recuperaram o direito de ter uma arma em casa. O presidente Jair Bolsonaro cumpriu uma de suas promessas de campanha ao assinar o decreto. Ele atendeu ao que povo decidira em plebiscito há mais de dez anos. Agora falta o livro.

“Armas” é a primeira palavra de Os Lusíadas, obra referencial de nossa língua. No tempo em que crianças e adolescentes estudavam Português a sério no ensino médio para obter o domínio da norma culta e assim ler e entender o que se ouvia e lia, as duas primeiras estrofes do emblemático poema semelhavam um novo vestibular.

O primeiro período tem dezesseis versos e a oração principal está escondidinha lá no penúltimo: “Espalharei por toda parte”. O último é só para passar um brilho nos ditos anteriores: “se a tanto me ajudar o engenho e arte”.

O autor passa o restante das duas estrofes contando o que vai espalhar, aonde os barões foram, o que fizeram, as guerras que travaram, os perigos pelos quais passaram e as obras valorosas com que se vão da lei da morte libertando, isto é, do esquecimento.


Milhares de zero nas redações do Enem tornam dispensável qualquer outro argumento a favor da volta da leitura dos clássicos e de outros livros relevantes para se ensinar Português. De quebra, a turma do “nóis pega os peixe” é dispensada algum tempo para ler e aprender que os alunos já chegam à escola sabendo a língua falada, mas não podem sair dali sem aprender a língua escrita e sem saber expressar por escrito o que falam, sentem e pensam.

A última palavra de Os Lusíadas é “inveja”, sentimento que tanto vitimou seu autor, o poeta que no Brasil, por honroso deboche, dá nome a um prato: bife à Camões.

Explica-se: o poeta era caolho. Ele perdeu o olho direito em campo de batalha. Mas sobre isso também há a controvérsia de que a efígie pode ter sido invertida na impressão. Resta sem polêmica a desjeitosa homenagem, politicamente incorreta, que traz um ovo sobre um dos lados da superfície do bife.

Versões lendárias são também obscenas, às vezes. Diz-se de outro prato, o bife à cavalo, que, por ter dois ovos sobre a carne, indica a separação dos testículos do cavaleiro quando montado. O primeiro prato veio de Portugal e o segundo veio da França.

Como as armas aparecem nos hinos nacionais? O Brasil só ameaça sair na porrada nos últimos versos e com o eufemismo de clava para porrete: “Mas, se ergues da justiça a clava forte,/ Verás que um filho teu não foge à luta”.

Antes disso, proclamamos a mãe gentil, o céu risonho e límpido, um povo heroico de brado retumbante, mas deitado eternamente em berço esplêndido, ao som do mar e à luz do céu profundo. Que beleza! Mas é muita moleza!

Eufemismo quer dizer fala boa: do Grego “eu”, bem, bom, e “phemi”, fala. O objetivo é suavizar o dito ou ser agradável, como dizer de quem morreu que ele descansou, como na expressão “descanse em paz”. Esta frase aparece às vezes em latim nos cemitérios: requiescat in pace. Ou no plural: requiescant in pace(descansem em paz).

A União Europeia, que reúne dezenas de nações e de línguas oficiais, mas usa o Latim no lema, tem um hino tão bonito quanto o nosso. É a Ode à Alegria, que diz: “Oh, amigos, mudemos de tom!/ Entoemos algo mais agradável/ E cheio de alegria!”.

Os chatos do movimento do “politicamente correto” não chegaram a tempo no século XIX para condenar o compositor Ludwig van Beethoven pelo arrebatamento exagerado no trecho da 9ª. Sinfonia ou o poeta Friedrich Schiller, no século XVIII, pelos exageros da letra: “Ébrios de fogo entramos/ Em teu santuário celeste!” (Wir betreten feuertrunken Himmlische, dein Heiligtum!). “Ébrios, mas, como?”, podem perguntar os chatos. “Chegam cantando bêbados e pensam que vão ficar impunes?”. Tampouco estiveram presentes na ocasião em que a União Europeia fez a bonita escolha da letra e da música.

O lema da União Europeia está escrito em latim: In varietate concordia (acordo na diversidade) e pode ser ouvido aqui, cantado em latim, com legendas em português.

A França, a nação dos livros e dos livres, conclama os cidadãos, não os soldados, a pegar em armas, formar batalhões e marchar: “Aux armes, citoyens, formez vos bataillons, marchez, marchez!”.

Com armas em casa para nos defender dos inimigos que porventura nos venham a perturbar, não podemos esquecer que há um inimigo igualmente feroz nas cercanias. É a ignorância. E precisamos de outra arma para combatê-lo: o livro. Ele será melhor arma na escola se tiver sido também na família.

Deonísio da Silva

Filho da época

Somos filhos da época
e a época é política.

Todas as tuas, nossas, vossas coisas
diurnas e noturnas,
são coisas políticas.

Querendo ou não querendo,
teus genes têm um passado político,
tua pele, um matiz político,
teus olhos, um aspecto político.

O que você diz tem ressonância,
o que silencia tem um eco
de um jeito ou de outro político.

Até caminhando e cantando a canção
você dá passos políticos
sobre um solo político.

Versos apolíticos também são políticos,
e no alto a lua ilumina
com um brilho já pouco lunar.
Ser ou não ser, eis a questão.
Qual questão, me dirão.
Uma questão política.

Não precisa nem mesmo ser gente
para ter significado político.
Basta ser petróleo bruto,
ração concentrada ou matéria reciclável.
Ou mesa de conferência cuja forma
se discuta por meses a fio:
deve-se arbitrar sobre a vida e a morte
numa mesa redonda ou quadrada.

Enquanto isso matavam-se os homens,
morriam os animais,
ardiam as casas,
ficavam ermos os campos,
como em épocas passadas
e menos políticas.

Wislawa Szymborska , "Poemas"

Crônica de uma encrenca anunciada

Ninguém imaginou que a chegada de Bolsonaro ao poder seria tranquila. Além de toda a controvérsia que a precedeu, pontuada por uma tentativa de homicídio (lamentada por alguns pelo desfecho fracassado), havia (há) a presença, inédita, de filhos com mandato.

Família e poder costumam ser uma relação problemática; família de políticos, mais ainda. Em regra, quem tem mandato responde pelos problemas que cria (ou em que é envolvido) – exceto, claro, quando se trata de alguém cujo pai é presidente da República.

Tudo o que disser ou fizer, ainda que credenciado pelo voto popular, cai no colo do pai-presidente. E aí a encrenca fica maior do que é. Se o filho parlamentar nada diz, descumpre seu mandato; se diz, suas palavras passam a ser as do pai, ainda que delas divirja.

O governo Bolsonaro lida com essa encrenca, que, mesmo num contexto de normalidade, traria complicações. Num contexto em que padece de implacável má vontade da grande mídia e de inimigos invisíveis dentro da máquina administrativa, o desastre é inevitável.

Não há saída para isso. A saída seria não entrar. Como entrou, terá que aprender a lidar com o problema, que esta semana se agravou, mais uma vez, em função de uma situação que envolve seu filho, o senador eleito pelo Rio, Flávio Bolsonaro.

Foi a semana em que o governo cumpriu três compromissos de campanha: regulamentou a posse de armas, deu início à abertura da chamada caixa preta do BNDES e formalizou seu não reconhecimento à ditadura bolivariana de Nicolas Maduro, da Venezuela.

O que prevaleceu nas manchetes, no entanto, foi a acusação de que Flávio Bolsonaro teria pedido ao STF que interviesse para blindá-lo, via foro privilegiado, de uma investigação do Coaf, que envolve movimentação financeira suspeita de um ex-assessor seu, Fabrício Queiroz, na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro.

Flávio nega os termos em que a notícia foi veiculada. Sustenta que não pediu blindagem alguma, nem para ele, nem para Queiroz. Teria apenas denunciado uma irregularidade: a quebra de seu sigilo bancário, desde julho do ano passado, sem autorização judicial.

Se assim é, trata-se de fato de ilegalidade. Mas, seja como for, o conteúdo da ilegalidade já circula, posto no ar ontem, no Jornal Nacional. Detalhes de sua movimentação bancária foram expostos, sem que lhe tenha sido dado o direito prévio de explicar-se.

Tudo o que disser, diante dos números, estará (já está) sob suspeita. Mas o alvo, óbvio, não é ele: é o pai.

O Coaf investigou movimentação financeira de assessores de 23 deputados estaduais do Rio, mas só quebrou o sigilo bancário de Flávio Bolsonaro – e só os dados dele chegaram à imprensa.

As maiores movimentações suspeitas são de assessores de parlamentares do PT e Psol. Mas, para além da necessária investigação – e ela deve ocorrer e enquadrar eventuais infratores, inclusive, se for o caso, o filho do presidente -, o que se quer é criar um imbróglio político para o novo governo.

Se ele for inocente, é questão para o futuro. No presente – e é isso que importa -, já está sentenciado e condenado. E o pai-presidente politicamente atingido.

Ruy Fabiano

Generais e o ministro Moro estão cada vez mais constrangidos, mas o que fazer?

Nos seus áureos tempos de humorista na TV Globo, o multimídia Jô Soares criou um personagem muito interessante, que caía na lábia de qualquer político que lhe contava uma história, quebrava a cara e depois encerrava o quadro com o seguinte bordão, olhando para a câmera de TV: “E eu acreditei!!!”. Milhões de eleitores e muitos auxiliares diretos, ministros e amigos de Jair Bolsonaro estão na mesma situação. Acreditaram na severa pregação do candidato contra a corrupção na política e agora estão perplexos com o rumo dos acontecimentos.

Entre os importantes personagens que foram surpreendidos com o caso de Flávio Bolsonaro estão o ex-juiz Sérgio Moro, a advogada Janaina Paschoal, o general Augusto Heleno e o vice Hamilton Mourão.

O clima no Planalto está sufocante. Ninguém quer se meter no assunto, mas fica difícil tirar o corpo fora, porque o assédio da imprensa é absurdo. Na última terça-feira, dia 15, antes do novo escândalo, o ministro Sergio Moro deu longa entrevista à Globonews e falou até sobre o caso de Queiroz, sempre saindo pela tangente, ao repetir a justificativa de Bolsonaro pai. Mas agora esse comportamento não é mais admissível e os jornalistas não aceitarão evasivas. Moro vai ter de fugir dos jornalistas;

Aliás, a situação de Moro está desconfortável desde que elogiou Onyx Lorenzoni, em 6 de novembro, dizendo ter “grande admiração” por ele e minimizando a acusação de caixa 2, ao alegar que o parlamentar gaúcho já havia confessado o erro e pedido desculpas. Depois, surgiram denúncias de que Onyx usou notas fiscais em série da “consultoria” de um amigo para justificar “gastos” de sua cota parlamentar, e isso Moro jamais pode aceitar. É melhor ficar calado.

É claro que a decepção dos generais é imensa. Conseguiram assumir o poder democraticamente, mas o presidente não era bem o que eles esperavam. Na sexta-feira, o ministro do Gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno, disse apenas que o Bolsonaro considera que o assunto do filho Flávio não lhe diz respeito. Para o general, é duro entrar no jogo político e ter de dar esse tipo de declaração nada verdadeira.

A imagem de Bolsonaro está definitivamente afetada pelo cheque recebido de Queiroz em nome da primeira-dama. Mas isso não significa que o governo acabou. Pelo contrário, está apenas começando.

O que vai acontecer é que Bolsonaro terá de se recolher à sua insignificância, permanecendo à frente do governo apenas de forma representativa, para deixar os militares exercerem o poder em sua quase plenitude.

Pensamento do Dia


Bolsonaro levará na mala para Davos a sombra da suspeita sobre o filho Flávio

O novo presidente brasileiro, o ultradireitista Jair Bolsonaro, é esperado na próxima semana no Fórum Econômico Mundial de Davos juntamente com seus principais ministros, o da Economia, o liberal Paulo Guedes, e o da Justiça, o mítico juiz Sérgio Moro. Eles são aguardados com a mesma expectativa que em outros anos cercava o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que encarnava a nova esquerda democrática da América Latina.

Bolsonaro se prepara para chegar ao frio de Davos como quem derrotou a esquerda de Lula que se corrompeu com suas relações mafiosas com os grandes empresários. E chega levantando duas bandeiras do que chama de “nova era” do Brasil: a da recuperação de uma economia deteriorada pelos Governos de Dilma Rousseff, com 14 milhões de desempregados, e a da luta contra a corrupção, encarnada em seu ministro da Justiça, que levou Lula e boa parte da elite do Partido dos Trabalhadores para a prisão.

Foram essas bandeiras, juntamente com a prometida guerra contra a violência que castiga o país com 63.000 homicídios ao ano, que levaram 57 milhões de brasileiros a depositar sua confiança no novo presidente, que, sem ter biografia, chegou ao poder como uma repulsa contra a velha política e seus escândalos de corrupção.

Mas a presença de Bolsonaro e de seus ministros em Davos pode acabar ficando seriamente manchada se, antes de seu embarque para a Suíça, não se dissiparem definitivamente as suspeitas de corrupção que cercam seu filho mais velho, o senador eleito Flávio Bolsonaro, um caso que está crescendo a ponto de dar a impressão de que se quer ocultar algo debaixo do tapete, como as clássicas faxinas da velha política. Algo que começa a preocupar, por exemplo, não só a dúzia de militares presentes em seu Governo, algo inédito desde os tempos da ditadura, mas também muitos de seus seguidores fiéis que o elegeram como o novo Dom Quixote que prometia limpar o país da corrupção.

Por tudo isso, e depois das revelações de sexta-feira do Jornal Nacional, da TV Globo, sobre depósitos suspeitos na conta de seu filho Flávio, o presidente não deveria ir a Davos antes de deixar esclarecido de uma vez por todas o caso de seu filho e de seu assessor Fabrício de Queiroz, amigo pessoal de longa data da família Bolsonaro. Trata-se de uma situação que está se transformando não só em mais um escândalo de suposta corrupção, mas também em uma ferida que poderia acabar envenenando a credibilidade do novo Governo.

Não parece razoável imaginar que um presidente da República, com os poderes que o cargo lhe outorga neste país, e seu ministro da Justiça, um especialista mundial em assuntos de corrupção, não possuam a esta altura informações suficientes para dar uma resposta definitiva à opinião pública sobre o caso envolvendo Flávio e Queiroz.

Bolsonaro e Moro não deveriam viajar a um simpósio tão importante econômica e politicamente como o de Davos antes de dissipar completamente essa sombra de suspeita que está acabando com a lua de mel da nova era bolsonarista. Quando quer, o novo presidente é contundente em seus atos. Que sua mão não trema na hora de tomar uma decisão sobre sua própria carne. Só assim sua credibilidade seria restaurada sem fornecer munição para a oposição, à qual ele está dando o melhor dos presentes.

Obedeçam!

Pessoas obedecendo a regras impostas por alguma outra pessoa não é a mesma coisa que respeitar a vida. E, se você quer respeitar a vida, tem de estabelecer um limite
John Berger, "Aqui nos encontramos"

Bolsonaro e a ideologia

Ideologia: só no discurso de posse, o presidente Jair Bolsonaro usou essa palavra – ou suas variações – quatro vezes. Ele prometeu libertar o país "da submissão ideológica" e das "amarras ideológicas", combater a "ideologia de gênero" e conduzir uma economia "sem viés ideológico".

O termo é uma das marcas no discurso não só de Bolsonaro, mas dos membros do círculo mais próximo do governo. Na maioria das vezes, numa tentativa de desclassificar projetos políticos anteriores.

Foi assim, por exemplo, na última segunda-feira. Em seu perfil no Twitter, Bolsonaro, ao falar de sua ida ao Fórum Econômico Mundial, em Davos, disse que estava feliz com a oportunidade de apresentar um Brasil "livre das amarras ideológicas".

Na boca de políticos governistas e do próprio presidente, o termo ganhou uma conotação negativa, que pouco remete ao seu real significado. Nas ciências sociais, ideologia é definida com uma forma de concepção de mundo (Weltanschauung) que se diferencia de outras ideias e projetos políticos.

"Por um lado, ideologias são sistemas de ideias, que enfatizam algumas poucas características e critérios para reduzir significativamente a complexidade social e, assim, explicar a realidade de uma maneira simplificada. Por outro lado, ideologias apontam para soluções, como certos males podem ser corrigidos, e dão impulsos para o que deve ser feito na política", afirma o cientista político Klaus-Gerd Giesen.


O professor da Universidade Clermont Auvergne, na França, diz que ideologia seria algo como o "reino dos ismos" – conservadorismo, liberalismo, anarquismo, fascismo, etc. "No cotidiano político, elas são aplicadas por partidos e outras organizações políticas que respectivamente querem pôr em prática uma ideologia", exemplifica.

Já o cientista político Cristóbal Rovira Kaltwasser, da Universidade Diego Portales, no Chile, destaca que não há como conceber um mundo político sem ideologias. "Academicamente, todos os discursos são ideológicos", explica. Segundo ele, até tecnocratas, que tentam passar uma imagem de neutros, também são movidos por princípios ideológicos.

"Os tecnocratas afirmam que há somente uma solução técnica para um problema. Porém, não é 100% verdade, pois há diferentes mecanismos para solucionar um problema e a ideologia também tem um papel decisivo nesta escolha", acrescenta Kaltwasser.

Desta maneira, explicam os especialistas, as ideias políticas de extrema direita de Bolsonaro e sua equipe também são uma forma de ideologia. Sua estratégia de tentar desclassificar os adversários políticos como aqueles que possuem tendências ideológicas é frequentemente associada ao populismo.

Esse discurso foi construído por Bolsonaro desde o início da campanha eleitoral, na qual ele aproveitou a oportunidade para se apresentar como uma alternativa à política tradicional, alvo da insatisfação popular desde os protestos de 2013, que culminaram com o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff.

Ao estigmatizar a ideologia de seus adversários nas urnas e discursivamente ocultar, assim, a sua própria, conseguiu transmitir a uma parte do eleitorado uma imagem de neutralidade e apartidarismo, apesar de ter sido deputado federal desde 1991.

Mesmo com a eleição, os ataques a projetos ideológicos diferentes dos seus continua presente no discurso de Bolsonaro, sendo reforçado nas últimas semanas por integrantes da sua equipe. Desde que assumiu o poder, o presidente não se cansa de repetir que fará um governo livre de "amarras ideológicas" e pretende combater "ideologias nefastas".

Segundo o cientista político Markus-Michael Müller, há paralelos temporais de como a ideologia foi rejeitada na época da ditadura e agora com Bolsonaro. Essa rejeição ocorre numa retórica discursiva que associa ideologia a tudo o que seria de esquerda e apresenta a direita como um projeto livre de concepções de mundo.

"Os militares se apresentavam como apolíticos e com um projeto neutro, que combatia um projeto ideológico de esquerda que vinha de fora e deveria ser excluído por não corresponder aparentemente aos valores da sociedade brasileira", afirma Müller, do Instituto de Estudos Latino-Americanos da Universidade Livre de Berlim.

No caso de Bolsonaro, essa estratégia discursiva de suposta neutralidade ganha força com a nomeação de tecnocratas para comandar ministérios, como o economista Paulo Guedes, na pasta de Economia, o ex-juiz Sérgio Moro, na Justiça, ou o general da reserva Fernando Azevedo e Silva, na Defesa. A retórica usada: nenhum outro governo buscou especialistas como ministros.

"Com essa estratégia tecnocrática, Bolsonaro tenta disfarçar para a população sua própria ideologia de extrema direita ou pelo menos fazer com que ela pareça moderada", afirma Giesen.

Para o cientista político Christoph Harig, da Universidade das Forças Armadas da Alemanha, em Hamburgo, essa luta contra inimigos imaginários e abstratos, como o muitas vezes evocado 'marxismo cultural', pode ser bastante vantajosa para o governo Bolsonaro.

"Em caso de não alcançar objetivos políticos concretos, a referência à luta contra 'o politicamente correto' ou contra a 'ideologia de gênero' pode ser suficiente para manter, pelo menos, uma parte de seus seguidores em modo de campanha e, assim, ao seu lado. Agora só resta esperar se isso será suficiente para alcançar os setores da população que votaram nele sem convicção", avalia Harig.

Sujou, Flávio!

Ao fim e ao cabo, foi no colo do general João Batista de Oliveira Figueiredo, o último presidente da ditadura militar de 64, que explodiu a bomba do atentado terrorista ao Riocentro na noite de 30 de abril de 1981. Ela matou o sargento Guilherme Pereira do Rosário e feriu gravemente o capitão Wilson Dias Machado que a transportavam num carro esportivo.

Cuide-se o capitão da reserva Jair Messias Bolsonaro, o primeiro militar a tomar posse da presidência da República desde a saída de Figueiredo do Palácio do Planalto pela porta dos fundos, para que o rumoroso caso envolvendo seu filho Flávio, recém-eleito senador, e o motorista Fabrício Queiroz não acabe também explodindo no seu colo.

À época, Figueiredo, que prometera prender e arrebentar quem se opusesse à abertura política do regime, famoso por preferir cheiro de cavalo a cheiro de povo, foi conivente com a tentativa de encobrir a autoria militar do atentado, atribuído à esquerda. Espera-se que o capitão Bolsonaro tenha aprendido com o episódio e não incorra no mesmo erro.

Nas últimas 48 horas, o rolo antes protagonizado unicamente por Queiroz deu um perigoso salto tríplice carpado. Na quinta-feira, soube-se que Flávio pediu e obteve do Supremo Tribunal Federal a suspensão temporária das investigações sobre a movimentação financeira milionária de Queiroz. Ontem, que depósitos suspeitos também abasteceram a conta de Flávio.

O pedido atendido pelo ministro Luiz Fux, em breve, irá para a lata do lixo como já antecipou o revisor da medida, seu colega Marco Aurélio Mello. A promoção de Flávio à categoria de possível coautor da lambança liderada por Queiroz, seu assessor, parece estar apenas começando. Se antes ele não era investigado, agora dificilmente deixará de ser.

O desafio que Bolsonaro, o pai, tem pela frente, é o de se desvincular do que o filho fez ou deixou de fazer. Não será fácil. Queiroz, primeiro, foi amigo dele para só depois se tornar empregado e amigo de Flávio. Um cheque de Queiroz foi parar na conta de Michelle, mulher do capitão. A mulher e uma das filhas de Queiroz trabalharam com o capitão.

Como Bolsonaro pode dissociar sua imagem da dos filhos se um deles (Carlos, o vereador) cuida de suas páginas nas redes sociais, outro (Eduardo, o deputado) participa de reuniões oficiais no Palácio do Planalto e dita normas para a política externa do país, e o enrolado (Flávio) compartilhava Queiroz e sua família com o pai?

Nada indica que Bolsonaro tenha coragem para repetir uma das máximas do capitão Nascimento, o herói do filme “Tropa de Elite”: “A responsabilidade é minha. O comando é meu!”. Mas há outras igualmente célebres das quais ele poderá valer-se se a situação de Flávio degringolar: “Perdeu! Perdeu! Pede pra sair. Pede pra sair”.

Pois é… O sistema é foda, parceiro.