sexta-feira, 17 de junho de 2022

Pensamento do Dia

 


Incompetência estratégica

“É uma região inóspita, afastada de tudo”, declarou o vice-presidente Hamilton Mourão, nove dias depois do desaparecimento do indigenista Bruno Pereira e do jornalista inglês Dom Phillips, na Terra Indígena Vale do Javari. Mourão já se disse descendente de indígenas; ele é gaúcho de Porto Alegre, mas seu pai é amazonense. Hoje general da reserva, foi comandante da 2ª Brigada de Infantaria de Selva em São Gabriel da Cachoeira (Amazonas), de 2005 a 2008, e preside há dois anos o Conselho Nacional da Amazônia Legal (CNAL). Deveria saber que na região onde a dupla sumiu vivem mais de 190 mil pessoas. Como assim “inóspita”?


O Conselho Nacional da Amazônia Legal foi reativado em fevereiro de 2020, vinculado à vice-Presidência da República. Originalmente, o órgão foi criado em 1995, durante o governo Fernando Henrique Cardoso, subordinado ao Ministério do Meio Ambiente, embora nunca tivesse mostrado ao que veio. Tudo leva a crer que devia ter continuado assim: as três missões de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) promovidas pelas Forças Armadas no combate a crimes ambientais na Amazônia consumiram R$ 550 milhões e não reduziram o desmatamento na maior floresta tropical do mundo. Muito ao contrário, só em maio último, foram abaixo 1.180km² de verde, a maior destruição para este mês desde 2016. Essa dinheirama equivale a quase seis vezes o orçamento do Ibama em 2020 para fiscalização e licenciamento ambientais, e gestão da biodiversidade.

Os militares também se aboletam na Funai: eles ocupam as chefias de 19 das 39 coordenações regionais da fundação, contra duas de servidores públicos, como o Bruno Pereira – as demais foram tomadas por policiais militares e federais, ou por funcionários de cargos comissionados. Desde 2017 já se sabia que o crime organizado estava tomando conta da região onde o jornalista e o indigenista desapareceram; *mas de lá para cá, a situação só piorou.

“As duas pessoas entram numa área que é perigosa sem pedir uma escolta, sem avisar efetivamente as autoridades competentes e passam a correr risco, né?”, disse Mourão sobre o episódio. “Se o lugar onde a gente trabalha é perigoso e precisa de escolta armada, tem uma coisa muito errada aí. E a culpa não é nossa”, rebateu a antropóloga Beatriz Matos, mulher de Bruno.

A autoproclamada eficiência militar virou lenda do Boitatá? Como esquecer a desastrosa passagem de outro general, Eduardo Pazuello, pelo Ministério da Saúde, no auge da pandemia de Covid-19? Considerado especialista em logística, esqueceu-se de abastecer os hospitais da capital amazonense com cilindros de oxigênio. Seu, digamos, descuido levou os hospitais da cidade a entrarem em colapso e pelo menos 31 pessoas à morte, em dois dias. Quando foi efetivado ministro da Saúde, em 16 de maio de 2020, o Brasil contabilizava 233 mil casos e 15.633 mortes por Covid-19; ele deixou o cargo em 15 de março do ano seguinte com mais de 11,5 milhões de infectados, e cerca de 280 mil mortos.

Depois de sair do Ministério da Saúde, Pazuello foi designado para chefiar a Secretaria de Assuntos Estratégicos do Executivo. O que nos leva a pensar: será que não é incompetência, mas estratégia? Para Ailton Krenak, não há dúvida: “Quando os sujeitos do governo falam em preocupação acerca da soberania, eles ocultam a má intenção de entregar todo esse território e virar as costas para a morte de Yanomami, a violência contra o corpo de crianças indígenas, o ataque contra lideranças e defensores dos que estão sendo assassinados semanalmente”.

Não é a natureza hostil que oferece perigo no Vale do Javari, mas os invasores e sua ganância, que se espalham como ervas daninhas – com a indisfarçável negligência ou até cumplicidade do poder público. “Vemos agora o último assalto a uma região do mundo com muita riqueza”, reflete Krenak. O que fazer? O autor do best-seller “Ideias para adiar o fim do mundo” aconselha: “A coisa está virulenta. Não se sabe mais de onde pode sair um ataque. Mas a gente vai superar esse momento. Não dá para nos desencorajarmos. Precisamos não cultivar a mentira e não nos associarmos a versões fajutas da realidade”. Que a verdade seja a nossa arma.

Amazônia: holding do crime

Ali tem o Código Penal completo. Na verdade ali virou uma grande holding criminosa. Existe no crime organizado o fenômeno da convergência. Quem extrai madeira ilegal atua junto com o garimpeiro. O trafico de drogas começa a colaborar. O traficante vira madeireiro, o madeireiro vira traficante
Alexandre Saraiva, delegado da Polícia Federal

Dom e Bruno, vítimas de um Estado disfuncional

A Amazônia sempre foi um lugar perigoso para ativistas. Em 1988, Chico Mendes, líder sindical dos seringueiros, foi assassinado a tiros em Xapuri, no Acre. Em 2005, a religiosa Dorothy Stang, ativista social vinda dos Estados Unidos, foi morta em Anapu, no Pará. Outras dezenas de ativistas pagaram com a própria vida por lutarem contra a devastação da Amazônia e por uma sociedade mais justa no norte selvagem do Brasil.

Nesta quarta-feira, o presidente Jair Messias Bolsonaro mencionou Dorothy, dizendo que ninguém culpou o governo do PT pela morte de Dorothy Stang. Ele acha injustas as críticas que está recebendo pelos comentários infelizes que fez sobre Dom Phillips e Bruno Pereira, e pela situação precária de segurança no oeste amazônico.

Para começar, durante os governos de Lula e Dilma, havia SIM muitas críticas de ambientalistas e ativistas sociais em relação a como o governo petista tratava a Amazônia. "Lula e Dilma passarão para a História como predadores da Amazônia", disse Dom Erwin Kräutler, em 2012, se referindo à construção da hidrelétrica de Belo Monte, no Pará. O bispo do Xingu também cobrava o governo petista paraense pelo mau desempenho da Justiça estadual em resolver o caso de Dorothy.

Havia também muita frustração por parte do Movimento Sem Terra pelo lento avanço da reforma agrária na região Norte durante os governos petistas. Mas, por outro lado, o governo Lula teve em Marina Silva uma ministra do Meio Ambiente capaz de fortalecer os órgãos de fiscalização na região. Assim, as altas taxas de desmatamento começaram a cair, a partir do primeiro governo Lula, de quase 28 mil quilômetros quadrados por ano em 2004 para 4,5 mil em 2012.

Havia, naquela época, um discurso forte de vontade de preservar a Amazônia. E de pôr ordem na região. O governo Michel Temer abandonou, então, a preservação da floresta em troca de votos da bancada ruralista. Sem ela, Temer não teria terminado seu mandato. Com Bolsonaro, os ventos mudaram de vez. Desde que ele surgiu no cenário político, passou a espalhar seu veneno verbal contra indígenas, ativistas e movimentos sociais. Ele confunde políticas liberais com liberar geral – para garimpeiros, madeireiros, caçadores e fazendeiros.

A partir de 2018, ano em que Bolsonaro alcançou destaque nacional e se elegeu presidente, as viagens para a Amazônia mudaram. Encontramos garimpeiros sem medo da fiscalização, e, ao mesmo tempo, fiscais com medo dos garimpeiros. Cartazes de apoio a Bolsonaro são onipresentes na Amazônia, ao lado das fazendas onde se desmata e se queima a floresta sem medo de punições. Com o governo Bolsonaro, as multas ambientais se foram, levadas pela boiada.

A Amazônia virou uma terra sem lei. Abandonada pelo governo que deveria pôr ordem lá. Aliás, vale lembrar que Bruno Pereira tinha sido exonerado do seu cargo na Funai depois de organizar uma megaoperação contra garimpeiros. Aparentemente, um governo que se diz conservador e de direita não gosta de conservar nem de pôr ordem.

Assim, quem hoje em dia manda em regiões como o Vale do Javari são grupos criminosos, até internacionais, com narcotraficantes vindos do Peru, da Colômbia e da Venezuela fazendo negócios em terras brasileiras. Cadê o Exército brasileiro, que tanto fala da soberania sobre a Amazônia? Está, aparentemente, ocupado em fiscalizar urnas eletrônicas em vez de combater crimes. Cadê a ordem e o progresso?

Quantas vezes ouvimos o general Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional, denunciar ONGs e ativistas estrangeiros por supostamente quererem roubar a Amazônia. Até suspeitava-se que Heleno teria mandado grampear bispos católicos antes do Sínodo sobre a Amazônia, em 2019. Errou o alvo. Buscou comunistas atrás das árvores, mas não viu os narcotraficantes.

Os inimigos do país não são os bispos, nem os fiscais, nem os ativistas ambientaos ou os indígenas. É o crime organizado, que, sob o governo Bolsonaro, se sente livre para se expandir. Não só na Amazônia, aliás, mas também em cidades como Rio de Janeiro, onde cada vez mais áreas estão sob o domínio da milícia.

O Brasil nunca será uma Venezuela, repete Bolsonaro. Bom, pode não ser uma Venezuela, mas cada vez mais, o Brasil parece estar a caminho de se tornar um narco-Estado como o México ou a Colômbia. Uma terra sem lei.

Dom Phillips e Bruno Pereira lutavam contra essa degradação do Brasil. Tarefa que deveria ser do próprio Bolsonaro e seu governo. Por seus serviços pelo Brasil, Dom e Bruno ganharam nada menos que o desprezo presidencial.
Thomas Milz