terça-feira, 3 de dezembro de 2019

Demolição Brasil


Direita tenta tornar Martin Luther King um ícone conservador

Ícone do pacifismo e do movimento negro, o reverendo Martin Luther King (1929-68) vem sendo cortejado por um grupo improvável, a direita brasileira. Embora sua figura historicamente tenha sido bem mais associada à esquerda, o pastor americano está sendo reivindicado por conservadores como um dos seus. A tese é que Luther King foi um líder evangélico de posições de defesa da vida e da família e contrário a qualquer tipo de racialismo.

Da mesma forma, segundo essa visão conservadora, sua pregação em prol dos negros não apostava na divisão da sociedade como fariam hoje os movimentos identitários. Luther King falava em liberdade e direitos iguais.

Há duas semanas, o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) aproveitou o Dia da Consciência Negra para exaltar a figura de Luther King e dizer que ele era um conservador.

“Sempre devemos lembrar a mensagem do pastor Martin Luther King, ícone da luta pela igualdade racial (que a esquerda faz questão de esconder que era conservador)”, tuitou o filho do presidente.
No mesmo tuíte, reproduziu um trecho do discurso do reverendo em 1963 em Washington que ficou famoso pela repetição da expressão “I have a dream” (eu tenho um sonho). A tese de Eduardo, logo bombardeada por pessoas de esquerda, é que o sonho de uma sociedade em que ninguém será julgado pela cor da pele é um libelo contra políticas como cotas raciais, uma das bandeiras do movimento negro.

 Alguns conservadores dizem também que Luther King era um defensor das armas, apesar do seu discurso de não-violência. Segundo essa visão, o pastor precisava se armar contra a tirania do Estado e das autoridades no Sul americano, parte mais racista do país, e onde fez sua carreira.

Durante a conferência conservadora Cpac, ocorrida em outubro em São Paulo, o ativista pró-armas Benê Barbosa mencionou essa característica do reverendo em sua fala. Foi efusivamente aplaudido pela plateia.

“Sem dúvida nenhuma, Martin Luther King era alguém que tinha valores conservadores. Era contrário ao aborto, que via como uma tentativa de diminuir a população negra. Era pastor, pró-Deus, tinha fé cristã. E na questão das armas, ele era proprietário, tinha armas comprada legalmente”, disse Barbosa ao blog. Segundo ele, Luther King requisitou porte de armas às autoridades americanas, o que foi negado por causa da legislação racista da época. Em abril de 1968, o reverendo acabou sendo assassinado num hotel na cidade de Memphis.

 A esquerda, por sua vez, não está disposta a abrir mão tão facilmente da associação com o pastor americano. Veja, por exemplo, o que disse o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva em carta que enviou da prisão em dezembro do ano passado, para marcar o Dia Internacional dos Direitos Humanos.

“Hoje é dia de recordar os heróis dessa luta em todos as frentes: Martin Luther King, sacrificado pela defesa dos direitos civis; Nelson Mandela, que viveu 27 anos encarcerado pelo regime do apartheid; Mahatma Gandhi, que fez da não-violência a mais forte resistência ao regime colonial”.

A tentativa da direita de tomar para si este símbolo é por um lado reveladora e por outro difícil de emplacar. Reveladora porque é um sintoma da falta de figuras midiáticas do campo conservador no século 20 que possam competir com a iconografia esquerdista. Tirando Ronald Reagan, Margaret Thatcher e Winston Churchill, pouco sobra.

É difícil de emplacar porque Luther King estava longe de caber no figurino que a direita gostaria de inseri-lo. Seu tom era pacifista até certo ponto. No famoso discurso de 1963, ele diz, por exemplo, que “não haverá nem descanso, nem tranquilidade na América até o negro ter garantidos seus direitos de cidadão”. “Os turbilhões da revolta continuarão a abalar as fundações da nossa nação até o dia claro da justiça emergir”, prega.

Sim, ele aceitava as armas, mas tinha uma relação com elas que poderia ser mais bem descrita como ambivalente, recusando-se a usá-las diversas vezes, e pregando a resistência pacífica. Também era a favor de políticas de controle de natalidade, para amenizar a pobreza das famílias mais pobres (sobretudo negras, portanto).

É improvável que a direita consiga capturar o legado de Luther King, mas só a tentativa já demonstra que nem os ícones mais sagrados estão a salvo de nossas batalhas culturais.

Made in Brazil

O rock ativa a droga que ativa o sexo que ativa a indústria do aborto. A indústria do aborto por sua vez alimenta uma coisa muito mais pesada que é o satanismo. O próprio John Lennon disse que fez um pacto com o diabo
Dante Mantovani, novo presidente da Funarte

Tragédia na vida banal

Notável geógrafo, o falecido professor Milton Santos era um observador arguto da vida banal nas periferias do mundo, ou seja, o dia a dia dos cidadãos afetados pela globalização, com suas desigualdades e grande exclusão. Dedicou a vida a analisar sua época, com um olhar crítico sobre o atual modelo de relações internacionais, constituído entre 1980 e 1990, e que está sendo posto em xeque tanto no centro como nas periferias do mundo.

Sua geografia desenvolveu novos conceitos sobre espaço, lugar, paisagem e região, nos quais o fator humano tem um papel central. Sempre pôs uma lupa no uso político dos territórios para compreender o desenvolvimento. Teria hoje 93 anos se fosse vivo e, com certeza, do alto da pilha dos seus 40 livros publicados e com o prestígio de doutor honoris causa em mais de 20 universidades do mundo, seria mais uma voz a subir o tom diante da tragédia deste fim de semana em Paraisópolis, a maior favela de São Paulo.


Dizia que a captura das políticas públicas pelos grandes interesses privados acaba por deixar ao relento o cotidiano da população de baixa renda, que se vê obrigada a buscar alternativas de sobrevivência numa espécie de beco sem saída social, porque esses interesses estavam mais voltados para o lucro do que para os objetivos das políticas urbanas e sociais. Segundo ele, a vida banal é desprezada pelo poder público e, no espaço urbano onde essa ausência é maior, surgem as soluções improvisadas, as transgressões e a economia informal (o gás, a gambiarra, o gatonet, a proteção a agiotagem etc.), que muitas vezes acaba capturada pelo crime organizado, que achaca, chantageia e mata, seja ele o tráfico de drogas, sejam as milícias.

O que deseja um cidadão das periferias? Projetar seu próprio futuro, vislumbrar perspectivas dignas da existência, expressar sua maneira de entender o mundo, seja por meio de crenças, manifestações culturais ou práticas sociopolíticas. Ter qualidade de vida, viver num ambiente agradável e sustentável, provido de água, esgoto, energia e meios de comunicação na medida adequada, com assistência médica, acesso à educação e à cultura, meios de transporte e um sistema de abastecimento adequado.

Agrega-se a isso o acesso ao entretenimento e ao lazer, que também são as aspirações da maioria dos jovens brasileiros, porém, para parcela considerável deles, principalmente nas periferias, são inatingíveis. De certa forma, isso se reflete na cultura de periferia, no hip-hop, no funk, nos bailes de charme, no slam e no passinho. Como as políticas públicas não chegam às periferias na escala necessária, é natural que essas manifestações culturais fomentem a economia informal que dela se retroalimenta, do ambulante que vende água mineral, cerveja e destilados aos traficantes que distribuem a maconha, a cocaína e o crack para animar a festa, como também ocorre na maioria das “raves” de classe média, sem que a polícia toque o terror.

Sem ironia, cada território tem a sua própria “economia criativa”. Festas de funk como o Baile da 17, em Paraisópolis, no qual nove jovens morreram pisoteados na madrugada deste domingo, após uma ação da Polícia Militar, ocorrem em todas as comunidades de periferia das grandes cidades, principalmente São Paulo e Rio de Janeiro. Somente neste ano, foram realizadas 7,5 mil “Operações Pancadão” em São Paulo, nas quais foram efetuadas 874 prisões, 76 apreensões de adolescentes, apreensão de 1,8 tonelada de drogas e de 77 armas, de acordo com a corporação.

Era só uma questão de tempo uma tragédia como essa acontecer. Ninguém tem dúvida de que a violência é um dos principais problemas da nossa vida urbana, mas o endurecimento da política de segurança pública e o estímulo à venda de armas como alternativa de autodefesa para a população não são uma resposta à altura do problema. Além disso, a desconstrução das políticas públicas voltadas para as periferias, principalmente na cultura e na educação, contribui para agravar o problema. A repressão policial às manifestações culturais da periferia não é eficaz, apenas amplia a base social do crime organizado. Se fosse, depois de tantas operações, não existiria mais pancadão em São Paulo. É preciso oferecer aos jovens das periferias alternativas melhores para manifestações culturais, entretenimento e lazer. Bombas de gás lacrimogênio, spray de pimenta, balas de borracha e muita porrada, como vimos em Paraisópolis, só podem resultar em tragédias.

Mudanças climáticas em ponto crítico

Quatro anos atrás foi Paris; nas próximas duas semanas será Madri. O cenário muda, mas a mensagem não: o mundo está ficando sem tempo para frear uma mudança catastrófica no clima. Os esforços feitos para honrar a promessa de Paris 2015 de limitar o aumento da temperatura média global a menos de 20 C, preferencialmente 1,5º C, acima da média pré-revolução industrial, têm sido “totalmente insuficientes”, segundo o secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU). António Guterres, num pronunciamento feito na Espanha antes do encontro COP-25 sobre o clima, para negociar o sistema de negociação de emissões, alertou que a Terra caminha para um “ponto sem retorno”. Ele culpou os políticos por continuarem subsidiando os combustíveis fósseis e se recusando a taxar a poluição.

Talvez Guterres tenha lido um artigo publicado na “Nature” na semana passada, especulando que o planeta pode já ter chegado a um estado crítico de aquecimento e que agora estaria condenado, climaticamente falando. A análise de “nove pontos climáticos críticos” conclui que estamos numa “emergência planetária” e possivelmente caminhando para a transformação do planeta numa estufa.

Algumas mudanças climáticas, como o derretimento descontrolado das camadas de gelo, eram historicamente previstas para ocorrer na eventualidade de as temperaturas globais médias subirem 5º C, mas modelos mais recentes reduziram parte dessas margens para algo entre 1º C e 2º C.

O pior é que esses pontos críticos podem interagir uns com os outros de maneiras desconhecidas, segundo alertam os pesquisadores, ameaçando criar uma onda global e irreversível de aquecimento. “Se ondas críticas e danosas e um ponto crítico global não podem ser descartados, então essa é uma ameaça existencial à civilização”, escreve Timothy Lenton, diretor do Global Systems Institute da Universidade de Exeter, no Reino Unido, que colaborou com acadêmicos na Alemanha e Dinamarca.


Do ponto de vista do gerenciamento de riscos, eles conclamam uma ação política e econômica imediata para manter a alta das temperaturas abaixo de 1,5º C. Um ponto crítico é definido pelo Painel Intergovernamental sobre as Mudanças Climáticas como uma “descontinuidade em grande escala” em uma parte do clima da Terra. Partes inter-relacionadas incluem pontos familiares como a camada de gelo do mar Ártico e a floresta amazônica.

Componentes menos conhecidos incluem a Circulação Meridional de Capotamento do Atlântico, uma “esteira transportadora” que desloca mais para o fundo do oceano as águas quentes que seguem dos trópicos para o norte e traz mais para a superfície as águas frias que rumam do norte para o sul; e as taigas, as florestas perenes que circulam as latitudes mais ao norte, que às vezes cobrem a permafrost (camada de terra congelada) e atuam como um enorme reservatório de carbono.

Na prática, um ponto crítico é um limiar além do qual uma pequena alteração pode ter efeitos abruptos e irreversíveis. Alguns componentes do clima mundial, sugerem os pesquisadores, parecem mais próximos desse limiar do que outros. A camada de gelo que cobre a Groenlândia pode estar se aproximando de um ponto em que ela vai encolher de um modo inexorável. A perda de gelo no mar ártico é outro potencial ponto de ignição: o gelo reflete mais a luz do sol do que as águas escuras do mar, de modo que o derretimento do gelo alimenta uma maior absorção de calor, intensificando o aquecimento.

Os dois fenômenos podem já estar alimentando a instabilidade no sistema, empurrando mais água para o Atlântico Norte e desacelerando a “esteira transportadora”. Em troca, uma circulação mais fraca poderá, ao ir ao encontro às monções no oeste da África, provocar uma seca na região de Sahel na África. O efeito dominó subsequente inclui águas mais quentes no Oceano Antártico, que poderão acelerar a perda de gelo da Antártica.

Uma vez que os dominós do clima começarem a cair, os riscos se tornam duplos: não só haverá uma desaceleração na limpeza das emissões que estão ocorrendo, como o planeta também poderá começar a arrotar o carbono já capturado. As emissões da permafrost, por exemplo, poderão injetar 100 gigatoneladas de dióxido de carbono na atmosfera. Isso equivale a três anos de emissões de CO2 (um recorde de 33,1 gigatoneladas foram emitidas globalmente em 2018, segundo a Agência Internacional de Energia).

Mas nem todo mundo apoia as análises apocalípticas. “O colapso da camada de gelo da Groenlândia é bastante improvável com um aquecimento de 1,5º C, ou ela levaria séculos para derreter. Portanto ela não se encaixa na percepção de um leitor sobre o ponto crítico”, alerta Piers Forster, professor de mudanças climáticas físicas da Universidade de Leeds e um autor do Painel Intergovernamental sobre as Mudanças do Clima. Mas o professor Forster concorda que o atraso na descarbonização poderá nos levar para um “futuro catastrófico.

Na medida em que o mundo for aquecendo, precisaremos gastar mais e mais... enfrentando os riscos e nos adaptando para um futuro mais quente, com fluxos apropriados de dinheiro passando do Hemisfério Norte para o Hemisfério Sul. Isso drenaria riqueza e capacidade das sociedades que estão tentando chegar às emissões líquidas zero. Se isso acontecer, veremos uma catástrofe”. Nada de apocalipse, portanto, e sim uma catástrofe: o palavreado muda, mas a mensagem não.

Pensamento do Dia


Fantasia de imperador

Jair Bolsonaro não entende nem nunca entenderá os limites que a República impõe ao exercício da Presidência. Trata-se de uma personalidade que combina leviandade e autoritarismo. Será preciso então que as regras do Estado democrático de Direito lhe sejam impingidas de fora para dentro, como os limites que se dão a uma criança. Porque ele não se contém, terá de ser contido —pelas instituições da República, pelo sistema de freios e contrapesos que, até agora, tem funcionado na jovem democracia brasileira.

O Palácio do Planalto não é uma extensão da casa na Barra da Tijuca que o presidente mantém no Rio de Janeiro. Nem os seus vizinhos na praça dos Três Poderes são os daquele condomínio.

 A sua caneta não pode tudo. Ela não impede que seus filhos sejam investigados por deslavada confusão entre o que é público e o que é privado. Não transforma o filho, arauto da ditadura, em embaixador nos Estados Unidos.

Sua caneta não tem o dom de transmitir aos cidadãos os caprichos da sua vontade e de seus desejos primitivos. O império dos sentidos não preside a vida republicana.

Quando a Constituição afirma que a legalidade, a impessoalidade e a moralidade governam a administração pública, não se trata de palavras lançadas ao vento numa “live” de rede social.

A Carta equivale a uma ordem do general à sua tropa. Quem não cumpre deve ser punido. Descumpri-la é, por exemplo, afastar o fiscal que lhe aplicou uma multa. Retaliar a imprensa crítica por meio de medidas provisórias.

Ou consignar em ato de ofício da Presidência a discriminação a um meio de comunicação, como na licitação que tirou a Folha das compras de serviços do governo federal publicada na última quinta (28).

Igualmente, incitar um boicote contra anunciantes deste jornal, como sugeriu Bolsonaro nesta sexta-feira, escancara abuso de poder político.

A questão não é pecuniária, mas de princípios. O governo planeja cancelar dezenas de assinaturas de uma publicação com 327.959 delas, segundo os últimos dados auditados. Anunciam na Folha cerca de 5.000 empresas, e o jornal terá terminado o ano de 2019 com quase todos os setores da economia representados em suas plataformas.

Prestes a completar cem anos, este jornal tem de lidar, mais uma vez, com um presidente fantasiado de imperador. Encara a tarefa com um misto de lamento e otimismo.

Lamento pelo amesquinhamento dos valores da República que esse ocupante circunstancial da Presidência patrocina. Otimismo pela convicção de que o futuro do Brasil é maior do que a figura que neste momento o governa.

EUA agora querem sedar ruas da América Latina

Sob Donald Trump, a Casa Branca continua acreditando que sua missão especial no universo dá aos Estados Unidos o direito de exibir os músculos ao redor da Terra para fins que desafiam as leis internacionais e o bom senso. A mais nova obsessão do governo americano é silenciar as ruas da América Latina.

Nesta segunda-feira, o secretário de Estado americano Mike Pompeo discursou sobre política externa na Universidade de Louisville, em Kentucky. A alturas tantas, reiterou que Havana e Caracas tentam se apropriar do asfalto no Chile, Colômbia, Equador e Bolívia. Prometeu o apoio de Washington para quem quiser deter a perturbação.


Pompeo declarou: "Nós, no governo Trump, continuaremos a apoiar países que tentam evitar que Cuba e Venezuela se apropriem desses protestos e vamos trabalhar com os (governos) legítimos para impedir que protestos se transformem em distúrbios e violência que não refletem a vontade democrática do povo".

Faltou explicar de onde as ditaduras decadentes de Cuba e Venezuela retiram força e dinheiro para trazer as ruas do continente na coleira. Faltou definir "distúrbios". Por último, faltou explicar de quantos calibres será o apoio da Casa Branca aos aliados pobres.

Depois que o Zero Três Eduardo Bolsonaro e o ministro Paulo Guedes esgrimiram o AI-5 contra o asfalto, o risco é o capitão elogiar a preocupação de Trump em ajudar os parceiros e aceitar preventivamente a mão estendida. As ruas brasileiras ainda estão em casa. Mas o seguro, como se diz, morreu de velho.

Trump demonstrou que não há nada mais perigoso do que ser ajudado pela Casa Branca, hoje em dia. Após prometer apoio para a candidatura do Brasil à OMC, Trump deu uma rasteira em Jair Bolsonaro. Nesta segunda, enquanto Pompeo discursava em Kentucky, seu chefe avisava no Twitter que decidira sobretaxar o aço e o alumínio do Brasil e da Argentina.

Agora, informa Pompeo, a Casa Branca se dispõe a ensinar o que a América Latina precisa fazer para reprimir os protestos em vez de dar ouvidos a milhões de compatriotas que subordinam suas angústias às conveniências de um par de ditaduras decadentes.

Nesse ritmo, Bolsonaro, além de reconhecer a isenção tática dos Estados Unidos para exercer seu ineditismo na América Latina, acaba pedindo a mão de Trump em casamento.

Governo de segmento

Nenhum elemento do atual governo está tentando conversar com a população. Isso também é uma coisa comum de vários governos atuais. Eles não estão mais governando o país, eles estão governando dentro do segmento que os elegeu. E isso é muito ruim
Vik Muniz

Jair Bolsonaro triplica a aposta

Jair Bolsonaro resolveu flertar com a possibilidade um choque com o Supremo e o Congresso. Simultaneamente. Insiste em testar os limites institucionais usando, como instrumento, a desmontagem do sistema jurídico de proteção aos direitos da população indígena.

É sua terceira tentativa, em 11 meses, de reescrever na prática o trecho da Constituição que reconhece aos índios “organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”.

No primeiro dia de governo, Bolsonaro transferiu ao Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos a gestão dos direitos indígenas. Repassou a Funai e a demarcação de terras para a Agricultura. Fez isso numa Medida Provisória (nº 870).

Em maio, o Congresso vetou as mudanças. Devolveu a demarcação à Funai e recolocou-a na Justiça, onde estava. Bolsonaro não aceitou. Refez tudo numa outra MP (nº 886).


O caso foi parar no Supremo que ratificou, unânime, a decisão legislativa. No plenário, o ministro Celso de Mello usou três adjetivos para qualificar a insistência do presidente: “Inaceitável, inadmissível e perigosa.”

Obstinado, Bolsonaro agora baniu os índios do sistema de planejamento (Siop) e dos orçamentos da União até 2023. Mandou ao Congresso proposta de orçamento para 2020 com corte de 40% no fundo da Funai para “proteção e promoção dos indígenas” (LOA 2019/Programa 2065).

Deixou o Plano Plurianual de governo (2020-2023) sem previsão para a área. E transferiu a gestão dos direitos dos índios, assim como parte do orçamento da Funai, para o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, embora a fundação continue vinculada à Justiça.

Bolsonaro já foi garimpeiro amador. Por “excessiva ambição financeira”, registrou seu comandante, transgrediu normas do Exército em busca de ouro. Hoje, usa os índios num jogo institucional de alto risco. Conta com aplausos da ala mais extremista do lobby ruralista. É um grupo sectário e inepto, incapaz de reunir votos suficientes no Congresso para mudar a Constituição.
José Casado